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Quando Marcelo segurou Temido e disse que os problemas na Saúde não são "de um governo nem de dois ou três ou quatro"

Marta Temido apresentou a demissão, que o primeiro-ministro aceitou, na madrugada desta terça-feira. Até agora não se sabe se houve intervenção do Presidente da República, que nos últimos meses frisava que o problema do SNS era estrutural

"O problema de fundo é estrutural." As palavras são de Marcelo Rebelo de Sousa a 20 de junho, data em que o Presidente, à margem de uma conferência na Fundação Calouste Gulbenkian, comentava o estado da Saúde em Portugal. Por aqueles dias pedia-se já a demissão de Temido - com o novo Governo de Costa em funções há cerca de três meses e Marta Temido firme na pasta da Saúde desde 2018 - devido às falhas recorrentes nos serviços de ginecologia e obstetrícia

"O grande problema disso é que acaba por se apagar fogos sectoriais pontuais e a questão de fundo vai sendo empurrada com a barriga para a frente”, dizia Marcelo, reforçando: “As queixas, muitas delas já vêm de longe e significam que o Serviço Nacional de Saúde que existia numa determinada época e foi ajustado tem enfrentado pressões”. E acrescentou mesmo que os problemas na Saúde não eram "sequer de um governo, nem de dois ou três ou quatro governos". Uma visão presidencial da qual Marta Temido viria a fazer eco, meses mais tarde, ao afirmar que os constrangimentos na Saúde são consequência de decisões tomadas “há várias décadas”, apontando aos anos 80.

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Regressemos ao Presidente e ao passado mês de junho: Marcelo pedia então uma visão de conjunto para implementar melhorias na Saúde, admitindo que não seria fácil fazê-lo depois de dois anos intensos de pandemia, e parecia vir em auxílio do Governo, nomeadamente da ministra da Saúde, sob pressão pelo constante encerrar de serviços de urgência. 

Dias antes, à entrada para o Teatro Politeama, Marcelo já dizia que havia "muitas causas" para os problemas no sector da Saúde, desde logo a falta de especialistas, por um lado, e o problema das escalas no verão, por outro.

"Aquilo que eu espero, depois de ter ouvido a senhora ministra da Saúde, é que haja uma preparação e uma prevenção relativamente ao que possa acontecer a partir dos meses de julho até ao final do verão", afirmava o Presidente, referindo-se à conferência de imprensa em que a então ministra da Saúde apresentara o plano do Governo para resolver os problemas do SNS.

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Marta Temido anunciara um "plano de contingência" para os meses de junho, julho, agosto e setembro, que visava um  "funcionamento mais articulado e antecipado das urgências em rede do SNS, eventualmente com precaução de questões remuneratórias associadas". Este plano incluía ainda "a monitorização dos indicadores em termos de saúde materna", que o Ministério da Saúde se comprometia a acompanhar para garantir que "a instabilidade que se instalou" não se sobrepunha "ao valor da confiança num serviço público".

As escusas que "não valem nada"

Em entrevista à CNN Portugal no início de agosto, e com os pedidos de escusa dos profissionais de saúde a aumentarem, Marcelo Rebelo de Sousa dizia que estas escusas eram o reflexo das tensões sociais que uma maioria parlamentar enfrenta. O chefe de Estado sublinhava que os diversos pedidos de escusa de responsabilidade eram um "elemento inovatório" de oposição ao Governo no atual quadro político mas que "não valem nada juridicamente".

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O bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães, comentou as declarações de Marcelo alertando que as palavras do Presidente podiam contribuir para agravar a crise na Saúde. “A falta de condições de trabalho destes profissionais deveria gerar um grande nível de preocupação e de solidariedade de todos os nossos decisores políticos e não o contrário”, defendeu o bastonário, que acrescentou que as declarações de Marcelo, “ao negarem a utilização de um mecanismo jurídico previsto no próprio texto da Constituição da República Portuguesa, não contribuem para a defesa do SNS, nem defendem os doentes”. “Na verdade, estas afirmações, que lamentamos, podem contribuir para agravar a atual crise que se vive na saúde, levando os médicos a abandonar o SNS como única forma de se salvaguardarem das condições de exercício da sua atividade”, sublinhava Miguel Guimarães.

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“Respeitamos o Senhor Presidente da República e a sua atuação, mas não podemos deixar de estranhar que faça declarações menos claras sobre matérias que estão protegidas pela lei e pelo artigo 271.º da Constituição, provocando um evitável alarme junto dos médicos e confundindo a população portuguesa pela suposta ausência de suporte jurídico do que é, e do que implica, uma escusa de responsabilidade de um médico”, salientou o bastonário.

O Estatuto do SNS

A 1 de agosto, Marcelo Rebelo de Sousa anunciou que promulgara "quarenta e oito horas depois de ter sido recebido em Belém" o Estatuto do SNS já aprovado em Conselho de Ministros, por considerar que atrasar a entrada em vigor da legislação "seria incompreensível para os portugueses".

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O Presidente assinalava, porém, que o diploma levantava dúvidas "em três domínios fundamentais que importa ter atenção: o tempo, a ideia da direção executiva e a conjugação entre a centralização nessa direção e as promessas de descentralização da Saúde".

Nessa chamada de atenção ao Governo, Marcelo demonstrou já, com subtileza, a discordância com António Costa e a forma com o primeiro-ministro estava a evitar o choque com as decisões tomadas pelo Ministério da Saúde: ao Expresso, fonte do Palácio de Belém disse na semana passada que Marcelo não acreditava na solução encontrada para o sector da Saúde e que o previsto no Estatuto do SNS seria "inexequível"

Perante a demissão de Marta Temido, após ser tornado público o caso de uma grávida que morreu quando era transferida do Hospital de Santa Maria por falta de vagas no serviço de neonatologia - notícia avançada em exclusivo pela TVI/CNN Portugal -, falta agora aclarar qual terá sido a intervenção de Marcelo, que, mesmo tendo defendido por várias vezes o Governo, poderá ter considerado este caso a gota de água, pedindo responsabilização política ao Governo de António Costa.

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