O "vai funcionando" de Costa. Mais de 1.500 doentes ‘obrigados’ a ficar internados por falta de vagas nos cuidados continuados

4 out 2023, 08:00

Na entrevista à CNN Portugal /TVI, o primeiro-ministro foi confrontado por uma enfermeira sobre as falhas da rede de apoio aos idosos e doentes que precisam de ajuda depois de terem alta hospitalar. "Vai funcionando", respondeu António Costa. Dados atuais mostram que a tendência é para piorar face ao envelhecimento da população e às dificuldades das famílias

Numa altura em que a população está cada vez mais envelhecida, as famílias enfrentam dificuldades não só financeiras como habitacionais e o Serviço Nacional de Saúde (SNS) sobrevive a meio-gás, António Costa reconhece que a rede que permite reduzir o número de pessoas que permanecem no hospital após a alta médica, e que tem vindo a aumentar, não está a funcionar bem. "Vai funcionado”, admitiu António Costa, quando confrontado com uma pergunta feita por uma enfermeira durante a entrevista promovida pela CNN Portugal/TVI .

O que  Costa diz que "vai funcionando"  é a chamada Rede Nacional de Cuidados Continuados Integrados (RNCCI), criada em 2006 pelos Ministérios do Trabalho e da Solidariedade Social e da Saúde, e que dá apoio a idosos e a pessoas com dependência, quer através da prestação de cuidados em unidades públicas e privadas, quer através de apoio domiciliário.  

Quando o primeiro-ministro foi questionado por Arminda de Jesus Branco Morais, enfermeira de 63 anos, durante o CNN Town Hall, que aconteceu depois da entrevista do primeiro-ministro à TVI (do mesmo grupo da CNN Portugal), a sua resposta acabou por revelar as fragilidades. "Desculpe lá uma coisa: não se passa nada na vida do zero para os 100 só porque queremos. Para passar dos zero até aos 100, nós temos que ir executando e temos que ir trabalhando", afirmou, dirigindo-se à autora da pergunta

Os mais recentes dados relativos à RNCC, referentes a março, revelam, porém, que até aumentou o número de pessoas que ficam internadas já depois de terem tido alta simplesmente porque não têm para onde ir ou os familiares não têm condições para os receber e prestar o devido auxílio. Atualmente, a rede dispõe de cerca de quatro mil camas, mas há mais de 1.600 pessoas à espera de vaga.

Inês Guerreiro foi coordenadora Nacional da Rede de Cuidados Continuados em Portugal (RNCCI) entre 2006 e 2012 e embora se apresse a dizer que está “afastada há muitos anos”, lamenta o facto de não notar grandes melhorias desde então. 

Traçamos um plano até 2016, que já passou há muito, mas que não foi atingido nem em 2016 nem hoje em dia, com a agravante que há cada vez mais pessoas em idade avançada”.

E Xavier Barreto, presidente da Associação Portuguesa dos Administradores Hospitalares (APAH), garante que “o sistema de saúde funciona como válvula de escape” para muitas famílias: "Não há vagas nas redes, os familiares não conseguem dar apoio e, por isso, os doentes ficam no hospital”.

“A rede vai funcionando, mas muito aquém do que é necessário”, atira.

Se em 2017, primeiro ano em que a APAH passou a avaliar o motivo dos internamentos, o número de pessoas que permaneciam nos hospitais por questões sociais representava 4,9% do total de internamentos - 665 de um total de 13.505 -, no ano passado, estes internamentos sociais representavam já 9,4% do total. 

Segundo o sétimo Barómetro de Internamentos Sociais, divulgado em junho deste ano, 1.675 camas dos hospitais públicos estavam em março de 2023 ocupadas por pessoas internadas apenas por razões sociais, isto é, uma em cada dez camas de internamento. No entanto, cinco meses depois, o número mantém-se: na comissão parlamentar de Saúde, que decorreu há dias, o diretor-executivo do SNS Fernando Araújo revelou que cerca de 1.600 doentes encontravam-se internados inapropriadamente a 31 de agosto, estando ainda a aguardar resposta social e vagas na Rede Nacional de Cuidados Continuados Integrados, como noticiou o Expresso.

“O número não se alterou, o que não quer dizer que não tenham surgido mais respostas, mas a procura é cada vez maior. Há um desajuste entre as vagas da rede de cuidados continuados e vagas contratualizadas em estruturas sociais para pessoas idosas e os casos que ocorrem nos hospitais com alta clínica”, diz Xavier Barreto, admitindo que esta é uma realidade que “preocupa”.

O estudo da APAH - Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares, com o apoio da EY e da Sociedade Portuguesa de Medicina Interna, revela ainda que o tempo de internamento para lá da alta passou de 29,9 dias em 2022 para os 61,4 dias em 2023. A principal causa, diz o barómetro, é o atraso na obtenção de vaga para ERPI - Estrutura Residencial Para Pessoas Idosas (lar de idosos, que pode ser criado através de misericórdias ou via IPSS, por exemplo), mas salienta que há  mais doentes a aguardar vaga apenas na RNCCI - Rede Nacional de Cuidados Continuados Integrados, cerca de 840.

Para Inês Guerreiro, isto é um sinal de que “não tem havido um grande investimento nem político nem financeiro” nesta matéria. “Neste momento somos dos países mais envelhecidos da Europa, mas do que menos investe em cuidados de longa duração, tudo o que vai além da emergência”, lamenta, avançando com números: “arredondando para cima, devemos ter um investimento de 0.5% do PIB, quando na Europa 2% seria o mínimo e as nossas necessidades seriam 5%”.

Esta nova dimensão, que chamaria transição demográfica, e que diria que é tão importante como a transição climática, traz para a sociedade uma pressão enorme, com necessidade de mudanças”, adianta Inês Guerreiro, defendendo que “esquecer as famílias é um grande erro” e que esta questão dos internamentos inapropriados deve ser uma prioridade para “qualquer governo”.


Falta de respostas sociais

“Isto não é um problema de saúde, é um problema social”, atira Xavier Barreto. Para o presidente da APAH, “o que está a falhar é o apoio social dado a estes doentes e famílias”. “Precisamos de mais apoio social, isto é um problema da sociedade como um todo”, continua.

Xavier Barreto considera que “falta criar uma estrutura social que dê apoio a estas pessoas, que geralmente são pessoas idosas que precisam de cuidados, seja nos domicílios ou nas unidades de dia”. E mesmo as opções que estão atualmente a funcionar ficam, mais uma vez, “aquém” das necessidades, diz, exemplificando: “muitos centros de dia abrem as 9h00 e fecham às 17h00, o que é incompatível com os horários dos cuidadores, que acabam por ter de institucional a pessoa”.

“Grande parte destas famílias queria ter condições para trazer estes doentes em casa, mas não consegue. Os cuidados informais que existem em Portugal, e são centenas de milhares, só cinco mil recebem apoio financeiro. Isso é irrisório e recebem cerca de 300 euros [272 milhões], um valor muito baixo”, adianta Xavier Barreto.

Inês Guerreiro, que foi também assessora do Ministro da Saúde e da Secretária de Estado da Saúde em 2001 e 2005 e 2006, volta a destacar que este problema não é de agora. “Já passou tanto para não exigir responsabilidades políticas e no sistema, que se quer integrado, que não seja setor da saúde de um lado e social do outro”.

“Isto é uma realidade, mas não podemos instituir um bode expiatório, não são as famílias, os hospitais, os lares, o bode expiatório é a falta de visão de grande política, de proteção social e de saúde, que tem de olhar para esta população cada vez com mais necessitada”, diz, adiantando que “temos um grande trabalho a fazer, mas não pode ser previsto para amanhã, já devia ter começado, o ritmo não devia ter abrandado, teria de estar nas prioridades”.

No entanto, a questão parece seguir dois rumos: o próprio primeiro-ministro reconhece que este a dificuldade em libertar estas camas sociais “é um problema recorrente”, mas desde o início do ano fecharam mais de 340 camas em unidades de cuidados continuados por “estrangulamento financeiro” destas instituições, revelou a Associação Nacional dos Cuidados Continuados, como conta a Rádio Renascença.

Internamentos inapropriados custam 226 milhões

Olhando para os dados de 2022 e 2023, o Estado está a gastar cada vez mais com os internamentos inapropriados. Com o aumento de 60% das camas sociais apenas até março deste ano, as estimativas apontam que, até ao final de 2023, o custo com os internamentos inapropriados ascenda aos 226 milhões de euros- cenário de agravamento que o sexto barómetro já tinha revelado

Para Xavier Barreto, este valor é demasiado elevado para aquilo que efetivamente poderia estar a ser feito. “O internamento social tem custos muito mais elevados do que outros níveis de resposta. Agora poderíamos questionar se não seria mais lógico inexistir estes 200 milhões de euros em respostas sociais, até porque o internamento hospitalar tem riscos, como as infeções”, vinca.

Se no ano passado estas camas sociais tinham um custo estimado para o Estado de 19,5 milhões de euros, este ano o custo ascende aos 52 milhões de euros e note-se que estes dados excluem as unidades psiquiátricas e são apenas referentes até março, o que leva a crer que o número de internamentos inapropriados e respetivo custo sejam maiores até ao final do ano.

E há casos concretos em que o cenário se torna mais agudo, como acontece no Hospital Fernando Fonseca (Amadora-Sintra), que tem contratualizadas atualmente 99 camas no exterior, 59 das quais para resposta a casos sociais e 25 para resposta a utentes referenciados para a Rede Nacional de Cuidados Continuados.

No Programa de Recuperação e Resiliência lê-se que o Governo pretende criar mil novas camas da RNCCI na Rede Geral até dezembro do próximo ano, alcançando o total, acumulado, de 5.500 novas camas até dezembro de 2025, chegando assim a um total de cerca de 15.000. O próprio primeiro-ministro fez questão de salientar o que o PRR contempla “um conjunto de verbas significativas, não só para criar uma rede de cuidados continuados integrados e institucionalizados, mas sobretudo um investimento muito significativo no apoio domiciliário”.

O presidente da APHA vê com bons olhos as intenções do Governo, mas rejeita otimismos até porque, lembra, há um prazo para cumprir e a inflação veio trocar as voltas e as contas feitas pelo Executivo. “Sabemos que o governo tem feito um esforço para capacitar a rede, está previsto um investimento de cerca de 300 milhões de euros para criar muito mais camas, isso é ótimo, esperamos é que se concretize, pois sabemos que estamos a correr contra o tempo, porque os investimentos do PRR têm de se concretizar até 2026. E isso preocupa-nos”.

Inês Guerreiro mostra-se mais crente na eficácia do uso destes fundos. “Tenho de acreditar na nossa administração e investidores, gostaria imenso que esse dinheiro não fosse desperdiçado”, diz, adiantando que deve ser usado não “só em camas, mas também para equipas de saúde mental, domiciliárias, de cuidados con integrado”.

“É preciso recursos humanos e pensar como se vai pagar tudo isto. É preciso dar prioridade a esta questão”, conclui.

 

O diálogo de António Costa e da enfermeira Arminda

[Enfermeira Arminda Morais] Boa noite, senhor primeiro-ministro. Nós temos uma população idosa, temos o inverno à porta, urgências a fechar, temos falta de médicos de família, os internamentos vão aumentar e o prolongamento dos internamentos também. Os idosos entram com uma patologia, mas derivado às suas condições vão ficando sempre mais dias internados. A questão é a seguinte: eles podem sair mais cedo para casa, desde que haja uma rede de cuidados continuados que não faz, não temos, não responde. Podia haver uma rede de cuidados continuados ao domicílio, evitava um prolongamento nos hospitais de [doentes] agudos, poupava dinheiro ao Estado, que é uma despesa que o Estado tem, mas que somos nós, contribuintes que pagamos, não sei se tem isso pensado.

[António Costa] Está pensado e está em execução com as IPSS. Neste momento, com as misericórdias, com as diferentes IPSS, nós temos só no programa, no PRR, um conjunto de verbas significativas, não só para criar uma rede de cuidados continuados integrados e institucionalizados, mas sobretudo um investimento muito significativo no apoio domiciliário.

[Enfermeira Arminda Morais] Mas isso é para quando?

[António Costa] Já está a ser.

[Enfermeira Arminda Morais] Mas isso não funciona.

[António Costa] Desculpe? ... Não, vai funcionando.

[Enfermeira Arminda Morais] Vai funcionando, pois, está bem.

[António Costa] Desculpe lá uma coisa, não se passa nada na vida do zero para os 100 só porque queremos. Para passar dos zero até aos 100, nós temos que ir executando e temos que ir trabalhando. E neste momento, as IPSS, muitas delas estavam muito focalizadas, sobretudo, nas residências para idosos, estão neste momento a diversificar a sua área de intervenção para a assistência domiciliária e todos os acordos que assinamos nos últimos quatro anos com todo o setor social e solidário valoriza muito precisamente esse, [o] dos programas de assistência domiciliária, da teleassistência, dos cuidados integrados ou sem ser cuidados continuados, ou mesmo da mera assistência no domicílio. Isso é um programa muito forte que as IPSS estão a agarrar e a desenvolver.

[Enfermeira Arminda Morais] Mas tem conhecimento que os internamentos nos hospitais continuam a ser prolongados? Que os familiares não os vão buscar porque não têm condições para tomar conta deles, não podem ficar desempregados...

[António Costa] As chamadas camas sociais. Todos os anos...

[Enfermeira Arminda Morais] E eles continuam a ficar internados ad aeternum.

[António Costa] Vamos lá ver. Nós temos vindo a fazer programas entre a Segurança Social, o Ministério da Saúde, hospital a hospital, para ir conseguindo recolocar as pessoas que estão nos hospitais e que já têm alta e, portanto, só estão no hospital porque não têm outro sítio para ir, para as ir colocando. Houve uma grande vaga, no ano passado, de colocações, mas é um problema recorrente, mas recorrentemente temos vindo a desenvolver esses programas entre as IPSS e os diferentes hospitais. E vamos continuar.

[Enfermeira Arminda Morais] Muito bem. Esperemos que sim.

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