A que velocidade pensa um matador que fareja o golo? Muito, muito depressa. Anatomia de um golo.
A angústia do guarda-redes no momento do penálti é tema batido. Até já deu origem a um livro de ficçãoEmbora apelativo, o título é alvo de críticas recorrentes dos que prestam atenção aos pormenores: num penálti, a angústia real está do lado do marcador, que é quem tem a responsabilidade de fazer golo. Não do guarda-redes, que tem pouco a perder, com apenas 25 por cento de hipóteses de evitá-lo.
Mas a situação específica, a que o título se refere, tem a ver com a tomada de decisão nos momentos anteriores ao apito. O guarda-redes deve antecipar o movimento, procurando adivinhar o lado escolhido pelo avançado ou esperar para reagir depois, contando que o adversário tenha uma execução imperfeita? Mesmo quem nunca deu um pontapé numa bola, ou jamais tentou uma defesa, pode definir-se perante a vida com a resposta a essa pergunta.
O que passa pela cabeça de um avançado no momento da decisão é assunto muito menos batido e debatido. Talvez porque, entre aquilo que não sabe definir por palavras - por ser puramente intuitivo – e o que não está interessado em revelar – para não dar trunfos ao adversário – sobre pouco espaço para satisfazer a curiosidade de quem pergunta. Mas há exceções, claro. E, assim, chamamos Pedro Pauleta
O contexto
A rapidez com que, desafiado por telefone, Pedro Miguel Carreiro Resendes escolhe o golo de uma vida só tem paralelo com a rapidez de pensamento e execução que lhe permitiu marcá-lo. Fiquemos com a data, o local e o jogo, antes de darmos uma volta pelo passado: 25 de abril de 2004, Parque dos Príncipes, PSG-Marselha. Já aí voltaremos, a esse mágico 12º minuto. Agora, venha o contexto.
Num futebol português treinado para avaliar os intérpretes pela cor da camisola que vestem, a carreira de Pauleta foi exceção de uma ponta a outra. O desafio à tradição começou nas origens: a ilha de São Miguel não era, até aos anos 90, filão habitual de talento para o futebol português. Prosseguiu pelo facto de nunca ter jogado na I divisão portuguesa, mesmo permanecendo em clubes lusos até aos 23 anos. Terminou no exotismo de ser um matador puro, essa raça exótica que remata primeiro e pergunta depois, contra o código genético do futebol nacional.
Quando esta história começa, Pauleta já superou quase todos os patamares, de passo improvável em passo improvável. Da II divisão portuguesa para a espanhola. Desta para La Liga, sendo campeão na Corunha. Daí para Bordéus, onde estabiliza, já com estatuto de titular na seleção: ao longo de três épocas acumula distinções e troféus individuais, entre eles o de melhor jogador do campeonato, eleito pelos seus pares.
Na mudança para Paris, no Verão de 2003, por 10 milhões de euros, Pauleta tem a a responsabilidade de confirmar o estatuto de fenómeno, traduzido em mais de 90 golos nos 130 jogos pelo Bordéus. Sem angústias, sempre sem angústias, começa aí mais uma caminhada, rumo à condição de melhor goleador de sempre dos parisienses, com 109 golos em partidas oficiais.
O clássico
Nessa tarde de domingo, Pauleta está a três dias de completar 31 anos e a mês e meio de jogar o Europeu em Portugal. Faltam seis jornadas para o fim do campeonato, e o PSG persegue o líder Lyon, tendo menos três pontos. Com a visita do Marselha ao Parque dos Príncipes joga-se o maior clássico da Ligue 1 e esta é a altura ideal para Pauleta entrar na conversa.
«Não tinha jogado grandes clássicos até aí. O Corunha-Celta tinha alguma mística, mas a rivalidade entre PSG e Marselha era claramente maior. Para o nosso público, esse era o jogo mais importante do ano. E não tenho dúvida de que o que aconteceu nessa tarde, para mais no meu primeiro clássico em casa, foi muito importante para reforçar a relação com os adeptos. Tal como os golos que continuei a marcar ao Marselha, depois disso.»
Na primeira volta, em novembro de 2003, o PSG tinha vencido por 0-1, no Vélodrome, com um golo no último minuto
Em época de estreia, faltava a Pauleta o primeiro grande clássico no Parque. E foi bom que o calendário o tivesse projetado para uma fase tão adiantada da época, em finais de abril: o tempo necessário para que as diagonais do avançado açoriano fossem entendidas e processadas pelos companheiros de equipa, casos dos argentinos Heinze e Sorin, do sérvio Ljuboja, do brasileiro Reinaldo ou do também português Hugo Leal, entre outros. A coordenação entre os passes longos e a desmarcação de Pauleta torna-se numa imagem de marca dessa equipa, treinada por Vahid Halilhodzic.
«Por essa altura os jogadores do PSG já me conheciam bem. Claro que os 90 golos no Bordéus ajudaram a ter estatuto, quando cheguei, mas é diferente trabalhar todos os dias e conhecer a fundo as características de alguém. E com jogadores da qualidade do Sorín torna-se mais fácil fazer com que as coisas resultem»
Não é por acaso que Pauleta menciona o internacional argentino. É Sorín quem tem a bola nos pés, no início dessa jogada. E é ele quem vê o movimento de Pauleta, nas costas de uma linha defensiva adiantada. Quando o passe entra, do meio para a esquerda, obriga o português a perder o enquadramento com a baliza. E é aqui que Pauleta nos vai permitir algo de raro: eis, em discurso directo, o acesso ao interior da cabeça de um goleador, a tomar decisões a 60 frames por segundo, como num videojogo.
«Quando o Sorin me faz o passe eu estou no limite do fora de jogo, mas em situação legal. Quando me viro, percebo que já ganhei o espaço ao defesa. A primeira coisa em que penso é que o guarda-redes é o Barthez e que ele, com a sua experiência, não iria mergulhar a fazer a mancha. Por um lado, era um guarda-redes que aguentava em pé o máximo de tempo. Por outro, ia tentar evitar cometer penálti. Sabendo que ele não ia cair, corro em direção à bola a pensar que teria de puxá-la para a lateral, de forma a arrastá-lo para fora da baliza.»
É precisamente isso que acontece: um primeiro toque de pé direito permite a Pauleta afastar a bola do caminho do guarda-redes e leva-a para fora da grande área, a um metro da linha de fundo. É então que Barthez faz um rápido cálculo mental: a distância e o ângulo ao dispor de Pauleta dão-lhe tempo, em condições normais, para travar a corrida e recuperar posição na baliza. Tanto mais que, nas suas costas, o brasileiro Ferreira optou por cobrir a baliza, pondo-se na linha de golo.
O cálculo de Barthez está correto, mas Pauleta, mais rápido em tudo, tinha também processado a informação mais depressa. Não só antecipou a reação do guarda-redes como já tinha desenhado, na sua cabeça de matador, a única solução instantânea para o problema.
«A verdade é que ser o Barthez me ajudou a decidir mais depressa. Ser um guarda-redes tão bom ajudou a que o lance fosse resolvido assim. Porque as pessoas podem não ter noção, mas num segundo passa-nos tudo isso pela cabeça quando vamos em direção à baliza, só com o guarda-redes pela frente. Se fosse outro tipo de guarda-redes tentava chegar à bola e esperava que ele mergulhasse, para fazer penálti sobre mim. Mas sabia que desta vez isso não ia acontecer. Por isso, ao chegar à bola já tinha decidido aproveitar o momento em que ele tentasse voltar à baliza»
No momento em que as corridas de Pauleta e Barthez tomam direções opostas e o açoriano acelera o passo para pisar a bola e rodar sobre ela enta mais uma variável nesta equação complexa, trazendo de volta um golo ocorrido sete anos antes. Em outubro de 1997, com Pauleta a jogar a primeira época no escalão principal espanhol, o italiano Christian Vieri, então no At. Madrid, tinha feito arregalar os olhos de espanto a meio mundo, com este golo ao PAOK Salónica, para a Taça UEFA:
Ressalvadas as diferenças, o golo de Vieri abre pistas à solução mágica de Pauleta, sete anos depois. Mas, sem ponta de chauvinismo, quanto mais se revêem os lances, mais valorizada fica a execução do açoriano. É verdade que Vieri está sobre a linha de fundo quando ousa o remate impossível de pé esquerdo, e que Pauleta estará, talvez, um metro e meio dentro de campo para o gesto simétrico de pé direito. Mas, ao contrário de Vieri, Pauleta não aproveita um erro grosseiro do guarda-redes: pelo contrário, Barthez fez tudo bem até aí. E, depois, tem um defesa marselhês sobre a linha, que deixa um espaço ínfimo para a bola passar. É isso que reforça o suave milagre daquele movimento de compasso com a perna direita, que põe fim a seis segundos de raciocínio em velocidade máxima. Três toques em seis segundos onde não sobra lugar para dúvidas, angústias ou indecisões:
Resta dizer que o PSG venceu esse jogo por 2-1, e que aos 62 minutos Pauleta marcou também o segundo, com um belo remate cruzado, de pé esquerdo. Consolidava-se, nessa tarde, uma relação de amor com o Parque dos Príncipes que dura até hoje. Uma relação cujo alcance, até à despedida, em 2008, nunca foi totalmente apreendido pelo público português, numa altura em que as carreiras dos jogadores nacionais lá por fora não tinham tantas honras de diretos como agora.
O tom de Pauleta é factual, em paz com a evidência, sem vestígio de queixas. O tom de quem não gasta energias com questões que não pode resolver. Afinal, a angústia pode ser um ingrediente fundamental para se produzir ficção, mas não faz falta a quem pertence à raça exótica que pensa rápido, remata primeiro e só pergunta depois.