António Costa considera que o país não teve um Presidente da República à altura das circunstâncias (a entrevista na íntegra)

12 dez 2023, 10:30

Quem perdeu "uma boa oportunidade de gerir a estabilidade"? Marcelo. Quem é culpado da "dissolução do Parlamento"? Marcelo. Quem é culpado de ir contra "o próprio Conselho de Estado"? Marcelo. Quem é culpado da "crise" em curso? Marcelo. Costa responsabiliza o Presidente e fica à espera de ver como é que os portugueses vão julgar o chefe do Estado. E Costa diz que ele próprio teria ficado à espera para decidir se se demitia ou não mas que não o deixaram: culpa "um parágrafo acrescentado" num comunicado da Procuradoria-Geral da República mas admite que ponderaria demitir-se também devido aos 75.000€ em dinheiro vivo encontrados no gabinete do seu chefe de gabinete, Vítor Escária. Entrevista à TVI/CNN Portugal: transcrição + vídeo na íntegra

Boa noite, estamos em simultâneo na TVI e na CNN Portugal para a entrevista ao primeiro-ministro António Costa. Trinta anos é muito tempo. E vamos falar certamente deles ao longo desta hora de conversa, praticamente. Mas eu queria aqui uma janela mais curta, para já. O senhor não se arrepende de não ter aceitado aquela proposta do doutor Rui Rio há dois anos, que constava do programa eleitoral do PSD, para, no fundo, reformular os aspetos da Justiça? Lembra-se da proposta do PSD?
Boa noite. Bom, as minhas convicções não mudam de acordo com as circunstâncias. A proposta do doutor Rui Rio, do PSD, era uma proposta que passava por reduzir a autonomia do Ministério Público. Eu entendo que Portugal tem, a nossa democracia tem, uma enorme vantagem em que temos uma Justiça independente, temos um Ministério Público autónomo e em que ninguém está acima da lei. Como disse várias vezes, na Europa, eu próprio não estou acima da lei. E acho que isso é uma garantia boa para a democracia portuguesa. Se há suspeitas, elas são investigadas e elas são apuradas. E não é pelas circunstâncias terem mudado que eu mudei as minhas convicções, porque essas são muito firmes. E não é por este ou aquele agente da Justiça poder agir incorretamente que eu deixo de crer no sistema de Justiça. E acredito que o sistema de Justiça funciona.

Vamos voltar ao dia 7 de novembro. Quando vai a Belém, quando pede para falar com o Presidente da República às 08:30, disse-o hoje, o que é que estava no seu espírito? O que é que já sabia?
Sabe que eu tenho uma regra e que vou manter.

Eu não lhe peço que conte a conversa com o Presidente da República. Eu peço-lhe que nos dê, que partilhe connosco, que o faça talvez pela primeira vez, aquilo que estava no seu espírito àquela hora.
Sim. Bom, àquela hora eu sabia que estavam a decorrer buscas na residência oficial. Pouco depois, aliás, foram tornadas públicas. As pessoas que estavam detidas, o que estava a ocorrer. Eu entendi que devia avaliar as condições para me manter nas minhas funções. Quis expor as minhas dúvidas ao Presidente da República, quis ouvir a opinião do Presidente da República. Bom, como sabe, foi muito pouco tempo para subsistirem dúvidas, porque antes do final da manhã a Procuradora-Geral da República oficializou uma suspeição a meu respeito, que do meu ponto de vista, para a proteção da dignidade do cargo que exerço, exigia a minha demissão.

Como disse na altura e hoje mantenho, tenho a minha consciência absolutamente tranquila sobre o que fiz ou o que deixei de fazer e, portanto, estou totalmente disponível para colaborar com a Justiça, se e quando a Justiça entender que eu deva colaborar com a Justiça. Agora, uma coisa é a avaliação de António Costa, ou até a proteção da função de primeiro-ministro e, a mim, cabe-me, em primeiro lugar, defender institucionalmente a dignidade dessa função, que não é compatível com haver uma suspeição oficializada através de um comunicado.

Mas naquela baliza horária, se é que posso utilizar esta expressão, entre o seu primeiro encontro, a sua primeira ida a Belém, e a sua segunda ida a Belém, o senhor hoje - julgo que a expressão foi esta - diz que terá sido enxertado um parágrafo no comunicado da Procuradoria. Foi essa a impressão com a qual ficou? E, portanto, esse é o parágrafo que lhe diz respeito? E esse é o parágrafo que o faz, talvez, tomar a decisão, ou não?
Eu tinha, obviamente, de avaliar em função das circunstâncias. Sem esse parágrafo, provavelmente, teria aguardado pela avaliação, pelo juiz de instrução, pelo conjunto de indícios que existia. Como sabe, em menos de uma semana, o juiz de instrução concluiu que várias suspeitas que existiam não considerou indiciadas. Por exemplo, o presidente da Câmara de Sines saiu do tribunal depois de sete dias de ter estado detido sem qualquer indício da prática de qualquer crime. Os indícios de crime de corrupção não foram reconhecidos, os indícios de crime de prevaricação não foram reconhecidos.

Agora, aquele parágrafo é um parágrafo que é acrescentado, claramente, àquele comunicado. Além do mais, diz uma expressão assim do género, para dar notícia pública de que há uma suspeita sobre o primeiro-ministro que está a ser investigada. Eu não sei qual é a suspeita. Ainda hoje não sei, ninguém me falou, ninguém me perguntou, ninguém me pôs nenhuma questão, portanto, não faço ideia o que é que seja.

Não procura saber?
Não, não me compete a mim procurar saber. Agora, há uma coisa sobre a qual eu tirei uma imediata conclusão. O grau de confiança que os cidadãos têm de ter nas instituições democráticas e, designadamente, na figura do primeiro-ministro, não são compatíveis com uma suspeição oficializada.

Uma coisa é um órgão de comunicação social levantar esta ou aquela dúvida, a oposição levantar esta ou aquela dúvida. Outra coisa é a mais alta magistrada do Ministério Público emitir um comunicado onde entende dar a notícia pública de que está aberto um processo quanto ao primeiro-ministro.

Eu só posso tirar duas conclusões: ou as suspeitas são suficientemente fundadas e graves que justificam a sua publicidade...

E do seu ponto de vista, não são? 
Eu não faço ideia, porque eu não sei do que é que suspeitam. Há uma coisa que eu sei: eu sei tudo o que fiz, e sei também o que é que eu não fiz. E perante o que eu fiz e perante o que eu não fiz, não tenho a menor das dúvidas que isto acabará tudo ou com uma não acusação, ou com um arquivamento se houver acusação, ou, no limite, com uma absolvição se houver alguma, chegando à fase de julgamento. Agora, para isso, preciso de saber do que é que estão a falar. Como eu sei bem, há uma coisa sobre a qual não tenho dúvidas. Sei o que fiz. Sei o que não fiz. E portanto tenho a minha consciência absolutamente tranquila.

Agora, o que também sei, é esse o meu entendimento, é que a figura de um primeiro-ministro não pode estar sob suspeição oficial. E perante essa suspeição oficializada, tirei a conclusão óbvia e, portanto, quando voltei a falar com o Presidente da República foi para dizer o óbvio. Foi para dizer que ia apresentar a minha demissão, o que depois fiz logo a seguir. Agora, é aguardar.

Eu quero ir à natureza política também da decisão, evidentemente, mas acha que houve imprudência por parte da procuradora? Imprudência, pelo menos?
Olhe, eu não vou avaliar o trabalho da senhora procuradora-geral da República, nem do Ministério Público. Sempre disse, "à Justiça o que é da Justiça, à política o que é da política".

A única esperança que eu tenho é que a Justiça trate com a diligência possível este caso, que ele seja esclarecido. É do meu interesse, como é óbvio, que isto seja esclarecido, acho que é do interesse geral dos portugueses saberem se podem confiar na pessoa em quem confiaram para ser primeiro-ministro ao longo destes anos. É bom para a imagem internacional do país, porque talvez não tenham noção do impacto internacional que este caso teve. Portanto, acho que é bom que as coisas se esclareçam. Eu sei que a Justiça tem um tempo próprio, que não é o tempo do noticiário.

Não é o tempo dos media.
Não é o tempo dos media, não é o tempo da vida das pessoas, é o tempo que é. Eu estou conformado, estou magoado, mas estou conformado. E aguardo serenamente que a Justiça tome uma decisão sobre o que é que vai fazer, se vai mesmo avançar com o inquérito, se me vai constituir arguido, se não me vai constituir arguido. Não sei.

Portanto, como sei exatamente o mesmo que sabia naquela altura não posso acrescentar muito.

Do que o ouvi dizer esta manhã e do que o estou a ouvir dizer agora, posso talvez chegar à conclusão que, sem o parágrafo, talvez tivesse esperado pelo final das diligências e pela posição dos juízes de instrução. Estou certo ou estou errado?
Não lhe posso dizer com certeza, porque é muito difícil saber o que é que faríamos numa circunstância diferente daquela que efetivamente vivemos. Que eu ponderei, claro que ponderei, senão não tinha contactado o Presidente da República às 08:30, não teria o senhor Presidente da República tido o incómodo de me receber logo às 09:30. Foi uma questão que ponderei, estava a ponderar, com os factos que existiam naquela altura. Depois houve factos novos que eu não conhecia naquela altura e que podiam ter contribuído seriamente para que eu tivesse tomado esta decisão, independentemente do comunicado.

Está a falar designadamente do dinheiro que é encontrado no gabinete do seu chefe de gabinete.
Sim, designadamente. É um facto que só é conhecido no dia seguinte. Poder-me-ia ter levado a tomar esta decisão.

E o senhor não o conheceu antes, de facto?
Desconhecia totalmente. Totalmente. E ou teria esperado pela avaliação que o juiz de instrução fizesse, não lhe posso dizer... A única coisa que lhe posso dizer é o seguinte, é que no momento em que o comunicado saiu, em que eu tomei conhecimento do comunicado, não tive a menor das dúvidas que só tinha um caminho a fazer. Falei com a minha mulher, que gosto de ouvir nestes momentos, porque é sempre uma voz de serenidade que evita algumas decisões precipitadas. E ela disse-me, óbvio, que era o que eu tinha a fazer e foi isso que eu comuniquei ao Presidente da República.

E falou com os seus conselheiros políticos? Hoje vimos uma reunião do seu gabinete de coordenação. Falou com algumas daquelas pessoas também?
Claro que falei com algumas dessas pessoas, mas sabe que há decisões que se tomam solitariamente, porque é só o próprio que as pode tomar e tirar as consequências delas.

Enfim, sobre esse caso, eu acho que agora o que todos podemos fazer é esperar que a Justiça faça o seu trabalho e, como digo, não é por esta circunstância ser-me pessoalmente desagradável que isso afeta, no que quer que seja a minha confiança no sistema de Justiça. E eu distingo bem o que é a atuação do agente A, ou do agente B, ou do agente C e aquilo que é o sistema de Justiça. E o sistema de Justiça é um sistema que assenta em quem investiga, em quem acusa, em quem defende e, finalmente, em quem julga. E é no conjunto desse sistema que eu confio e cá estaremos para ver.

A procuradora hoje fez uma defesa, enfim, muito assertiva da sua corporação, normalmente é assim que acontece. Disse que o Ministério Público é uma instituição que está incólume perante tudo aquilo que se passa. Deu a entender que não será afetada por tentativas de intervenção externa. Leu aí alguma crítica em relação ao que tem dito ou outras pessoas da área do Partido Socialista?
Eu devo ser um dos maiores defensores do estatuto da autonomia do Ministério Público. Quando me perguntou há bocado se eu estou arrependido de não ter aceitado as propostas do doutor Rui Rio, eu não estou nada arrependido e acho que o estatuto da autonomia do Ministério Público é uma enorme vantagem. É muito original. Não conheço na Europa nenhuma instituição onde o Ministério Público tenha o mesmo grau de autonomia que tem em Portugal. Nuns casos maior, noutros casos menor, como em Portugal não há. Sempre entendi isso como uma vantagem e continuo a achar.

O estatuto é um estatuto completo. E complexo também. É um estatuto que exige autonomia, mas também não é por acaso que está estruturado numa relação hierárquica. E essa relação hierárquica não pode deixar de ser exercida. E essa relação hierárquica responde politicamente, como deve responder.

Obviamente, quando o sistema se desequilibra na integralidade do seu desenho, as coisas podem não funcionar melhor. Mas, como digo, se eu antes não comentava, não é agora que vou comentar, porque agora estou na posição de quem está a ser investigado, presumo eu, porque é o que foi dito. E, portanto, devo aguardar serenamente aquilo que vier a ser o resultado da investigação do Ministério Público da minha parte.

Como sabe, o que eu tenho dito, aliás, ao PS, é que o PS primeiro deve manter-se à parte desta história, porque não tem nada a ver com o PS. Segundo lugar, tem de se focar naquilo que é essencial, que é apresentar o balanço destes anos de governação, é apresentar um programa renovado para o próximo ato eleitoral, ter uma nova liderança, com nova energia, que dê um novo impulso ao Partido Socialista, e focar-se no dia 10 de março.

E não tratar da Justiça?
E não tratar deste caso. Porque este caso é um caso que não tem nada a ver com o PS. Tem a ver com um conjunto de pessoas que são arguidas.

Terá eventualmente a ver comigo, fazendo fé no que diz a senhora procuradora-geral da República.

Gostava de o ouvir sobre este caso, talvez me diga que não o quer comentar, mas alguém que foi ministro do seu Governo até há pouco tempo, foi secretário de Estado do seu Governo, que foi deputado também nestas legislaturas, João Galamba, foi alvo de escutas durante quatro anos, mais de 80 mil escutas. O senhor acha que isto é normal, faz sentido?
Eu não posso comentar um caso concreto que não conheço, se me perguntam se é estranho, aparenta ser, mas seguramente se essas escutas existiram foi porque houve um magistrado judicial que as autorizou e que as validou. Vi também no jornal que de 82 mil escutas, verdadeiramente só 10 é que foram relevantes para a prova.

Não vou comentar aquilo que só conheço através da comunicação social, João Galamba tem advogado para o defender, para agir e para exercer os seus direitos de defesa, usando todos os direitos de defesa que tem.

Sobre o doutor João Galamba só tenho a dizer duas coisas: primeiro, foi um excelente secretário de Estado de Energia e estava a exercer uma excelente função como ministro das Infraestruturas. Se a Justiça tem alguma coisa contra o doutor João Galamba, que investigue, que acuse, que prove e que julgue, e até lá, goza toda a presunção da inocência.

Vamos voltar àquela semana de 7 de novembro, aos dias que se seguem. O senhor apresenta ao Presidente da República o nome do professor Mário Centeno e, portanto, no fundo, a ideia de que o PS pode completar a legislatura. Pode completar a legislatura ou formar Governo durante mais um ano? Porque isso não ficou muito claro. Consegue esclarecer-me?
Nós vivemos num mundo de enorme turbulência. Nós temos uma guerra na Europa, que deixou de estar a abrir os telejornais, mas continua, resultante da invasão da Ucrânia pela Rússia, que teve um fortíssimo impacto na inflação, teve um fortíssimo impacto na subida das taxas de juros, é altamente perturbadora da nossa vida. Temos um novo conflito gravíssimo no Médio Oriente, que dificilmente não vai impactar muito significativamente nos custos da energia. Temos um conjunto de fatores de instabilidade grande. Temos, por outro lado, um enorme desafio em cima da mesa, que é executar a tempo e horas o PRR.

E isso não recomendava interromper a legislatura, é isso?
Temos o PT2030 para executar. Temos uma população que está nitidamente saturada da quezília política. Está muito macerada. Foi a covid, dois anos de covid foram muito duros. Foi uma brutal inflação, que só agora é que começa a ser dominada. Foram famílias a sofrer imenso com a subida da taxa de juro. As pessoas, acho que desejam tudo menos uma crise política. E, portanto, devia-se ter feito tudo, do meu ponto de vista, para que essa crise política fosse evitada.

E o Presidente não avaliou bem, é o que me está a dizer.
Bom, isso não dou nenhuma novidade, porque já o disse a ele e já o disse publicamente. Acho que o Presidente da República fez uma avaliação errada. E só espero, só espero, que das eleições do próximo dia 10 de março resulte uma situação mais estável do que aquela que tínhamos atualmente.

Mas está a dizer-me isso com uma certa ironia. Só espera, mas acha que não vai acontecer.
Não, não estou a dizer com ironia nenhuma. Estou a dizer, provavelmente com otimismo, com desejo, num sentido patriótico para o país. Acho que para o país perdeu-se uma boa oportunidade de gerir a estabilidade. Aquilo que compete quando há uma demissão de um primeiro-ministro, primeiro, eu nunca concordei com essa ideia, nem conheço nenhum manual de direito constitucional que legitime a ideia de que quando o primeiro-ministro sai, por muito que tenha contribuído ele próprio para o resultado eleitoral, isso determine a dissolução da Assembleia. Foi uma teorização que o Presidente da República fez logo na tomada de posse do Governo. E eu na altura disse-lhe logo que não concordava com essa interpretação. Não conheço nenhum constitucionalista que valide que seja motivo de dissolução do Parlamento o facto de o primeiro-ministro apresentar a sua demissão.

Havia um antecedente que tinha corrido mal com Santana Lopes em 2004.
Bom, mas um exemplo que correu mal não significa que não haja um que possa correr bem.

Na circunstância, o Partido Socialista entendeu, eu entendi, que tínhamos uma alternativa à dissolução da Assembleia da República. E que era uma alternativa credível. Havia várias soluções possíveis, de vários nomes possíveis, uns tinham maior legitimidade partidária, outros tinham maior legitimidade institucional, outras personalidades que tinham grande reconhecimento junto da opinião pública e que podiam ter assegurado um bom Governo até ao termo da legislatura, ou porventura, se não fosse o caso, porque há sempre imprevistos, que evitassem que precipitadamente a legislatura tivesse terminado da forma como terminou. Não foi esse o entendimento do Presidente da República. Como sabe, nem sequer o Conselho de Estado apoiou a ideia da dissolução, como disse o Presidente da República.

O Conselho de Estado dividiu-se muito?
Não, houve um empate. E, portanto, como o Presidente da República disse, o Conselho de Estado não apoiou a proposta que foi apresentada de dissolução.

Acha que, de certa maneira, o Presidente fica refém desta decisão. E, portanto, as eleições que aí vêm podem ser também uma espécie de plebiscito ao Presidente?
Não, acho que não há plebiscitos em democracia, não há plebiscitos e, seguramente, estas eleições não são plebiscito ao Presidente da República.

Agora, obviamente, todos nós, com cada decisão que tomamos, somos depois julgados, necessariamente, pelos resultados das nossas decisões.

A demissão do primeiro-ministro foi, naquela circunstância, um ato de verticalidade para proteger a integralidade da figura do primeiro-ministro. Não foi sequer aquela situação que se tinha conjeturado anteriormente, que eu deixava este lugar para ir ocupar outro lugar. Seguramente, ninguém imagina que eu sonhasse, desejasse, ser colocado, ao fim de quase 30 anos de vida política, nesta situação de suspeição, como fui colocado através daquele comunicado. Portanto, foi uma decisão de proteção da figura do primeiro-ministro.

Eu acho, sinceramente, é o que eu penso, não pode ser outra coisa, que o Presidente da República tinha tido todas as condições para encontrar uma solução alternativa que poupasse o país a esta crise. Tenho a certeza absoluta de que quem nos está a ouvir em casa, ninguém deseja ir para eleições.

A última coisa que as pessoas pensam e desejam neste momento é irmos para eleições. Não há uma vaga de fundo no sentido da mudança, as pessoas estão tristes, foram anos muito duros, muito difíceis.

Com exceção do Partido Socialista, todos os outros partidos, com assento parlamentar, disseram o contrário.
É normal. É o jogo da democracia. A quem cabe avaliar os prós e os contras é o Presidente da República.

Mas o Presidente da República decidiu, está decidido, agora há eleições no dia 10 e aquilo que eu desejo, sem ironia nenhuma, é que saia uma solução estável. E não acredito em nenhuma solução estável que não tenha por base o Partido Socialista, porque acho, como aliás vimos hoje, com o fiasco da solução intentada por aquela barafunda que a direita organizou nos Açores, qualquer solução com base em arranjos entre o PSD, a Iniciativa Liberal, o Chega, o PPM, o CDS, bom, deu no que deu nos Açores. Nem três anos aquilo durou. Portanto, aquilo foi um ensaio geral do que o PSD pretende fazer a nível nacional. Não queremos imaginar, que vamos sair de março, das eleições de março, numa barafunda idêntica àquela que fizeram agora nos Açores. Foi um ensaio geral, foi um fiasco. Convém não repetir.

Portanto, a única solução estável possível das próximas eleições, 10 de março, é uma solução que tenha por base o Partido Socialista.

Quem o ouve parece que o senhor está em campanha.
Não, eu não. Eu sou militante do PS, desde os 14 anos. Farei a campanha que o líder do PS entenda que eu devo fazer, e sobre o qual há uma coisa que eu não tenho as dúvidas: a boa solução para o futuro do Governo de Portugal é dar continuidade a este processo de mudança que iniciámos em 2015, e isso implica um Governo do PS, e é um Governo do PS que consegue gerar estabilidade. Temos neste momento, felizmente, dois candidatos à liderança do PS.

Vamos falar disso.
Eu sou neutro nessa escolha, mas há uma coisa que me dá grande satisfação: qualquer um deles tem muito mais experiência, muito mais competência, e assegura muito melhores qualidades de governação do que o líder da oposição.

Temos de falar de temas que tocam a vida das pessoas, da saúde, da habitação, da educação, daquilo que se passa também com as finanças públicas, desde logo que, lateralmente, tocam a vida das pessoas. Mas fiquemos aqui no PS por instantes. Não tem mesmo um favorito, ou não pode ter?
Não, não tenho mesmo. Eu, aliás, sempre disse que era a última coisa que faria. Eu fui eleito líder do PS num momento de grande debate político, muito intenso, através de eleições primárias que o António José Seguro, em boa hora, organizou. Foi um debate muito vivo, esclarecedor. Tive uma vitória clara. E a minha primeira missão foi unir o Partido Socialista. Felizmente uni o PS, e o PS assim se manteve unido ao longo destes oito anos. Ambos os candidatos trabalharam comigo com grande proximidade. Um ainda é membro do meu Governo, o outro foi até muito recentemente membro do meu Governo. Tenho muita estima pelos dois.

Mas é indistinto para o PS ganhar um ou ganhar outro, dadas as personalidades?
Não, isso claro que não. E por isso o PS escolherá um ou escolherá outro. Só por milagre é que haverá um empate na votação. Há 60 mil eleitores. É virtualmente impossível que haja um empate. Do meu ponto de vista pessoal, sempre disse que nunca expressaria qualquer opinião em termos públicos, e estou muito satisfeito por o PS ter dois candidatos que qualquer deles é melhor que o líder da oposição.

O senhor tomou essa posição, mas há outros elementos destacados do partido que têm também funções importantes no partido. Estou a pensar no presidente do partido designadamente, e depois estou a pensar em alguém que, não tendo funções relevantes, é o presidente da Assembleia da República. Essas pessoas tomaram posição. Fizeram bem ou fizeram mal?
Eu acho que fizeram aquilo que a consciência lhes ditou. Aliás, como é normal nestas coisas, os diferentes militantes vão escolhendo um candidato ou outro candidato. O presidente do partido entendeu que, apesar de ser presidente do partido, devia tomar uma posição. O presidente da Assembleia da República, apesar de ser presidente da Assembleia da República, entendeu tomar uma posição, aliás, diversa. O secretário-geral adjunto do PS também entendeu dever tomar uma posição. O líder parlamentar também entendeu dever tomar uma posição. Cada um deles diversa. Mas isso é normal que aconteça. Aquilo que é essencial, e eu tenho a certeza que acontecerá, é que no dia 17 todos estaremos juntos em torno do novo líder e prontos para assegurar aquilo que é essencial.

Mas não me respondeu. O Carlos César fez bem ou fez mal em tomar uma posição? Porque ele é o presidente do partido.
Fez seguramente bem. Se foi o que lhe ditou a consciência, fez bem, naturalmente.

Como é que o senhor interpreta que pessoas - estou a falar de Pedro Nuno Santos, mas também de José Luís Carneiro - que, se calhar até à semana passada diziam uma coisa, por exemplo, em relação ao tempo dos professores, agora passem a dizer outra? Isso faz parte do jogo político? É que as pessoas não gostam muito disso. Não acha?
Eu não diria que é uma questão de jogo político. E também, olhe, vou já fazer uma declaração para o futuro, para ficarem todos libertos para o futuro. Este é um ciclo político que se encerra no Partido Socialista. Um ciclo que eu iniciei quando apresentei a minha candidatura à secretaria-geral em junho de 2014 e que agora encerrei em novembro de 2023.

E, portanto, está toda a gente de mãos livres.
Neste momento, o que é que é normal que o PS faça? É normal que o PS olhe, faça um balanço, o que é que correu bem, o que é que correu mal, o que é que não fizemos e podíamos fazer, que novos problemas é que exigem novas respostas, que novas abordagens é que devemos ter.

Portanto, eu acho perfeitamente normal, e nada me incomoda, que o Partido Socialista venha a eleger um líder que defenda coisas diversas daquelas que eu fiz. Eu fiz-las em consciência, e seguramente aquilo que o PS vai defender no futuro em grande parte há-de coincidir seguramente com aquilo que eu fiz, mas haverá seguramente muitas matérias sobre as quais irá tomar novas posições, e acho que isso é perfeitamente normal e legítimo, e acho que ninguém tem de estar a pensar "ah, mas essa posição é diferente daquela que o António Costa tomou". O António Costa, a partir do dia 17, é um militante de base do Partido Socialista. Aquilo que governei em nome do Partido Socialista tenho orgulho. Espero que o PS tenha orgulho destes oito anos de governação, que faça uma avaliação globalmente positiva.

O que seria estranho é que havendo uma nova liderança, no momento em que se encerra um ciclo, não haja uma reflexão geral, e as pessoas não digam "bom, há coisas que fizemos, podíamos ter feito diferente, vamos fazer diferente. Agora se voltarmos a ser Governo, vamos fazer diferente do que éramos". Não é jogo político, acho que é a vida normal. O que é estranho, o que seria estranho, era que ao fim deste período tão longo de governação, havendo uma mudança de líder, havendo a necessidade de escolher novos caminhos, simplesmente se toca a andar como se nada tivesse acontecido.

O que a mim me impressiona bastante é cada vez que ouço o líder do PSD falar sobre o futuro, só ouço palavras do passado e só vejo gente do passado, isso é que me impressiona bastante. Como é que ao fim destes anos todos, o melhor que têm para dar de energia ao partido é ir buscar o professor Cavaco Silva para animar o PSD... Isso é que me deixa bastante apoquentado sobre o futuro da dinâmica e da capacidade da alternativa democrática em Portugal.

Como o senhor disse, está aqui a fechar um ciclo nesta altura, que começa em 2015, quando perde as eleições, mas cria a solução política com o PCP, com o Bloco de Esquerda, que dá origem ao primeiro Governo, e é um governo de legislatura, é um Governo que cumpre os quatro anos. Se nos situarmos na atual maioria absoluta, que no fundo cai neste momento, consegue ter já o distanciamento suficiente para ser crítico do que correu mal nestes dois anos? Porque eu sei que teve muito a tentação de dizer "são os casos e os casinhos, os media passam a vida a falar de coisas que não tocam a vida das pessoas", mas reconhece que várias coisas correram mal, ou não?
Bom, com certeza, senão as coisas não teriam corrido como correram. Enfim, acho que não tenho ainda a distância suficiente para fazer essa avaliação. Sabe que a política tem alguma ironia nisto tudo. Dos três governos a que presidi, o único que começou e chegou ao fim foi aquele que toda a gente apostava que não duraria três meses. Bom, durou quatro anos e correu bem. Os outros dois foram interrompidos por dissoluções da Assembleia da República. Se me perguntam se me sinto frustrado de, por duas vezes, não ter podido levar até ao fim o mandato que me tinha sido confiado, sim, é frustrante, mas são as regras do jogo, não vou estar aqui a chorar e a lamentar.

O Governo que sai de cena agora, e sai por esta circunstância do comunicado da PGR e da decisão que o senhor decide tomar, houve muitos erros, houve muitos ministros que saíram de cena: Marta Temido, Pedro Nuno Santos, o seu secretário de Estado, adjunto do primeiro-ministro, enfim, uma série de casos que mancharam um pouco a ação governativa. Tem a noção que isso aconteceu e que isso manchou a imagem do Governo?
Sim, também tenho consciência que muitos desses casos se esfumaram na semana seguinte, mas também tenho consciência do seguinte: este também foi um Governo que fez uma reforma muito importante no Serviço Nacional de Saúde, que está agora a ser implementada, com a criação da direção executiva, com a organização das unidades locais de saúde, com a generalização do modelo de cuidados de saúde primários das USF, modelo B, a todo o país. Este foi o Governo que aprofundou a reforma da floresta e que tinha agora pronta para entrar em processo legislativo, porque a discussão pública foi concluída, todo o pacote de reforma da propriedade rústica. Foi o Governo que lançou o programa Mais Habitação para atacar de frente este tema da habitação.

Mas levou tempo.
Este Governo não levou tempo.

Mas o senhor já era primeiro-ministro há vários anos quando isto aconteceu.
Sim, mas a verdade é que o tema da habitação fomos construindo desde as fundações. Aprovámos a lei de bases da habitação, negociámos em Bruxelas em 2020, quando ainda ninguém falava da habitação, os três mil milhões de euros que o PRR tem para a construção da habitação e finalmente chegámos ao programa do Mais Habitação.

Este foi o Governo que conseguiu retirar o país, depois do brutal crescimento da dívida a que a covid nos obrigou, em que chegámos a 134%... Nós praticamente vamos ficar nos 100% da dívida este ano. Nós conseguimos equilibrar o orçamento num contexto em que o salário mínimo subiu 72%, em que o orçamento do Serviço Nacional de Saúde subiu 62%, onde fechámos a semana passada um acordo muito difícil de negociar com o Sindicato Independente dos Médicos que vai permitir a todos os médicos pelo menos uma valorização salarial de 15%, nos que vão mudar para a dedicação plena de mais 30%, os que vão, olhe os tais médicos das unidades locais de saúde que são modelo A e que passam para o modelo B, têm uma valorização de 60%. E portanto, há aqui uma coisa que é preciso termos em conta, é que temos um orçamento equilibrado, nem à custa de aumento de impostos, nem de cortes de salários, nem de corte de pensões. Nós conseguimos este equilíbrio orçamental num contexto em que subiram salários, pensões e diminuíram impostos. E essa é a quadratura que é difícil.

A quadratura do círculo?
Não é. É o resultado de boas políticas. Um grande prémio Nobel da Economia, o Paul Krugman, disse que parecia um milagre. Eu que não sou crente diria que, mais modestamente, foram só boas políticas que nos permitiram ter estes resultados. Portanto, o balanço deste Governo pode-se fazer, seguramente por muitas das coisas que correram mal, mas para sermos justos também convém fazer o balanço das coisas que correram bem.

Vamos à questão da Saúde. Esta tarde estava a ver um dado que é quase chocante e que é o seguinte, dizia a notícia, a Maternidade Alfredo da Costa não está a receber grávidas. Em que país estamos onde uma instituição como a Maternidade Alfredo da Costa, que não apenas as pessoas que vivem em Lisboa, mas que todo o país associa como uma grande instituição ligada ao nascimento de crianças em Portugal, não pode receber grávidas? O que é que está a correr mal com o SNS que tem a ver com estas questões das urgências e esta especificamente, que eu acredito que não conheça, esta especificamente, mas há aqui um quadro, há aqui um padrão. O que é que não está a funcionar?
Nós temos um Serviço Nacional de Saúde onde, felizmente, conseguimos resolver um problema estrutural que tinha a ver com o seu subfinanciamento.

Resolver esse problema do subfinanciamento permitiu-nos melhorar e aumentar o número de recursos humanos. Os recursos humanos no SNS aumentaram ao longo destes anos 25%. Mas esses 25% não significam que haja mais cuidados de saúde. Nos cuidados de saúde primários, nós tivemos, entre janeiro e outubro deste ano, mais 2.886.000 consultas do que as que tínhamos tido entre janeiro e outubro de 2015.

Nos cuidados de saúde hospitalares, nós tivemos mais 1.097.000 consultas do que aquelas que tínhamos tido entre janeiro e outubro de 2015.

Se formos olhar para as cirurgias, nós tivemos mais 142.000 cirurgias do que tínhamos tido em igual período de 2015. E mesmo nos episódios de urgência, que têm sido muito noticiados e onde há, obviamente, uma grande pressão neste momento, nós tivemos mais 88.000 atendimentos do que no mesmo período de 2015. Portanto, nós não tivemos só mais dinheiro, mais recursos humanos, tivemos também mais atos de saúde. Estes mais atos de saúde não quer dizer que não haja atos de saúde que não foram praticados. Por exemplo, tem mais dois milhões de consultas, mas quantas consultas não foram realizadas? Seguramente bastantes.

E há menos portugueses com médico de família também. 
Esse número requer maior atenção.

Porquê? 
Pelo seguinte, porque nós temos mais médicos de família. O que temos é mais residentes em Portugal. E, portanto, o número de residentes em Portugal é que faz alterar esse rácio. Mas, por isso, nós temos estado a investir na abertura de concursos para a especialidade de medicina geral e familiar e, sobretudo, estamos a fazer esta grande reforma dos cuidados de saúde primários. Quando nós queremos generalizar o modelo das USF e o modelo B, não é só para que os médicos ganhem mais 60%. Os médicos e os outros profissionais vão ganhar mais 60%. Porquê? Vão aumentar mais 60% porque nas USF e no modelo B assentam numa contratualização de um conjunto de objetivos de melhoria dos cuidados de saúde. Listas de utentes com médico de família superior, maior extensão do horário, maior número de consultas e é isso que permite melhorar a qualidade dos serviços desempenhados. E esse é que tem de ser o grande foco da atenção. Portanto, a resposta não é nem negar os problemas, nem transformar em realidade única os múltiplos casos que acontecem e que são problemas dramáticos, obviamente, para quem está numa sala à espera de ser atendido. Mas que implica responder de um modo estrutural como a direção executiva está a fazer e bem. Com a reorganização das urgências, com um modelo que tem já há vários anos bem testado na cidade do Porto e que não há nenhuma razão para que nós não repliquemos uma boa prática ao conjunto do país.

É verdade, mas o famoso modelo da cidade do Porto, recordo-me de ter ouvido falar dele, mas dele ter sido enunciado como modelo desejável para aplicar à escala nacional e na Grande Lisboa designadamente há mais de um ano. Passou um ano e o modelo ainda não chegou. Do Porto a Lisboa não é assim tão longe.
Mas nós não mudámos nem a cultura, nem os modos de funcionamento.

Leva mais tempo, é o que me está a querer dizer?
Não se muda a cultura nem os modos de funcionamento por decreto. Não sei se se recorda, nós tivemos de encerrar a maternidade de Santa Maria, os blocos de obstetrícia de Santa Maria, para fazer obras. E parecia uma coisa simples. Os médicos estavam, as equipas estavam em Santa Maria, deslocavam-se para São Francisco Xavier. Isto parece simples, mas foi muito complicado. Porque as pessoas têm culturas de trabalho distintas, têm hábitos de trabalho distintos, da organização das equipas de uma forma distinta.

E são resistentes por natureza?
Todos os seres humanos são resistentes à mudança. Há muitos anos, quando era ministro da Justiça e começámos a informatização nos tribunais, nunca mais me esqueço, de um oficial de Justiça, creio que num hospital de Santa Comba Dão, lembro-me que era no distrito de Viseu, e acho que era em Santa Comba Dão, que, agarrado a uma máquina de escrever, me dizia assim: "Senhor ministro, pode acreditar nisto? Por mais que queira informatizar, eu nunca deixarei de trabalhar com a máquina de escrever e nunca trabalharei com essas máquinas". Portanto, o ser humano é resistente à mudança. Eu também sou, todos somos. E, portanto, estas mudanças têm de se fazer com as pessoas.

Ora, nós temos de compreender que não é por acaso que em todos os países europeus neste momento há uma enorme tensão sobre os sistemas de saúde. Os dois anos da covid, porventura todos subavaliámos as consequências que deixaram em todos nós. Nós falamos muito da saúde mental, do ponto de vista individual, mas deixaram na saúde coletiva um brutal stress no sistema de saúde e nos profissionais de saúde, porque mesmo aqueles que não estavam na linha de frente estavam sujeitos, obviamente, a um grande stress. Verificou-se uma realidade muito particular, que foi muitas pessoas ou adiaram exames, ou adiaram consultas, ou adiaram tratamentos, ou chegam agora aos hospitais numa fase, numa situação clínica pior do que aquela que teriam chegado se tivessem sido atendidas normalmente sem aqueles dois anos de paralisia que nós tivemos nas nossas vidas. E, portanto, os sistemas de saúde, todos e não é só em Portugal, infelizmente, estão sob uma tensão enorme. E os profissionais também.

Portanto, há um diálogo que é preciso fazer, é preciso distender a situação. E, desse ponto de vista, há um paradoxo. É que as maiorias absolutas não ajudam. Porque as maiorias absolutas tendem a irritar todos os outros e a criar um grande clima de tensão. Eu sempre tive a tese de que os portugueses não gostam de maiorias e que as maiorias só existiam se os portugueses não dessem conta de que a maioria existia. Foi o que aconteceu. Estou aliás profundamente convencido que na segunda-feira de manhã muitas pessoas já estavam a dizer que, "se eu soubesse, não tinha votado neles". E isso é normal e não tem problema nenhum. Portanto, não foi fácil esta negociação. Hoje em dia, a pluralidade sindical gera uma grande competição. A minha convicção é que o acordo com o SIM teria sido assinado há bastante mais tempo, não fosse a forma como a atual direcção da FNAM tem conduzido a negociação por parte da FNAM.

Está a dizer que se levantam outros interesses que não são verdadeiramente os da defesa da classe. Se é que posso inferir isso no que está a dizer.
Não, não são outros interesses. São os interesses de defesa da classe. Que é a função de um sindicato. O Governo é o sindicato dos portugueses. E é, em primeiro lugar, aos portugueses que tem de responder. E aquilo que nós procuramos sempre no conjunto desta negociação, que se iniciou por iniciativa do Governo, foi negociar o tema da valorização salarial no quadro de uma reforma de fundo do SNS. Passava porquê? Generalizar os USF, modelo B, ir desenvolvendo nos hospitais modelos que já provaram bem, que são os modelos dos Centros de Responsabilidade Integrada, que têm funcionado bem na área da cardiologia, na área das cirurgias, e que queremos generalizar a outras especialidades. E no modelo da dedicação plena, que permite uma valorização significativa dos profissionais de saúde, melhorando também os cuidados de saúde a prestar aos portugueses, porque essa é a nossa missão. Quer dizer, a missão fundamental do Governo é assegurar melhores cuidados de saúde aos portugueses. E isso passa, naturalmente, por termos bons profissionais, profissionais muito motivados, e é nessa vertente que se situa a negociação sindical. Da lógica dos sindicatos, obviamente, a lógica é diferente. Eles estão lá para representar quem? Os seus associados, o que é normal. 

Quando o senhor olha para os números que foram conhecidos na passada semana do PISA, não acha que o Governo, se quiser eu posso alargar, que os Governos em geral estão a falhar com estrondo na questão da educação? 
Estes relatórios do PISA foram muito importantes, porque foi o primeiro que foi analisado a seguir à covid, e o que veio demonstrar em toda a OCDE, nós aliás estamos exatamente alinhados com a média da OCDE, que houve uma quebra muito grande dos níveis de avaliação. E, portanto, aqueles dois anos de covid, mesmo com todos os esforços que foram feitos de estudo em casa, de acompanhamento, sobre o esforço que os professores fizeram de acompanhamento dos seus alunos, dos programas que têm estado a ser executados de recuperação das aprendizagens, demonstram que, de facto, nós temos aqui uma geração em todos os países da OCDE que foi fortemente atingida pela covid e que isto vai exigir, nos próximos anos, esforços redobrados. Nós, felizmente, no orçamento para 2024 já tínhamos reforçado o plano de recuperação das aprendizagens, mas, porventura, com estes dados do PISA, o que nos diz é que temos de fazer mais do que aquilo que tínhamos previsto fazer, porque não podemos, obviamente, deixar que esta geração seja tão afetada como foi pelo impacto da covid. Por outro lado, há depois outros dados que são positivos. Há dados muito impressionantes que este dado nos dá. É Portugal ser o único país onde nenhuma criança deixou de ir à escola por não ter acesso à alimentação. E acho que isto é algo que nos deve encher de orgulho, da forma como, entre os Estados, as autarquias locais, as escolas, conseguimos reduzir e assegurar que ninguém, por carência de alimentação, deixa de estar na escola. E isso ajuda muito a explicar a forma como a taxa de abandono escolar precoce teve uma queda extraordinária, de 12 ou 13% para 6% ao longo destes anos. 

Mas os dois últimos anos, ou se quiser o último ano e meio, portanto, pós-covid, também foi um ano de muita conflitualidade na educação pelo confronto com os professores. Isto não podia ter sido minimizado, de certa maneira, isto é, não podia ter sido feito um esforço para resolver o problema mais cedo? Não acha que houve uma espécie de braço de ferro, a certa altura, desnecessário por parte do Governo com os sindicatos?
A sua pergunta pressupõe que o Governo não tenha feito nada. E que até tenha sido... 

Não, mas se quiser, o Governo não fez o suficiente.
Podemos discutir se este copo está meio cheio ou meio vazio. Neste caso, está mesmo meio vazio. Nós chegámos ao Governo com as carreiras congeladas, e em 2018 descongelámos as carreiras. As carreiras que estavam com o relógio parado voltaram a ter o relógio a contar. Segundo lugar, nós procurámos que houvesse uma recuperação do tempo de serviço perdido, que fosse equitativa com aquilo que tinha sido a recuperação em outras carreiras do Estado.

Como sabe, as carreiras do Estado têm diferentes formas de progredir, uma é por número de anos, outra é por pontos e, portanto, o que nós estabelecemos foi uma equivalência e assegurámos a todos os professores uma recuperação do tempo de serviço exatamente igual à que tínhamos assegurado aos outros agentes do Estado. 

Abrimos este ano, nesta legislatura, uma negociação nova que tinha a ver com um novo modelo de colocação de professores para acabar com o regime da casa às costas, para acabar com o regime da precariedade e, nessa discussão, os professores recolocaram o tema da recuperação do tempo de serviço.

Nós conseguimos cumprir o objetivo de mudar o modelo de concurso para o ano, pela primeira vez os professores vão ter um concurso onde de uma vez por todas têm o direito de ficar para toda a vida na escola onde ficarem colocados, se assim o desejarem, e que vão deixar de ser obrigados de três em três anos a andar a saltitar de escola em escola. Claro que se não gostarem dessa escola têm a oportunidade, três anos depois, de voltarem a concorrer, mas se tiverem gostado daquela escola, podem estabilizar. Nós introduzimos a vinculação dinâmica que faz com que cada professor que complete o número de dias correspondente a três anos de serviço é automaticamente vinculado. Foram quase 10 mil que este ano foram vinculados e relativamente à recuperação... 

Mas do ponto de vista das famílias que procuram que os seus filhos vão à escola, que chegam, que não têm aulas, que não têm aula disto, que não têm aula daquilo, a verdade é que há uma grande sensação de frustração também.

Nós vivemos numa sociedade democrática onde a greve é um direito e creio que ninguém quer que deixemos de ser uma sociedade democrática, ou que estejamos numa sociedade democrática onde não haja direito à greve. Eu, para evitar a greve, devo saber ouvir e saber negociar. Mas a negociação não é a capitulação e a aceitação de tudo. Nós demos um passo muitíssimo importante em relação à recuperação do tempo de serviço, que foi a introdução de um mecanismo de aceleração. Como sabe, na carreira dos professores, no quinto e no sétimo escalão estavam sujeitos a cotas. Nós eliminámos as cotas para todos aqueles que tiveram tempo de serviço congelado. De forma a que pudessem progredir na carreira 

Porque havia uma espécie de tampão, não? 
Havia dois tampões. Retirámos os tampões para quem teve o serviço congelado. E isso permitiu que houvesse uma grande progressão. Eu agora não tenho aqui os números de cor. Mas eu convido a CNN a fazer esse exercício.

Quantos professores estavam no décimo, no nono e no oitavo escalão em 2018 quando nós descongelámos a carreira e quantos professores estão no décimo, no nono e no oitavo escalão agora neste ano letivo de 2023.

Se for verificar o que aconteceu, vou dizer o número por baixo para não falhar. Pelo menos 80% dos professores progrediram já a dois escalões desde que nós descongelámos as carreiras. Isto é uma mudança muito grande. Agora, a minha mulher foi educadora há muitos anos. Portanto, eu conheço bem e percebo bem qual é o estado de frustração profundo que existe na carreira dos professores. Em que o tema da recuperação do tempo de serviço é sobretudo um catalisador de muita frustração acumulada. Porque essa frustração resultou do seguinte, prometeram-lhes uma carreira onde os salários começavam baixo mas no topo da carreira os salários seriam já bons salários. E, no entretanto, congelaram a carreira. 

Tinham uma carreira onde as pessoas podiam reformar-se aos 55 anos. E depois deixaram de se poder reformar aos 55 anos e passaram a ter idade de reforma idêntica a todos os outros cidadãos, o que tem aliás um impacto muito diferenciado. Porque nos professores, para os educadores de infância e para os professores do primeiro ciclo, as chamadas monodocências, praticamente não têm, não beneficiam efetivamente da redução do horário de serviço que os outros beneficiam - os outros professores do ensino secundário ou do segundo e do terceiro ciclo, como são escolas onde as turmas têm vários professores, os professores podem ir reduzindo o seu horário progressivamente ao longo da carreira. Os da monodocência não podem. 

Um dos temas que nós quisemos sempre discutir com os sindicatos, que os sindicatos nunca quiseram discutir, era assegurar também aos educadores de infância, aos professores da monodocência, a redução efetiva de termo de serviço. Condições diferentes de acesso a, digamos, a mais cedo poderem deixar de ter trabalho direto com os seus alunos.

Os sindicatos nunca quiseram tratar disto porque acantonaram-se num tema que é o tema de recuperação do tempo de serviço. Sou-lhe sincero. Eu admito que haja pessoas que tenham ideias diferentes, vejo que há vários camaradas meus que têm agora ideias diferentes. A minha ideia é simples. Eu acho que o que nós fizemos foi o que era justo fazer para com os professores e tratando com equidade os professores relativamente a todos os outros servidores do Estado. 

Um dos aspetos que tem sido referido é que ao longo destes anos dos seus Governos, Portugal cresceu mais do que a média da União Europeia, mas cresceu menos do que algumas das economias do Leste, designadamente Hungria, Roménia. Isso deve ser um sinal de preocupação?
Tudo está em saber para quem é que nós olhamos. Nós olhamos para os que estão à nossa frente ou aqueles que estão atrás de nós? A Rosa Mota sempre me disse, e o Carlos Lopes também, que quem quer ganhar uma maratona tem de ter os olhos postos na meta e não olhar para quem vem atrás. E o que eu quero dizer sobre o crescimento é o seguinte: nós aproximámos-nos da Alemanha, aproximámos-nos da Espanha, aproximámos-nos da França, aproximámos-nos de todos os países mais desenvolvidos. Pela primeira vez neste século, nós tivemos consecutivamente um crescimento acima da média europeia. Menos em 2020 e 2021, que foram os anos da covid. 

Pode dizer que crescemos menos do que desejávamos, seguramente. Mas convém comparar. A média do crescimento do país entre 2000 e 2015, sabe qual é que foi? 0,2. Sabe qual foi a média do crescimento do país entre 2016 e 2022, incluindo os dois anos trágicos do covid? 2%. Ou seja, 10 vezes mais do que nos 15 anos anteriores. Mas, era bom termos crescido 20 vezes mais. Ah, isso era, até 100 vezes mais. Crescer 10 vezes mais do que a média dos 15 anos anteriores, eu gostava de saber quantos Governos se podem gabar de ter conseguido isto. E nós crescemos isto ao mesmo tempo em que tivemos uma política orçamental muito rigorosa, porque tínhamos de sair do procedimento de défice excessivo. 

É também a política orçamental das cativações. O senhor sabe isso. 
Mas as políticas das cativações é uma ficção. Porque as cativações nunca impediram a realização de nenhuma das políticas. 

Não diga isso. Impediram investimento público, por exemplo. 
Desculpe lá, mas a falta de investimento público não teve a ver com cativações. Nós tivemos uma estratégia orçamental... 

Ou melhor, teve a ver com duas coisas. Com as cativações, por um lado, mas também com uma decisão política. 
Não, teve a ver com uma decisão política, mas não teve a ver com cativações. A cativação é só uma técnica de gestão do orçamento ao longo do ano. O país fez uma opção política. Que eu fiz. Vamos regressar a 2015.

Em 2015, o debate com que nós estávamos confrontados era o seguinte. A direita dizia que sem austeridade vamos ser obrigados a sair do euro. E por isso temos de manter salários cortados, pensões cortadas, investimento cortado e o enorme aumento de impostos. Isto era o que disse a direita e o que fez a direita. À nossa esquerda o que diziam é que não conseguimos sair da austeridade sem abandonar o euro.

E nós fizemos uma opção política dizendo não, nós vamos virar a página da austeridade, vamos manter-nos no euro. E por isso repusemos salários, repusemos pensões, reduzimos, sabe em quanto, os impostos? 4 mil milhões de euros é o que os portugueses pagam a menos de IRS em 2024. 

Pagam a menos de IRS mas depois pagam em impostos indiretos. 
Desculpe, pagam menos 4 mil milhões de euros de IRS. 

Sim, em IRS sim, mas pagamos a mais em impostos indiretos. 
Desculpe lá, também não é verdade. Também não é verdade, desculpe lá. Agora eu vou explicar porquê. A opção que nós fizemos, qual foi? Foi repor salários, repor pensões, reduzir os impostos, ir progressivamente aumentando o investimento público, mas ao mesmo tempo reduzindo o défice e libertando-nos da dívida. E libertar-nos da dívida é fundamental porque não é para sermos bons alunos. É que eu ter menos dívida hoje significa que eu pago menos 2 mil milhões de euros por ano de juros, que são 2 mil milhões de euros por ano que eu ponha a mais no Serviço Nacional de Saúde, por exemplo. 

Eu não teria feito o aumento da despesa que fiz no Serviço Nacional de Saúde se eu não tivesse reduzido a dívida. E aquilo que nós conseguimos foi a maior derrota que a direita teve. E por isso eles nunca conseguiram até agora apresentar nenhuma alternativa credível. É que nós conseguimos fazer o que eles sonhavam fazer, que era pôr finanças públicas na ordem sem cortar salários, mas aumentando salários. Sem cortar pensões, mas aumentando pensões. E ir aumentando progressivamente o investimento público. Um dos grandes ganhos, e se há algo que me orgulha particularmente, é que eu entrego neste momento um país onde os portugueses têm muito mais liberdade de escolha. Porque um país que tem um excedente orçamental, permite aos portugueses escolherem. Escolherem se querem manter um excedente orçamental, e pô-lo num fundo de reserva, para um dia que tenhamos uma crise podermos utilizar essa verba de reserva. 

Portanto, isso é a tarefa que endossa ao próximo primeiro-ministro? 
Não. Os portugueses vão ter liberdade de escolher nas próximas eleições o que querem fazer com o seu excedente. Querem reduzir impostos, querem aumentar mais salários, a certas categorias profissionais, querem aumentar o investimento público, querem meter um fundo de reserva à cautela porque nunca se sabe o que é que acontece no dia de amanhã, querem fazer um pouco disto tudo? Nós optámos por ter uma política responsável e equilibrada em que fizemos um pouco disto tudo. Em que aumentámos salários, aumentámos pensões, criámos um fundo de reserva e temos vindo a aumentar…

A propósito de salários…
Eu não quero deixar, agora deixar de responder, desculpe, sobre os impostos indiretos.

Faça favor.
É que eu ouço muitas vezes falar da carga fiscal. Mas o conceito…

Mas a carga fiscal não é um mito.
Não. A carga fiscal não é um mito, mas é preciso explicar às pessoas o que é a carga fiscal.

Porque as pessoas sentem isso nos seus bolsos. 
Pois sentem. 

Pois sentem. 
Não, mas é preciso explicar às pessoas o que é carga fiscal. A carga fiscal é a soma do que pagamos de impostos e o que pagamos de contribuições à Segurança Social. O que é que tem aumentado em Portugal na carga fiscal? Não são os impostos. São as contribuições para a Segurança Social. E as contribuições para a Segurança Social não têm aumentado porque nós subimos a TSU. As contribuições para a Segurança Social aumentaram porque hoje temos mais 600 mil pessoas a trabalhar e, portanto, a descontar para a Segurança Social. 

Porque os vencimentos, o salário mínimo subiu 72% e o salário médio subiu 40%. E, portanto, descontamos mais para a Segurança Social. Mas o maior desconto para a Segurança Social não é uma má notícia. É uma boa notícia. Significa que há mais emprego. Significa que os salários são melhores e, portanto, contribuímos mais. Se o senhor comparar, não sei aqui, o seu recibo de vencimento com o seu recibo de vencimento em 2015, provavelmente paga mais para a Segurança Social porque também tem um ordenado superior. Não sei se é o seu caso, mas é o que acontece à generalidade das pessoas. E, portanto, quando dizemos que a carga fiscal subiu, subiu por boas razões e não por más razões como o aumento dos impostos.

Dizem assim, a receita do IVA é maior. Pois é. Sabe porquê? Porque as pessoas compram mais e porque tivemos uma brutal inflação. 

Sim, a inflação jogou a favor da receita.
Com certeza. E o que é que o Governo fez? O que o Governo decidiu fazer foi devolver aos portugueses o excesso de receita que provinha do aumento da inflação e devolvemos-lhe como? 

Devolver de uma forma parcimoniosa. 
Não. Parcimoniosa? Desculpe lá. As medidas extraordinárias são mais do dobro do aumento da receita fruto da inflação. Começámos, não sei se se recorda, pelos combustíveis. Em que pedimos à União Europeia para baixar o IVA dos combustíveis. A União Europeia não nos permitiu. E o que é que nós fizemos? Nós baixámos o ISP no exato montante do que aumentava a receita do IVA para que ficasse neutro. Foi aí que começámos. Depois, o que nós fizemos foi entre os apoios extraordinários às rendas, os apoios extraordinários às famílias mais carenciadas, o apoio que demos em outubro de 2022 a todas as famílias com rendimentos até 2.700 euros… nós devolvemos mais do que o aumento da receita do IVA.

Falou do salário mínimo que subiu de facto cerca de 70%. Deu um número em relação ao salário médio que não estou assim tão convencido. 
É o da estatística. 

Em qualquer dos casos, a percepção que existe é esta. O salário mínimo subiu de forma significativa, mas a verdade é que a generalidade dos portugueses, sobretudo aqueles que se situam naquilo que nós designamos a classe média, não ganham muito, ganham pouco. E isso é um problema para o país, desde logo com as gerações mais novas que procuram muitas vezes sair do país. Isso não ficou exatamente resolvido e é um problema efetivo que temos pela frente, que o próximo Governo tem pela frente.
Nós tivemos uma visão radicalmente diferente daquilo que era o modelo de desenvolvimento tradicional do país. O modelo de desenvolvimento tradicional do país era baixos salários e empobrecimento de direitos. Nós apostámos na subida de salários e no reforço dos direitos. Mas tivemos de o fazer de forma a que as empresas possam acompanhar este passo. E por isso é que, lembra-se, quando fizemos o primeiro aumento do salário mínimo e disseram vem aí o diabo, nós dissemos não, não veio o diabo, porque o aumento do salário mínimo vai permitir a economia crescer mais e as empresas crescerem. Foi o que aconteceu.

Quando em plena covid voltámos a subir o salário mínimo, já não era o doutor Passos Coelho o líder do PSD, era o doutor Rui Rio e deitou as mãos à cabeça com a subida do salário mínimo. Subimos o salário mínimo e não houve razões para deitar as mãos à cabeça, a economia voltou a crescer e as empresas a ficarem mais fortes. E nós mudámos o paradigma. Hoje, felizmente, 50% do PIB pela primeira vez são exportações o que significa que as empresas são mais competitivas apesar de pagarem melhores salários e terem criado quase um milhão de postos de trabalho ao longo destes anos. 

Isso é matéria de facto, mas não respondeu ao ponto da saída das gerações mais novas perante salários pouco competitivos. 
Precisamente, nós identificámos o problema com as gerações mais novas e por isso fizemos um acordo de concertação social plurianual que envolveu uma valorização significativa do vencimento dos jovens, desde logo os qualificados, para posições de entrada de 1.300 euros na administração pública. Neste momento, a posição de entrada é de 1.383 euros, mas depois adotámos um conjunto de medidas que aumentassem o rendimento disponível. Primeira medida: IRS jovem. No primeiro ano de trabalho os jovens pagarão em 2024 zero de IRS, depois pagarão 25% no segundo ano, no terceiro e quarto 50% do IRS que teriam a pagar, e no quinto ano ainda 75%, para quê? Para apoiarmos com este benefício fiscal aquilo que é o percurso de quem entra e depois vai iniciando a melhoria do seu salário dentro da empresa.

Em segundo lugar, adotámos um conjunto de medidas importantes para as jovens gerações: creche gratuita, o novo preço do passe social único - o passe social hoje custa 40%, congelámos o valor em 2023, congelámos o valor em 2024, uma família de quatro pessoas hoje paga só dois passes e todos podem viajar com esses dois passes. Eram famílias que pagavam 300 euros de passe social, hoje pagam no máximo 80 e portanto os manuais escolares gratuitos a eliminação das taxas moderadoras no acesso ao Serviço Nacional de Saúde, há um conjunto de transferências não monetárias que contribui para melhorar o rendimento das famílias. 

Agora, eu tenho dito muitas vezes às empresas e continuo a insistir… eles têm de fazer o percurso deles.

E não têm feito?
Eles estão a fazer o percurso deles, se vir, por exemplo, o aumento dos rendimentos, os salários declarados à Segurança Social durante o ano de 2023 tiveram uma subida de 8% muito acima da inflação. Se estão a fazer ao ritmo que é a expectativa dos jovens não estão e têm de ter mesmo a coragem de fazer um choque salarial para os jovens. Eu tenho dito muitas vezes às empresas que eles têm de compreender que este esforço que o Estado está a fazer de IRS jovem, de reforço do porta 65, de creche gratuita, tem de ser acompanhado pela iniciativa privada e perceberem o seguinte: é que as empresas hoje para serem competitivas não são só competitivas no preço da venda dos bens e dos serviços que produzem, têm de ser competitivas na contratação, porque se não estão competitivas na contratação numa Europa que é um mercado aberto, têm de perceber que vão ter de competir com as empresas alemãs e com as empresas francesas e com as empresas holandesas na contratação dos nossos melhores quadros, porque esse mercado é aberto e nós temos hoje uma nova geração que não é só uma questão de dinheiro, quer viver de uma forma diferente, eu vejo pelos meus filhos e pelos amigos deles, estão na casa dos 30 anos, eles hoje não estão disponíveis para olharem para o horário de trabalho. 

Eu vejo pelos meus jovens jornalistas… 
Não estão disponíveis para trabalhar como nós trabalhávamos e se me pergunta se isso é um retrocesso? Não, é um grande progresso da nossa sociedade e aqueles dois anos de covid mudaram muito a perspectiva que as pessoas têm sobre a vida. As pessoas perceberam que entre a sua vida pessoal, a sua vida familiar e o trabalho, a hierarquia mudou. Muitos empresários dizem: tenho muita dificuldade em arranjar quem trabalhe, mas têm sobretudo dificuldade em arranjar quem faça horas extraordinárias, porque as pessoas já não estão disponíveis para isso, um dos grandes problemas que nós temos hoje no Serviço Nacional de Saúde é esse, é que os jovens médicos que são aqueles que podem fazer horas extraordinárias, dizem "desculpem não quero, podem pagar 90 euros à hora, mas eu não quero trabalhar mais, porque..." não é por maldade, não é por não quererem trabalhar, é uma escolha, querem ter uma outra forma de vida mais saudável e portanto nós temos de perceber e as empresas têm de perceber e o Estado tem de perceber que são anos de grande transformação que vamos ter de fazer. Ora, é por isso que temos de nos amparar uns aos outros, porque eu também tenho consciência de que as nossas empresas porventura não estão preparadas de um momento para o outro para fazer isso e é por isso que eu tenho de dizer "ok, durante os primeiros cinco anos de trabalho, o senhor vai aumentar o salário destes jovens e nós vamos cobrar menos IRS para que o rendimento dele seja mais disponível". Nós vamos reforçar o porta 65, e pela primeira vez este ano ninguém deixou de ter apoio do porta 65 para arrendar a casa por falta de dotação orçamental, houve dotação orçamental para todos os que podiam aceder ao porta 65 é por isso que estamos a acelerar as políticas de habitação para tornar a habitação mais acessível, é por isso que estamos a fazer as creches gratuitas. Hoje estamos com um novo problema. Muita gente diz, bom, não há vagas nas creches, porque é que não há vagas nas creches? Não há vagas nas creches porque muitas famílias que não tinham sequer a oportunidade de pensar porque não tinham rendimento para isso, agora querem pôr e o setor social está a responder e nós estamos aqui numa fase de crescimento onde o número de vagas vai aumentar significativamente. Nós começamos com 40 mil crianças este ano, são 80 mil em outubro do próximo ano, serão 130 mil crianças que terão acesso à creche gratuita, quer no PRR quer no programa PAR, estão a ver fortes apoios para as IPSS e para as misericórdias aumentarem o número de lugares de creches, eles estão a fazer um trabalho extraordinário mas não se faz assim agora. 

Eu digo-lhe, é um bom problema porque isto significa que finalmente as famílias que não podiam sequer sonhar em ter filhos nas creches, agora podem pensar nisso, podem sonhar com isso. E mais, é uma questão, não sei se é de dois anos se é de três anos, vamos alcançar isto.

Nós estamos a caminhar para o final e depois tenho aqui uma série de perguntas que acho que darão resposta rápida e tenho dois assuntos que já não digo que sejam dois assuntos macro porque o tempo não o permite mas que são dois assuntos apesar de tudo relevantes, um tem a ver com o aeroporto - perdoe-me a expressão - mas dá-me a ideia que já está outra vez uma grande embrulhada, ou não? 
Olhe, eu sinceramente espero que não e a questão do aeroporto é um grande teste à credibilidade do PPD/PSD. Eu gostava, se me permite, uma pequenina história. Era o professor Cavaco Silva Presidente da República, a CIP organizou um estudo onde concluiu que nem OTA nem Rio Frio, Alcochete. O engenheiro Sócrates, que muita gente achava muito teimoso e muito determinado, deu o braço a torcer, renunciou à OTA e aceitou Alcochete. E formou-se um grande consenso nacional em torno de Alcochete e o senhor Presidente da República Cavaco Silva patrocinou este acordo. Quando o Governo mudou, em vez de garantir esse acordo, aceitou que o Governo seguinte dissesse que não havia aeroporto nenhum porque não ia haver crescimento nenhum, aquilo era tudo números megalómanos, não ia haver aquela procura, e a primeira decisão do Governo de Passo Coelho foi não haver aeroporto nenhum a não ser manter a Portela - depois quando a evidência era impossível de esconder inventaram a solução Portela com Montijo.

Eu quando cheguei ao Governo tive a humildade de aceitar essa decisão, foi muito difícil, porque a maioria do Partido Socialista queria que a solução fosse Alcochete e eu tive a humildade de aceitar a decisão que tinha sido tomada pelo Governo anterior porque acho que cada Governo que chega não pode para sempre pôr em causa o que eram as decisões do Governo anterior. 

Quando dois municípios quiseram vetar a solução Montijo, o PSD, então sob a direção do doutor Rio, tirou-nos o tapete, e impossibilitou-nos de fazer a alteração legal que entretanto já foi feita e que impede, obviamente, que um município possa por capricho ou porque acha que a razão deve ser outra qualquer impedir a realização de uma obra de interesse nacional. Quando veio o doutor Luís Montenegro, eu que tinha maioria absoluta e tinha toda a legitimidade para ter tomado a decisão que bem entendesse entendi que era uma decisão que tínhamos de tomar em consenso com o PPD/PSD. Porque estamos a decidir algo que é pelo menos para 50 anos, infelizmente, porventura, já não estaremos cá para ver a nova discussão sobre o novo aeroporto daqui a 50 anos e, portanto, trabalhámos numa solução que nos deixasse a todos confortável e da constituição de uma comissão técnica independente. Aquela comissão não tem nem uma única pessoa nomeada pelo Governo nem uma única pessoa nomeada pelo PPD/PSD.

Qual foi a metodologia que escolhemos depois de haver todos os estudos e mais alguns em que todos já propuseram N soluções? Propusemos a três personalidades: presidente do Conselho de Reitores, que era então o professor Sousa Pereira, reitor da Universidade do Porto; presidente do Conselho Superior de Obras Públicas, o bastonário Mineiro Aires; presidente do Conselho Superior do Ambiente e Desenvolvimento Sustentável e os três, por consenso, escolheram a professora Maria do Rosário Partidário para presidir a comissão. A escolha da presidente foi feita por estas três personalidades independentes. Depois a professora Maria do Rosário Partidário definiu as várias áreas áreas, jurídica, económica e financeira, ambiental, procura de tráfego, aeronavegabilidade, as várias áreas do saber onde era necessário fazer estudos sectoriais e solicitou ao Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas a designação de uma lista de professores catedráticos, especialistas nas diferentes áreas. E daquelas listas indicadas pelo Conselho de Reitores, a professora Maria do Rosário Partidário escolheu. Eu não conheço forma mais independente de constituir uma comissão. A comissão depois contratou mais de cem técnicos das mais diferentes áreas. Tenho ouvido dizer que há dois que já tinham tomado uma posição sobre alguma coisa, é difícil que alguém não tenha tomado uma posição…

Aqui chegados a comissão produziu um relatório, sustentou a sua decisão, mas a verdade é que nós já estamos passados quatro ou cinco ou seis dias, nem sei bem, estamos outra vez com um emaranhado de opiniões, produção de documentos no espaço público em que parece que todas as soluções são más.
Deixe-me dizer duas coisas. Vamos primeiro pela questão de fundo. O relatório foi entregue tem trinta dias para discussão pública creio, que é até dia 19 de janeiro, em que todos podem pronunciar-se sobre o relatório. A comissão depois tem cerca de 60 dias para avaliar os contributos que agora surjam nesta fase de discussão pública e fazer o relatório final. O relatório é muito interessante e eu recomendo a leitura, porque, obviamente, o título é recomenda a passagem do Humberto Delgado, transitoriamente, para depois, finalmente, ser Alcochete como primeira opção ou, em segunda opção, Vendas Novas. Bom, mas o relatório é muito mais interessante e muito mais rico do que isto, porque o relatório indica N fatores críticos de decisão e avaliou, para cada um destes fatores críticos de decisão, qual é, das diferentes opções estratégicas de aeroportos, a sua posição relativa. E naquela bateria de fatores críticos de decisão, há cinco ou seis soluções diferentes que aparecem em primeiro lugar. Se escolher custo, é um. Se escolher ambiente e saúde pública, é outro. Se escolher acessibilidades, é outro. Ou seja, o decisor político vai ter o privilégio de, tendo uma solução recomendada com análise multifactorial, poder decidir consoante o critério que entenda preferível. 

Para mim, o que conta verdadeiramente é a proteção do ambiente e da saúde pública. E, portanto, o que eu escolho é este. Há um outro Governo que pode vir e dizer assim, perante as condições do país, eu entendo que o critério essencial é o critério do custo e, portanto, a solução é esta. E o relatório oferece-lhe esta oportunidade. 

Se o senhor fosse o decisor, para si, teria lá os elementos suficientes para tomar a decisão? 
Tinha e tenho. Não tenho a menor das dúvidas. Aguardaria agora o fim da discussão pública, pelo relatório final. Até tenho inveja de não ser eu a decidir, porque, raras vezes, na minha vida política, tive a possibilidade de decidir com um quadro de informação tão rico, tão diverso, tão bem fundamentado nas diferentes opções que posso tomar, e por um conjunto de pessoas tão qualificadas como aquelas que integram a Comissão Técnica e Independente. 

E, neste processo todo, não lamenta ter sido um pouco mais Guterres e um pouco menos Sócrates, que já podia ter resolvido o assunto? 
Eu não me arrependo de nada. E tenho a esperança que o PSD não me desiluda. Agora, este é o grande teste à credibilidade do PSD. Porque, se o PSD, depois de todo este historial, de ter aceitado uma solução em Alcochete, durante o Governo Sócrates, depois de ter tomado a decisão de não haver aeroporto nenhum, depois de ter decidido Montijo, depois de eu ter tido a humildade de aceitar a solução Montijo, de me ter tirado do tapete e de não ter permitido a realização do Montijo, depois de ter acordado comigo uma metodologia... Isto é a mesma coisa quando temos uma divergência entre nós e escolhemos uma pessoa, o Zé Alberto Carvalho, para fazer o tira-teimas. E, depois, chega ao fim da decisão, e ou você ou eu não gostamos da decisão do Zé Alberto Carvalho e dizemos que isto não pode ser.

O árbitro não pode ser este. 
O árbitro não pode ser este. Mas, desculpe, o árbitro foi escolhido da forma mais independente possível, por pessoas de altíssima idoneidade e respeitabilidade, como é o reitor da Universidade do Porto, que era presidente do Conselho de Reitores. 

Acho que a sua posição está clara. Vamos passar só aqui rapidamente pela TAP. O processo agora, obviamente, está congelado à espera do novo Governo. Mas, o primeiro-ministro demissionário, ou o cidadão António Costa, o que é que espera que aconteça? Que a TAP seja privatizada, maioria do capital, minoria do capital, o que é que acha que é melhor para o país, dito de outra maneira? 
A minha posição pessoal, e enquanto primeiro-ministro, é conhecida. Eu apresentei um decreto-lei, que foi vetado pelo Presidente da República, que previa a privatização de pelo menos 51% do capital. Se os 51% são 100% ou não são 100%, depende da negociação, e como sempre disse, o montante do capital não é o critério essencial para podermos manter o que é fundamental, que é o controlo estratégico da TAP. Porque, por via do acordo parassocial, eu posso ter o controlo necessário. E isso é claro que o Estado nunca pode abdicar. 

Se fossem outros sócios, ou melhor, se fosse um outro sócio principal em 2015, eu, porventura, não precisava ter de comprar tanto capital. Agora, com aquele sócio, ainda bem que comprei o que comprei. Porque quando aconteceu o que aconteceu, no momento do ccvid, e tivemos de nacionalizar a TAP para a TAP não falir, não houvesse milhares de postos de trabalho destruídos, não houvesse um enorme ativo para a economia portuguesa que tivesse desaparecido, lá teríamos pago muitíssimo mais do que tivemos de pagar em 2020, se não tivéssemos já uma parte importante do capital que tivesse sido adquirido naquela altura. E, portanto, aquilo que eu digo, é a minha opinião, é que o Estado deve privatizar pelo menos 51%. 

Mas o Presidente da República vetou, obviamente hoje já não há condições políticas para o Governo ir e discutir qualquer outra decisão, o próximo Governo tomará as decisões, como sabe, há propostas políticas para todos os gostos, daqueles que acham que não deve ser privatizado nada, àqueles que acham que deve ser privatizado tudo, àqueles que têm uma posição intermédia.


Um dos temas que tem estado na ordem do dia, e eu sei que o senhor não é comentador, gosta sempre de o dizer, mas que tem a ver com esta questão das gémeas luso-brasileiras, em algum momento o senhor soube que membros do seu Governo, designadamente o secretário de Estado, o então secretário de Estado da Saúde, António Lacerda Sales, se encontrou com o filho do Presidente da República? Essa informação chegou-lhe de alguma forma?
Não, nunca soube. Nunca soube, aliás, para lhe ser sincero, deste caso tomei conhecimento agora que a TVI tem noticiado o caso, enfim, todos os dias, praticamente, ou se não é todos os dias, quer dizer, por semana, há dezenas de cartas que vêm da Presidência da República para o gabinete do primeiro-ministro, capeando ofícios vários de pessoas que se dirigem à Presidência da República, queixando-se de vários organismos de nação pública, pedindo a resolução de algum problema, e há um circuito normal.

O que acontece normalmente no meu gabinete é que no meu gabinete, em função da matéria, é redistribuído para os ministérios respectivos. Naquele caso concreto, aquilo que eu fui ver, fui ver agora, para ver o que é que se tinha passado, de facto chegou um ofício da Presidência da República e foi reencaminhado para o Ministério da Saúde um conjunto de seis ofícios, um relativo àquele caso e cinco outros relativos a outros casos. 

O facto do processo no Ministério Público ter sido aberto no mesmo dia em que é conhecido o seu caso, para si é o quê? Uma coincidência?
Eu só posso entender como uma coincidência. Tem a ideia que não seja?

Não, estou a perguntar, eu faço perguntas.
Eu não sou dado a teorias da conspiração e não me passa pela cabeça que não seja uma pura coincidência. Este caso começou a ser tratado aqui na TVI quatro dias antes. Quatro dias antes do comunicado que me forçou à minha demissão. Se o processo foi aberto nesse dia, eu só posso entender como uma coincidência. Ouça, se não fosse coincidência, estávamos num cenário que é melhor não pensarmos nele. 

Destes oito anos como primeiro-ministro, qual é a melhor e a pior recordação, o pior e o melhor momento que tem, que guarda, se quiser?
O pior não tenho dúvidas nenhumas qual é. Por mais anos que passem, é aquele dia 17 de junho de 2017. Foi o momento mais terrível que vivi. De impotência, de drama. 

Eu cheguei a Pedrógão no dia a seguir. Os cadáveres ainda estavam nas viaturas. Nunca me esquecerei do que vi, do cheiro, de toda essa sensação. Foi o pior dia da minha vida, enquanto primeiro-ministro. De impotência perante um fenómeno natural de uma dimensão terrível. Pior do que a covid, devo-lhe dizer. Porque na covid eu sentia que havia coisas que podíamos fazer. Nós podíamos tentar ter máscaras, nós podíamos determinar coisas muito difíceis, como encerrar estabelecimentos, obrigar as pessoas a ficarem fechadas em casa.

Eu sentia que havia coisas que eu podia fazer, seguramente nem todas bem. Felizmente o balanço geral, acho que o país coletivamente se deve orgulhar da forma como enfrentou o desafio do covid. Mas aí eu sempre senti que tinha formas de reagir. Perante aquele incêndio eu senti que não tinha nada que pudesse efetivamente fazer para alterar um fenómeno natural absolutamente extraordinário, como aquele downburst que teve aquela consequência trágica.

E a decisão de que mais se arrepende nestes oito anos?

Enfim, se o PSD não honrar o compromisso que tem, eu diria que foi o ter confiado que podíamos trabalhar em conjunto para ter uma decisão de consenso sobre uma investidura fundamental para o país, como é o futuro aeroporto. 

Já se encontrou, já almoçou, já esteve com o seu amigo Diogo Lacerda Machado depois destes acontecimentos?
Não, falámos ao telefone. 

E é o seu amigo Diogo Lacerda Machado? 
Não, ele é meu amigo. Eu sei que muita gente interpretou mal quando eu disse que utilizei uma infeliz expressão como melhor amigo. Felizmente ele sabia bem o que é que eu queria dizer. Acho que o doutor Magalhães e Silva interpretou muitíssimo bem. Foi aliás, uma expressão que ele próprio me utilizou num telefonema que fez quando eu disse que ele era o meu melhor amigo e ele telefonou-me a dizer olha, fico muito honrado, mas foi muito infeliz porque acabaste de destruir a minha personalidade. Eu deixei de ser o Diogo Lacerda Machado e passei a ser o teu melhor amigo. E sim, é meu amigo.

Sabe quem é que faz anos amanhã?
De repente não. Eu sou péssimo para datas de aniversários.

O Presidente da República, o professor Marcelo Rebelo de Sousa.

Ainda bem que me lembra, porque assim ligarei o mais cedo possível a dar-lhe parabéns. 

É isso que eu ia perguntar. Vai telefonar-lhe? 
Sim, com certeza. Só uma vez é que liguei praticamente à meia-noite e ele sinalizou que as boas felicitações são as que são dadas ao princípio da manhã e não ao final da noite. Mas ainda foi dentro de prazo, portanto, ainda bem que me avisa. Eu sou péssimo para datas de aniversários. Sei o da minha mulher, da minha mãe, dos meus filhos e pouco mais. 

O que é que vai fazer a seguir? O senhor sempre esteve na vida política, não é?  Uma pessoa que sempre esteve na vida política, o que é que faz, e admitindo que possa voltar a estar na vida política, porque eu lembro-me que logo ali nos primeiros dias disse a minha vida política acaba aqui, mas nos últimos dias já não o senti assim. Mas a seguir, quando sair de São Bento, o que é que vai fazer? 
Eu exerci uma profissão antes de estar na vida política, fui advogado mais de dez anos. E gostei muito de ser advogado. Hesitei muito, se havia de continuar na advocacia ou se me devia dedicar por inteiro à causa pública. Não é fácil para quem teve muitos anos na vida política, regressar à advocacia, porque facilmente o tipo de advocacia que é solicitado a quem teve tantos anos sem praticar, é um tipo de advocacia que eu não desejo fazer. 

O direito da família talvez esteja imune, mas não é uma área da minha especialidade, nem de particular gosto. Olhe, a ser sincero, não pensei ainda muito nisso, mas vou ter que pensar, eu vivo do meu trabalho, e portanto irei continuar a trabalhar. Como? A vida política não é só exercer cargos políticos. Aquilo que eu disse, e digo, e reafirmo, é que, no meu entendimento, quem está sobre uma suspeição oficial, com a gravidade que foi suscitada pela senhora procuradora-geral da República, tem o dever de proteger as instituições e não exercer cargos públicos. Eu não disse que sairia da vida política, disse que não exerceria cargos públicos. Tenciono ter opiniões, posso escrever para jornais, posso ir a manifestações, posso ir a comícios.

Pode ser comentador?
Talvez, acho que não devo. Também, para lhe ser sincero, acho que quem exerceu funções de primeiro-ministro deve ter algum recato a ir comentar, quem vem a seguir... mas olhe, é uma boa questão, que, enfim, para já ainda não tive a ocasião de me pôr, mas que me colocarei, naturalmente, eu vivo do meu trabalho, portanto, tenho que ir trabalhar. É o que irei fazer com gosto. 

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