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A grande marcha de André Ventura

15 mai 2023, 22:02

Rebobinemos. No final do verão de 2020, nas vésperas das presidenciais em que acumularia quase meio milhão de votos, André Ventura afirmava num comício em Setúbal: “Eu sei que um dia nós entraremos ali para conquistar este país. Se há algo que faremos, nem que morramos a tentar, é uma grande marcha àquela capital, para dizermos que o governo de Portugal é nosso porque pertence ao povo.” 

Sim, sim, meu caro leitor. Foi isso mesmo. Um líder partidário, então candidato à presidência da República, anunciou mesmo que o seu movimento atravessaria o Tejo numa “grande marcha” para “entrar” por Lisboa adentro e “conquistar” o governo, nem que se morresse “a tentar”. Em caso de dúvida, pesquise no YouTube que a música de épico como banda sonora ajuda à conclusão. De seguida, recomendo-lhe que procure “marcha sobre Roma” no Google e o resto deste texto quase se escreverá sozinho. 

Em outubro de 1922, os fascistas italianos marcharam, não sobre a Ponte 25 de Abril, mas sobre Roma, tomando o poder através de uma manifestação que acabaria por culminar no primeiro governo de Benito Mussolini, líder do Partido Nacional Fascista, e no triunfo das suas brigadas paramilitares, os camisas negras. Tal como André Ventura, o movimento de Mussolini era abertamente “revolucionário”, defensor de uma nova ordem política, económica e constitucional. 

De forma paradoxal e contraintuitiva para a maioria de nós, hoje, o “Duce” defendia o fascismo como “a forma mais evoluída de Democracia”, dando a entender que não era um opositor mas antes um aperfeiçoador desta. As similitudes com a retórica do Chega são claras. Os intérpretes são recentes; os escritos não.  

Ora, o cerco ao Largo do Rato ‒ ou melhor: a tentativa falhada de cercar a sede do Partido Socialista ‒ também ensaiou paralelismos históricos do género. Nas redes sociais, a juventude do Chega partilhou o discurso de André Ventura com o mote “um país!, um líder!, um destino!”, em devida paráfrase ao grito nazi “um povo!, um Reich!, um Führer!”. 

Se a isso juntarmos o propósito obviamente persecutório de intimidar uma instituição partidária ‒ e atualmente representativa da maioria dos votos portugueses ‒, é inconcebível ignorar a gravidade do episódio.

Sistematicamente, André Ventura navega nessas águas de dissimulação. O “cerco”, que era só “uma manifestação simbólica”. A “grande marcha”, que era só uma força de expressão ou um entusiasmo. A evocação ao estilo hitleriano, que obviamente foi só uma coincidência. A mão levantada em jeito de saudação nazi, que foi só um aceno. Os cartazes no Twitter com caucasianos de um lado e minorias étnicas do outro, que foi só outra coincidência. A “Quarta República”, que era só uma “crítica ao sistema” e nada contra o regime. 

Só acredita realmente neste jogo quem estiver disponível para ser jogado por ele. De uma forma ou de outra, qualquer ingenuidade é cúmplice e toda a complacência será bênção. Ventura, um dos deputados mais tecnicamente apetrechados da Assembleia e um dos seus melhores tribunos, não é parvo. Os seus gestos e frases são propositadamente ambíguos para provocarem esse equívoco; suficientemente discerníveis para piscar o olho a saudosistas das ditaduras do século XX, suficientemente dúbios para ter lugar no palco mediático de uma democracia no século XXI. 

Até agora, tem-no conseguido. Mas os riscos são óbvios. Por um lado, pela incoerência gritante que é o partido alegadamente defensor “dos valores europeus” andar apostado em reproduzir folclore das ideologias que destruíram a Europa com a Segunda Guerra. Por outro, pelo jovial deslumbramento com que partilha os encontros com os seus homólogos da extrema-direita pelo mundo fora ‒ Salvini, Bolsonaro, Le Pen, Orbán ‒ que querem tanto saber de Portugal como eu de gambozinos. Para europeu e patriota, com franqueza, o Chega deixa muito a desejar. 

Infelizmente, os perigos não se ficam por aí. Há, por mais cortês e doutorado que André Ventura seja, por mais legítima que seja a indignação do seu eleitorado, um potencial sério nos efeitos da sua retórica. Todos os quase apelos à insurreição carregam um risco de insurgência. Haverá um dia em que um comício não chega, em que um grito não satisfaz, em que um post parecerá pouco. Há um dia em que a multidão, que o passado já se cansou de mostrar incontrolável, se descontrola. Há um dia em que aqueles que andam a brincar com o fogo da História também se queimam. Um dia em que o cerco irrompe por uma porta. Em que uma pedra voa contra uma janela. Em que uma garrafa se junta a um isqueiro.

Todas as ridicularizações que vêm relativizando as iniciativas do Chega são ajudadas pela sua fraca adesão nas ruas. A maior manifestação de sempre (contra Lula) foi um flop. A maior conferência nacionalista de sempre (com Bolsonaro) foi cancelada. E o cerco, na verdade, acabou por não ser mais do que um comício improvisado. Mas nada disso deve servir para desvalorizar ‒ muito menos ignorar ‒ o que está por trás da mensagem do partido de André Ventura. 

Roma, afinal, caiu diante menos de 30 mil homens. É meio estádio de futebol. Foram 21 anos de ditadura. 

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