A visita

28 abr 2022, 20:44

O Secretário-Geral das Nações Unidas foi a Moscovo e, depois, à Ucrânia. Esta visita foi antecedida de uma pressão global muito intensa, em que até se envolveram alguns ex-altos responsáveis da Organização, incluindo um, suponho que ex-vice-Secretário-Geral, até hoje desconhecido do comum dos mortais. Será desconhecido, será. Mas, por estes dias, perora doutamente e de forma incansável sobre o assunto – inclusive, antevendo, devido à alegada hesitação de Guterres, o fim do Mundo ou, vá, o fim das Nações Unidas. Guterres devia ter ido sem perguntar ou combinar, Guterres está atrasado, Guterres devia ter ido primeiro a Kiev, Guterres não deve ficar-se pelas referências ao direito internacional humanitário, Guterres sentou-se de forma indolente perante Putin, Guterres isto, Guterres aquilo e um par de botas.

Tenho por certo que interessarmo-nos por estes assuntos é, por definição, muito bom – a afirmação é feita sem qualquer ironia. Torna-nos mais atentos às coisas do Mundo, abre-nos os olhos sobre os impactos na nossa vida de um conflito que se desenrola a milhares de quilómetros de distância.

Simplesmente, há quem continue a pensar que, por ser uma organização internacional, as Nações Unidas põem e dispõem do mandato que lhes comete a Carta. Realmente, põem e dispõem, não há como dizer o contrário. Mas, no que se refere à manutenção da paz e segurança internacionais, o papel decisivo, para o bem e para o mal, é do Conselho de Segurança. Deve dizer-se, por outro lado, que outra qualquer solução seria esdrúxula, por mais que uma certa propaganda crítica insista no assunto.

Transferir o poder do Conselho para a Assembleia Geral? Parece uma grande ideia, vamos então testá-la. Na agenda, sugiro então, desde já, dois tópicos, com a certeza de que conseguirão aprovação (é certo que por maioria). O primeiro, a adoção de uma resolução que, considerando o ato continuado de agressão russo a contar de 24 de fevereiro, autoriza todos os Estados Membros a usarem a força contra a Federação Russa, para assim a obrigarem a recuar para as suas fronteiras anteriores a 2014. Na resolução, até se pode fazer “copy-paste” da fórmula usada pelo Conselho de Segurança: os Estados podem recorrer a “todos os meios necessários”. Pronto, quem quiser está, doravante, autorizado a enviar as suas forças (aéreas, terrestres ou navais) para a zona, para auxiliar a Ucrânia.

Quem começa? Como assim, ninguém? Mas, afinal, não era por causa da impotência das Nações Unidas e do seu declínio irreversível que (alegadamente) a Ucrânia era deixada sem ajuda? Não foi por causa das hesitações do Secretário-Geral que as coisas resvalaram para este estado de coisas?

Bom, talvez os críticos prefiram o modelo mais puro, da origem da Carta, aquele em que os Estados Membros das Nações Unidas fornecem diretamente meios ao Conselho para que este, sob a bandeira da Organização, lance as forças internacionais contra o invasor – e pelo caminho, até se agradecia uma passagem pelo Iémen, pela Síria, pela República Centro-Africana e, já que aqui estamos, por Moçambique. Como? Nem um soldado? Nem nada? É curioso.

Temos, então, que enfrentar a questão da impunidade dos crimes internacionais. Nestas coisas, deve imitar-se aquilo que já foi feito e bem feito. Modifica-se o Estatuto do Tribunal Penal Internacional, para que todos os Estados, sem exceção, fiquem sujeitos àquela jurisdição. E, se for necessário, a Assembleia Geral, com os poderes que antes eram do Conselho de Segurança, cria forças militares robustas para, se necessário usando a força, executarem mandados de detenção onde quer que seja, contra quem quer que seja. Excelente solução, uma vez que ninguém, qualquer que seja a sua nacionalidade, pode considerar-se acima do direito e da justiça. Não é? Assim, até se superam os limites inevitáveis da proposta do Presidente Zelensky, que quer apenas um Tribunal Internacional para julgar a Rússia…

Prefiro nem continuar a desenvolver estas hipóteses “heroicas”, para que ninguém fique sujeito a acessos de melancolia.

O meu ponto, porém, nem é negativo ou pessimista. O que se está a fazer pela Ucrânia é algo que, há dois meses e alguns dias, ninguém considerava viável. Continuar a insistir, nem que seja por razões de “pressão” e propaganda, em algo que não é verdadeiro é que acaba por se mostrar contraproducente, de tal forma a objeção é fácil.

Por outro lado, é bom que não esquecemos outra coisa. O Presidente russo quis discutir com António Guterres a Carta das Nações Unidas, e, especificamente os artigos 2, n.º 4 (que proíbe a ameaça e uso da força nas relações internacionais) e 51 (que fala sobre o direito de legítima defesa). Quem diria, temos jurista! Não, não temos. António Guterres respondeu-lhe, da mesma forma como já tinha colocado Sergei Lavrov no seu lugar. Bastou-lhe uma palavra: invasão. E também na Ucrânia e, mais tarde, com o Presidente ucraniano, António Guterres disse o que tinha que ser dito. Que os crimes internacionais cometidos nesta guerra têm de ser investigados e responsabilizados os seus autores; que aquilo que mais o aflige são os civis, as primeiras e maiores vítimas de qualquer conflito; que, no séc. XXI, as guerras são um absurdo; que a sua prioridade primeira, no meio do horror, é Mariupol e, nesta, aqueles que se encontram nas instalações da Azovstal.

Aqueles, quem? Os civis, acho que ninguém se atreverá a questionar. Mas, e os combatentes? Sabemos o que a Ucrânia quer, e Zelensky verbalizou-o: para a Ucrânia, é crucial que que sejam salvos e “libertados” os elementos militares que se encontram naquelas instalações industriais. Mas, libertados para serem detidos pela Rússia como prisioneiros de guerra, ou uma solução “premium”, em que saem, regressam às suas posições e continuam a combater o invasor?

Esta, por estranho que possam parecer tanto cuidado e desvelo com a sua sorte, quando olhamos à volta e só “vemos” cemitérios cheios e relatos de horror contra mulheres, idosos e crianças, é uma das “questões” enormes desta guerra, e a Rússia, que até pode parecer, mas não anda a dormir, já compreendeu há muito que o tempo joga aqui, e talvez só aqui, a seu favor.

Veremos o que o tempo nos dirá. Por enquanto, tem-nos dito quase só coisas más, mesmo admitindo-se que, como escreveu Mathias Enard (e tanto o recomendo), a guerra e o ato de matar possam ter uma estética. Ei-lo, a dar voz a um franco-atirador que procurava a perfeição: “Estou ali, nesse instante. Vivo no intervalo, entra a ação sobre o gatilho e a chegada do projétil. Desvaneço-me no ar, entre eu mesmo e outro, soberano. Esse desaparecimento é fecundo. É um prazer imenso. Há que ser digno dele, saber fazê-lo chegar”.


Mathias Enard, “La perfection du tir”, Éditions Acte Sud, Paris, 2016; ou, na tradução espanhola (aquela que agora li), “La perfección del tiro”, Penguin Random House, Barcelona, 2022. 

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