"E de repente cai-lhe um cancro em cima aos 30 anos". Aumento do número de casos abaixo dos 50 anos é notório

5 abr, 07:00
Cancro (Freepik)

O número de novos casos de cancro não para de subir desde 2001 e as previsões apontam para uma escalada até 2050, mas os especialistas descartam um cenário de “epidemia”. No entanto, revelam os principais desafios e preocupações quando o cancro surge entre os 20 e os 50 anos

O aumento do número de casos de cancro em pessoas com menos de 50 anos é notório em Portugal desde 2001. Nesse ano, foram diagnosticados 5.274 casos de cancro em adultos com menos de 50 anos. Dezoito anos depois, em 2019, o número de diagnósticos em pessoas entre os 20 e os 49 anos foi de 6.655, um aumento de 26,1%, segundo os dados do Registo Oncológico Nacional (RON). Para os especialistas, há, de facto, uma tendência crescente e que preocupa. Mas não só: traz desafios extra.

Nota-se que há realmente um aumento dos casos de cancro em pessoas com menos de 50 anos desde 2001, mas, na evolução do cancro, o que se vê é que há um aumento também nos indivíduos com mais de 50 anos. As taxas de cancro estão a aumentar de forma geral”, começa por explicar Maria José Bento, médica epidemiologista, docente no Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar (ICBAS) e coordenadora do Registo Nacional Oncológico.

Em Portugal, e somando os diagnósticos para todas as idades divulgados pelo RON, foram diagnosticados 50.151 novos casos de cancro em 2018, 57.878 em 2019 e 52.723 em 2020. E deste valor, destaca José Dinis, diretor do Programa Nacional para as Doenças Oncológicas e responsável pela unidade de investigação clínica do IPO Porto, “cerca de 15% de todos os cancros são em pessoas com menos de 50 anos”. “Há uma tendência crescente, sim senhora, mas não há nenhum fenómeno do Entroncamento”, diz, apelando a uma maior investigação das causas e a um menor “alarmismo”, embora reconheça que nem sempre é fácil saber qual a real causa deste aumento.

O crescimento de casos de cancro em pessoas com menos de 50 anos acompanha uma tendência mundial (que se estima que se mantenha até 2050), mas ainda assim faz soar os alertas pela incerteza do que está, de facto, a desencadear este cenário e pela faixa etária em si: jovem, fértil, ativa.

Uma coisa é aumentar [o número de casos de cancro em] 20% em pessoas mais idosas do que em indivíduos mais novos, o impacto e alarme social são maiores quando surge em pessoas mais novas. Há um impacto na perda de capacidade de produtividade, na sociedade e até na estrutura familiar”, destaca Miguel Barbosa, diretor do Serviço de Oncologia Médica do Centro Hospitalar Universitário São João.

Doença com impacto numa idade ‘crítica’

Qualquer cancro, em qualquer idade, é motivo de preocupação, dizem-nos os especialistas, mas o facto de a doença oncológica não ser apenas uma ‘coisa’ de pessoas mais velhas traz novos desafios. José Luís Passos Coelho, presidente da Sociedade Portuguesa de Oncologia, diz que os cancros em idades mais jovens, como no início da vida adulta, “marcam” os médicos. Na sua consulta, a paciente mais nova com cancro da mama tinha 18 anos. “É raro, mas estes ficam na nossa memória”.

Quando o cancro é diagnosticado nas duas primeiras décadas de vida adulta, que coincidem com o começo da vida laboral, “há um aumento e impacto maiores em termos económicos na sociedade”, adianta Miguel Barbosa, oncologista do São João, dizendo que não se refere “apenas ao custo de tratamento”, que é cada vez mais dispendioso: cada paciente pode custar entre 60 mil a 90 mil euros ao Estado. O especialista fala também “na capacidade de produção da pessoa, que fica comprometida quando o cancro surge nos mais jovens”. E isso resulta num maior absentismo laboral que, por consequência, tem repercussões negativas na economia. A título de exemplo, e segundo o relatório Impacto Económico e Psicossocial do Cancro da Mama em Portugal, divulgado pela Liga Portuguesa Contra o Cancro (LPCC), em 2021, a produtividade perdida devido ao cancro da mama foi estimada em 1.128 milhões de euros. 

Nas mulheres portuguesas com menos de 50 anos, os dois cancros mais comuns são os da mama e tiroide; nos homens portugueses são os do colorretal, testículo e linfoma não Hodgkin, segundo Maria José Bento, do RON. Todos eles impactantes e com potencial para deixar marcas no corpo. Fátima Vaz destaca o impacto pessoal da doença oncológica, um impacto que se espelha na “autoimagem e autoestima”, algo que diz que é também notório e preocupante nestas faixas etárias, adianta a médica. “Ficam sequelas que vêm condicionar a forma como a vida é vivida”, acrescenta Miguel Barbosa.

A oncologista do IPO Lisboa reconhece que “o cancro ainda é uma doença com um peso social muito complexo”, não apenas no momento do diagnóstico, como durante o tratamento ou já numa fase de remissão. A solidão na qual muitos pacientes se refugiam “é um problema”.

Uma pessoa com 30 anos espera estar no apogeu profissional, constituir família, tem um plano e de repente cai-lhe um cancro em cima e isso tem impacto a vários níveis”, diz Fátima Vaz, médica oncológica há mais de três décadas e diretora do serviço de Oncologia Médica do IPO Lisboa. 

A oncologista do IPO Lisboa acrescenta ainda “a questão sexual, que é independente da questão da fertilidade”. Para além do cansaço, da dor e até da perda de sensibilidade nos órgãos sexuais, o cancro e/ou o tratamento oncológico podem ainda trazer mais barreiras a vida uma sexual ativa e prazerosa, uma vez que nas mulheres pode causar “secura vaginal, penetração difícil e/ou dolorosa, estreitamento ou atrofia vaginal”, e nos homens “disfunção erétil, ejaculação precoce”, como explica a LPCC. Mas um cancro no início da vida adulta pode resultar em infertilidade (não pela doença em si, mas pelos tratamentos) e, no caso das mulheres, também em menopausas precoces.

“O impacto é grande, não estou a desmerecer o impacto no pós-50 anos, em que a questão emocional e social continua a colocar-se”, frisa a médica do IPO Lisboa, que destaca que todos estes fatores são ainda motivo de preocupação pelo impacto na saúde mental que têm.

Porque é que o cancro abaixo dos 50 anos é um desafio para os médicos

Do stress à poluição ambiental, dos hábitos alimentares ao sedentarismo, do tabagismo ao maior consumo de álcool, da genética à herança que ninguém faz questão de ter. São muitos os fatores em cima da mesa quando o tema é cancro, aumentando, por vezes, a incerteza quando este aparece em faixas etárias mais jovens.

Paula Borralho,diretora clínica da CUF Oncologia, explica que "a incidência de casos, em população com menos de 50 anos, está relacionada com alterações do estilo de vida, com maior exposição a agentes carcinogénicos, e com uma maior consciencialização para medidas de vigilância mais ativas e realização de exames mais cedo na vida, resultando em diagnósticos mais precoces”. Ainda assim, nem sempre é possível encontrar uma razão concreta.

O cancro da mama, por exemplo, “é o maior responsável pelo aumento em pessoas com menos de 50 anos”, atira José Dinis, diretor do Programa Nacional para as Doenças Oncológicas, explicando que “a recomendação do Comissão Europeia é para que [o rastreio] se adapte a esta realidade”, podendo ser alargado a mulheres mais jovens. No entanto, falta ainda saber o porquê deste aumento de casos de neoplasias - uma incerteza que, diz-nos José Passos Coelho, se tem também feito sentir no cancro do testículo nesta faixa etária.

Fátima Vaz considera que pode ser resultado de uma maior “consciencialização” para a importância da palpação e de uma “maior oferta de testes e exames”, mas alerta que é “preocupante” quando o diagnóstico aparece em pessoas que “não estão cobertas por rastreios” e já apresentam sintomas, cenário que, a seu ver, torna ainda mais importante a avaliação genética e familiar precoce.

Já Maria José Bento não coloca cartas em cima da mesa, destaca que pode haver um sem-fim de causas para um mesmo cancro, como pode não haver, aparentemente, causa alguma. A médica e coordenadora do RON admite que “não sabemos ao que está ligado este aumento do cancro da mama em mulheres jovens, pode estar ligado a algum fator em crianças e adolescentes, alguma mudança no estilo de vida, na alimentação, a obesidade é um fator importante em termos de risco”, mas apressa-se a dizer que tudo isto é ainda “muito no campo na suposição”, faltando dados aprofundados sobre o tema. O que é certo, diz, é o impacto do estilo de vida e dos hábitos, com um peso considerável no cancro da mama, mas também noutros tipos de tumores que aparecem em pessoas mais novas. “São os fatores grandes de risco de cancro, como o tabaco, o álcool, tem sido implicado nas mulheres mais novas”, vinca a especialista em epidemiologia.

No entanto, perceber as causas e detetar precocemente não são os únicos desafios do cancro abaixo dos 50 anos. Fátima Vaz e Miguel Barbosa falam ainda no reverso da medalha quando o cancro surge cedo, um volte-face que se assume como um desafio médico, um jogo de cintura com o qual nem todos os pacientes conseguem lidar: a própria sobrevivência pode ser um desafio e um novo gatilho para a doença. 

O facto de sermos capazes de tratar com sucesso um número maior [de cancros], como há mais sobreviventes, há mais doentes com um segundo e terceiro diagnóstico de cancro, notamos que tem vindo a acontecer também nas pessoas mais jovens”, diz o diretor do Serviço de Oncologia Médica do Centro Hospitalar Universitário São João.

“Sou oncologista pura e dura e, como eu, muitos colegas estavam muito preparados para o cancro geriátrico, com treinos e estudos em geriatria. O cancro é uma doença das pessoas mais idosas, a maior parte dos nossos doentes têm mais de 50 anos, mas, mesmo não sendo mais frequente, temos de estar preparados para os cancros abaixo dos 50 anos”, diz Fátima Vaz, destacando que “há a necessidade de fazer planos de sobreviventes”, sobretudo pelo risco de existir “uma segunda neoplasia”.

Também José Passos Coelho destaca a sobrevivência e longevidade, mais evidentes quando os cancros são detetados em idades mais jovens, como um fator a ter em conta. “Mantendo tudo igual nas doenças e tratamentos, o simples facto de vivermos mais vai ser responsável por um maior número de cancros, apesar de a mortalidade estar a baixar”, diz o presidente da Sociedade Portuguesa de Oncologia.

Há um aumento, mas não uma epidemia

Vários estudos apontam para um aumento de novos casos nas faixas etárias mais baixas e os especialistas reconhecem a tendência crescente, mas deixam o alerta: a epidemia de cancro é global. E isso é igualmente preocupante.

“Epidemia seguramente não é”, atesta José Luís Passos Coelho, presidente da Sociedade Portuguesa de Oncologia, salientando que, de facto, há “um aumento”, mas que este não é “uma explosão”. Da mesma opinião é Miguel Barbosa. “Se é epidemia? Tenho dúvidas, porque se for é global e não especificamente relativa às pessoas mais novas. Mas acho que o mais correto seria dizer ‘epidemia de cancro que tem impacto significativo para a sociedade, sobretudo nas pessoas mais novas’”, vinca o médico Centro Hospitalar Universitário São João, onde trabalha.

Nesta unidade, em 2022, foram diagnosticados 679 casos de cancro entre os 20 e os 49 anos, 14% do total de 4.739 diagnósticos. Não há, no entanto, dados comparativos com anos anteriores, mas Miguel Barbosa não nega que “o número é mais baixo em pessoas mais novas, mas tem vindo a crescer”.

O aumento de diagnósticos nesta faixa etária é também notório no setor privado - onde há vários anos cresce o número de pessoas lá tratadas em casos de doença oncológica. À CNN Portugal, a CUF revela que entre 2021 e 2022 diagnosticou 10.890 casos de cancro e que mais de 18% dos doentes tinham menos de 50 anos. Nesta faixa etária, foram os tumores da tiroide, ginecológicos, melanoma e da mama os mais comuns. A CNN Portugal também conctactou o Hospital da Luz e os Lusíadas, mas não obteve uma resposta em tempo útil.

Numa resposta por escrito, o IPO de Lisboa partilhou com a CNN Portugal dados mais recentes sobre o número de pessoas entre os 18 e 49 anos diagnosticadas e em tratamentos nesta unidade. Embora tenha deixado a ressalva de que os dados de 2023 ainda não estão fechados, o IPO de Lisboa revela que, entre 2020 e 2023, o número de casos lá registados com diagnóstico de cancro nesta faixa etária "ronda os 4.400, dos quais 27% correspondem a cancro da mama, 12% a linfomas, 12% a tiroide e outras glândulas endócrinas, 11% são casos de cancros ginecológicos e 8% de digestivos". Também entre 2020 e 2023, estiveram em tratamento quatro mil casos de cancro diagnosticados em adultos com menos de 50 anos.

Fátima Vaz reconhece que no IPO de Lisboa “há um aumento sustentado” de novos cancros em pessoas com menos de 50 anos, uma “tendência” que diz ser “a nível nacional”, rejeitando também um cenário de epidemia, que, segundo diz, apenas “alarma”. Dos “mais de 12 mil” pacientes [de todas as idades] com cancro que esta unidade atualmente trata, cerca de “30%” têm menos de 50 anos, mas a médica apressa-se a dizer que só na Clínica de Risco Familiar do IPO Lisboa estão a ser seguidas 1.866 pessoas que apresentam algum tipo de “mutação”. “Estamos a tentar detetar precocemente o cancro, para que haja um tratamento precoce e uma remissão completa”, explica.

Relativamente a este campo da genética e da herança familiar, Miguel Barbosa diz mesmo que pode ser uma das “dimensões que podem travar o cancro nos mais novos” em Portugal - “a primeira é a prevenção e são rastreios e hábitos de vida saudáveis”, afirma. “A maior parte de instituições de saúde estão a desenvolver consultas de aconselhamento genético e de hereditariedade, que não deve ser desprezível. Há um grande avanço em termos de conhecimento nessa área, os testes que fazíamos em 2018 são diferentes de 2024, agora são mais alargados e conseguem ir mais fundo. Mas a avaliação não é para a pessoa saudável, é para os que estão doentes, pegamos no fio do novelo e avaliamos os familiares saudáveis”, explica o médico do São João.

Mas nem tudo são más notícias. “Apesar de tudo o que se diz, temos muito para melhorar, mas não partimos de uma parte má”, adianta Fátima Vaz, destacando a importância de aumentar “a literacia” nutricional e os hábitos de exercício físico, mas destacando ainda os bons resultados em alguns tipos de cancro, os mesmos destacados pelo médico José Dinis, que salienta que há uma diminuição no cancro do estômago nos homens e mulheres, no cancro do colo do útero também para as mulheres, dizendo que tal se deve, sobretudo, ao “rastreio e vacinação”, e da cabeça e pescoço e do pulmão também nos homens.

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