Habitação. Esta é a história que chocou António Costa. “Ele levou um murro, nós levámos uma carga de porrada”

5 out 2023, 08:00
Largo do Intendente (Junta de Arroios)

O Largo do Intendente foi, para muitos, a esperança numa nova forma de revitalizar e viver Lisboa. Só que, com o passar do tempo, essa esperança caiu por terra. Aqueles que iniciaram a mudança dizem-se “escorraçados” pela pressão imobiliária. O agora primeiro-ministro, que enquanto autarca quis “manifestar uma vontade efetiva de transformar” este território, confessa-se chocado com a situação. Quem conhece o Intendente, deixa o aviso: isto vai repetir-se noutras zonas de Lisboa

Quando, em 2011, António Costa decidiu instalar-se no Largo do Intendente, houve quem o chamasse “doido”. Palavra do próprio. Afinal, ia fixar o seu gabinete como presidente da Câmara Municipal de Lisboa numa zona então conhecida pela droga, pela prostituição, insegurança e casas abandonadas. Quem conhecia o largo naquele tempo diz que era um deserto. Doze anos depois, agora como primeiro-ministro, Costa voltou a falar desta decisão.

“Outro dia li uma reportagem que me deixou… devo dizer que foi um verdadeiro momento de murro no estômago. Sobre o que aconteceu no Largo do Intendente”, afirmou António Costa na recente entrevista à TVI e CNN Portugal, depois de ter sido confrontado por uma portuguesa sobre o estado da habitação na capital.

A reportagem que chocou Costa foi publicada no início de setembro pelo jornal “Público”. Chama-se “Uma década após renascer, Intendente deixou de ser a ‘sala de estar’ de Lisboa” e é da autoria do jornalista Samuel Alemão, confirmou a CNN Portugal. Nela mostra-se como esta zona de Lisboa está a sofrer os efeitos da gentrificação. A um ponto que, perante a pressão imobiliária, o Largo do Intendente está a perder toda a comunidade que o dinamizou ao longo dos últimos anos e a ver surgir duas realidades contrastantes: os projetos de luxo e o regresso do consumo e tráfico de droga às ruas.

“Levei para lá o gabinete do presidente da Câmara para manifestar uma vontade efetiva de transformar aquele território”, recordou Costa na entrevista. E concluiu: “O que aconteceu em cerca de 12 anos era absolutamente inimaginável. Alguns dirão que foi um grande sucesso. Outros dirão que foi um sucesso excessivo. Outros dirão que foi pena não termos antevisto a revolução que estávamos a desencadear”.

António Costa em 2011, na apresentação do seu novo gabinete no Largo do Intendente, em Lisboa. Foto Lusa

“Ele levou um murro, nós levámos uma carga de porrada”

Ao longo dos últimos meses, a notícia repetiu-se. Só mudava o protagonista. Desde o café “O Das Joanas”, que funcionava no prédio onde Costa instalou o seu gabinete, ao projeto cultural Largo Residências. Um a um, foram abandonando o Intendente. A sala de espetáculos Casa Independente já recebeu também o aviso para sair até ao final de 2025, porque o prédio vai ser vendido.

“Se ele levou um murro no estômago, nós levámos uma carga de porrada”, reage Luís Castro da Vizinhos de Arroios – Associação de Moradores. “Custa-nos crer que o primeiro-ministro não tenha pensado na situação. A classe política tem a responsabilidade de pensar nas consequências quando toma medidas”, junta.

Para Luís Castro, “não há volta a dar”. Melhor, o Intendente deu a volta de tal maneira que voltou àquilo que era antes de 2011, descreve. A zona “está descaracterizada”, “sem movimento”, com droga. Só que agora tem turistas e habitação de luxo, um chamariz para quem faz da criminalidade a sua vida. A vida que o Intendente ganhou, diz, só se manterá se forem “suspensos os despejos”.

Pressão imobiliária é a principal queixa, a que se junta depois o regresso da droga (Junta de Arroios)

“Os prédios que estavam vazios antes de António Costa lá chegar continuam vazios. Estão é ao triplo do preço”

Catarina Portas ainda não recebeu o aviso de despejo, mas acredita que esse dia chegará mais tarde ou mais cedo. É a empresária responsável pelo projeto “A Vida Portuguesa”, que promove marcas e empresas com produção nacional. E uma das vozes mais ativas, desde o início, pela dinamização do Intendente, onde tem uma loja.

“Sonhámos todos com um Intendente que aconteceu nos primeiros anos. Era um espírito generoso. Criámos uma comunidade ali”, diz. Depois vieram a especulação imobiliária e os despejos. “E hoje em dia estamos nesta situação estapafúrdia em que está a ser construído um clube de luxo [da rede Soho House, no Palácio Pina Manique] e a droga está a voltar ao largo”, descreve.

A loja de Catarina Portas está integrada num prédio que faz parte de um lote de quatro, que está à venda por 22 milhões, há quatro anos, descreve. Às palavras de Costa, responde desta forma: “O Intendente não é um grande sucesso. É o caso mais dramático de gentrificação no centro de Lisboa, com especulação imobiliária selvagem. Os prédios que estavam vazios antes de António Costa lá chegar continuam vazios. Estão é ao triplo do preço”.

Se numa fase inicial, a autarquia esteve envolvida no esforço coletivo, “abandonou o bebé quando ele começou a andar”. O acompanhamento foi sendo cada vez menor, até desaparecer. Passaram Costa, Fernando Medina e Carlos Moedas. E muitas das intenções que poderiam ter assegurado uma nova vida, uma comunidade, ao Intendente, nunca saíram do papel. Ou transformaram-se: como o projeto de uma residência universitária, no número 57, que virou um condomínio de luxo onde, diz quem conhece o quotidiano daquela zona, nunca se vê ninguém.

“Choca-me que não haja alguém que estude este caso, para evitar erros noutras áreas da cidade”, aponta Catarina Portas. Não é a única a deixar este aviso. Há muitos Intendentes prontos para rebentar em Lisboa. Quer exemplos? O Cais do Sodré, onde viver tornou-se secundário perante toda a animação noturna."

Ou Marvila, onde foi também o movimento de artistas que ajudou na revitalização daquela zona de Lisboa. Só que “está a passar da realidade dos artistas e da população que lá existia para condomínios de luxo, em que as pessoas entram e saem através das garagens”, descreve Patrícia Craveiro Lopes, uma das responsáveis da Casa Independente.

Atrás de António Costa está o edifício onde funcionava a Viúva Lamego no Largo do Intendente. A foto (da Lusa) é de abril de 2011.

Independente, mas quase sem teto

A Casa Independente, espaço que se tornou uma referência no Intendente, com um programa cultural multidisciplinar, terá de sair até ao final de 2025. Quando muito, início de 2026. “Faz parte de um movimento que se criou na cidade. Os artistas são sempre batedores, a cultura vai sempre à frente. Era uma zona proibida no centro da cidade. Houve um processo de transformação inédito”, descreve Patrícia Craveiro Lopes.

Mas o projeto acabou por ser vítima da sua própria transformação. “Acabámos escorraçados”. Para esta agente cultural, a nova vida do Intendente atingiu o seu auge cerca de quatro anos após a instalação do gabinete de António Costa, que estava “muito envolvido em todo o processo” e conversava frequentemente com aqueles que estavam envolvidos neste esforço.

“Costa foi muito ativo e viveu muito o Intendente. Imagino que, se ele não tinha noção do que estava a acontecer, foi um murro estômago. Acho é que isto devia ser um murro no estômago para a cidade inteira”, reage.

E como inverter então esta realidade? “Precisamos é de vontade política, porque está tudo a voltar ao mesmo lugar, com droga. É caricato. No prédio ao lado, vai surgir um clube de membros privados de uma elite mundial [da rede Soho House, no Palácio Pina Manique]. Depois, à porta, tens pessoas a chutarem”, descreve.

No prédio da Casa Independente há um projeto aprovado que permitirá a construção de mais dois andares. A mudança é inevitável. Para onde? Só o futuro dirá, porque não existe um espaço no centro de Lisboa com uma renda que o projeto consiga pagar.

A CNN Portugal contactou a Junta de Freguesia de Arroios, que agora é liderada pela coligação PSD/CDS, que optou por não comentar. Foi também pedida uma reação da Câmara Municipal de Lisboa, no sentido de perceber que soluções ou estratégias estão a ser estudadas para este território. Não recebemos resposta até à publicação.

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