Na Europa as regras já eram diferentes, mas a empresa norte-americana "contorna-as de forma maquiavélica"
O “poder do monopólio no mercado dos telemóveis” com o famoso iPhone está a custar à Apple uma queixa de violação das leis anti-monopólio, apresentada pelo Departamento de Justiça dos Estados Unidos (EUA), juntamente com mais de uma dúzia de estados norte-americanos. Com esta ação judicial a juntar-se à proibição das patentes que permitem que os relógios inteligentes da marca (Apple Watch) contabilizem o oxigénio no sangue em território norte-americano, podemos estar a assistir ao início do fim de um império tecnológico que se cimentou nas nossas vidas no início do século.
“É o fim da enorme muralha de pedra que o iPhone conseguiu construir à volta de si mesmo”, garante Ricardo Lafuente, presidente da D3 - Defesa dos Direitos Digitais, alertando que tal não é, contudo, sinónimo da segunda morte da marca - a primeira deu-se em 1996, quando se debateu com dificuldades, cuja sobrevivência ficou dependente da conclusão de um novo sistema operativo, com Steve Jobs a regressar e a fazer renascer a Apple.
Em vez disso, vai surgir o que Paulo Trezentos, co-fundador da Aptoide, plataforma aberta para distribuição e descoberta de aplicações móveis Android, descreve como uma “mudança estrutural, uma mudança das leis”, que já “começa a acontecer nos tribunais”.
Com o pesado processo anti-monopólio, o jogo da concorrência pode alterar-se e a Apple deixar de "ditar todas as regras do mercado", como acontecia até agora. “O processo prende-se com consequências de um ecossistema fechado da Apple num mercado com livre concorrência, porque a empresa limita as faixas de apps que podem entrar. É uma violação de qualquer princípio de mercado livre”, explica Ricardo Lafuente.
Em causa está a porta que a Apple fecha, não permitindo que inúmeras aplicações entrem no seu ecossistema, através da Apple Store. “No Android sempre foi possível instalar outras apps, na Apple não. O iPhone é uma plataforma fechada e não se consegue instalar aplicações de terceiros e isso sempre condicionou a concorrência”, explica Paulo Trezentos. Exemplos disso são aplicações como a Nova Launcher - serve para editar o ecrã principal - ou o Files da Google - para arquivar ficheiros. Nenhuma destas apps está disponível na App Store da Apple.
O co-fundador da Aptoide diz ainda que o monopólio é “uma proteção artificial de determinado mercado” e garante que, no caso da Apple, “afeta toda a gente e todos os níveis da concorrência”, desde as grandes às pequenas empresas.
O presidente da D3 vai mais longe e fala de um “abuso de poder” da gigante tecnológica, que, com as consequências que podem advir do processo instaurado nos EUA, fará com que seja “mais fácil e menos dispendioso ter acesso a apps que corram em iPhone”, abrindo portas a outras marcas tecnológicas. “Desbloqueará uma fatia de mercado. Outras empresas como a Google ou a Huawei beneficiarão e haverá vantagens óbvias para os consumidores, como a verdadeira liberdade de escolha. É a concorrência a funcionar”, garante.
Uma das empresas que pode precisamente sair beneficiada desta situação é a Aptoide, a plataforma que distribui abertamente aplicações móveis Android. Segundo o co-fundador Paulo Trezentos, a tecnológica vai ser “uma das primeiras que vai disponibilizar apps”.
“Este é um ponto chave na história do mercado da tecnologia”, garante Ricardo Lafuente, que fala de um “processo que tem toda a razão de ser mas que peca por tardio”. Tardias podem também ser as “mudanças” que Paulo Trezentos mencionava. “A justiça norte-americana costuma ser mais rápida, mas estes casos têm de passar para os reguladores e isso não vai acontecer antes das eleições norte-americanas”, admite Paulo Trezentos.
Já Arlindo Oliveira, especialista em Inteligência Artificial, não acredita que a queixa do Departamento de Justiça dos EUA vá ser “particularmente bem-sucedida”. “Percebo que queiram fazer pressão para evitar monopólios e, mesmo que a Apple seja obrigada a alterar os procedimentos, não estou convencido que haja um impacto profundo”, diz, garantindo que “vai haver sempre vantagens em estar dentro do ecossistema da Apple”.
Para o ex-presidente do Instituto Superior Técnico, o crescimento de outras marcas a partir deste acontecimento é também “difícil”. “O mercado é tão partido entre a Apple e as marcas não Apple que, mesmo que ganhassem, teriam de disputar entre si”, afirma, apontando como consequência um “pequeno abalo no valor da Apple em bolsa”, que poderá estar na ordem dos 5% a 10%.
De resto, dados do início deste ano apontam que em 2023 foram vendidos 234 milhões de iPhones em todo o mundo, fazendo da Apple a marca mais vendida no globo no ano passado, destronando a Samsung, que ocupava o topo há mais de dez anos.
UE chegou primeiro às restrições, Apple "contorna-as de forma maquiavélica"
A Europa está “um pouco à frente” dos EUA no que toca à regulação ao “escrutínio das grandes tecnológicas”, garante Ricardo Lafuente, presidente da D3 - Defesa dos Direitos Digitais. Isto porque adotou a Lei dos Mercados Digitais, que já “obriga a Apple a abrir mais o ecossistema” à concorrência.
Mas a empresa parece estar a “contornar o espírito” da medida, o que já levou representantes europeus a referir a abertura de investigações à empresa. “A Apple consegue ter suficiente flexibilidade para responder à letra da lei, mas torná-la inconveniente na mesma”, afirma Arlindo Oliveira, ex-presidente do Instituto Superior Técnico.
Segundo os especialistas, a gigante tecnológica tem colocado um “um conjunto de exigências” aos que querem aderir ao ecossistema tipicamente fechado, através de um processo de aprovação e do pagamento de taxas.
Para Ricardo Lafuente, a gigante tecnológica está a “fazer uma tática muito baixa de cumprir a lei à risca mas com má fé e está a tentar contorná-la de forma maquiavélica”.