Auditoria deteta médicos "objetores de consciência" a "participar em atos de Interrupção Voluntária de Gravidez" no Hospital de Santa Maria

14 jul 2023, 07:00
Covid-19 no Hospital de Santa Maria em Lisboa

Relatório interno garante que há jovens clínicos a intervir no processo de utentes que pedem para abortar. Em causa está a realização de ecografias que determinam o tempo de gestação. O ex-diretor, Diogo Ayres de Campos, defende que aqueles exames não fazem parte do processo de IVG. Especialista em ética considera que a situação "é inaceitável". Administração do hospital enviou o caso para as "autoridades inspetivas e disciplinares competentes"

Uma auditoria interna feita ao Serviço de Obstetrícia do Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte, que integra o Hospital de Santa Maria, detetou que há médicos objetores de consciência a praticar atos de Interrupção Voluntária da Gravidez (IVG). A situação é deixada clara no relatório final. “Verifica-se a existência de 2 médicos IFE 3º que estão a participar nos atos de IVG, sendo, contudo, objetores de consciência, contrariando a legislação em vigor”, refere o documento.  

Em causa, sabe a CNN Portugal, está a realização por médicos objetores de consciência de ecografias para confirmar a duração da gravidez, uma vez que se ultrapassar as 10 semanas e três dias não é possível avançar com a interrupção. Estas ecografias de datação – como são conhecidas – só são feitas às mulheres que quando solicitam ao hospital um pedido de IVG não têm em sua posse estes exames que permitem verificar os requisitos para o aborto, como o tempo de gestação.

Segundo o relatório final da auditoria, “nenhum médico” que seja objetor de consciência pode intervir “num procedimento conducente à IVG”.   

Neste caso foram dois jovens médicos que estão no terceiro ano de internato no serviço de obstetrícia e que se declararam como objetores.

De acordo com o documento da auditoria, está definido um procedimento a seguir dentro da instituição quando se recebe um pedido de IVG de uma utente que inclui, se necessário, esta ecografia de datação, e depois três consultas.

A primeira onde, entre outros elementos, se explica à utente todo o processo e se informa quanto aos três dias de reflexão que são obrigatórios; a segunda onde se faz o ato em si (com medicamentos ou cirurgia), mas que no caso do Santa Maria tem sido com recurso a medicamentos; e uma terceira para verificar se está tudo bem e se é preciso mais algum procedimento.

Mas se os responsáveis da auditoria, que é relativa ao período de janeiro de 2022 a fevereiro deste ano, garantem que não é possível, com base na legislação em vigor, colocar médicos objetores de consciência a fazer aquelas ecografias, o médico que dirigia o departamento de Obstetrícia e Ginecologia do Hospital naquela altura, e que foi, entretanto, demitido, tem outra interpretação. “Nunca houve nenhum médico objetor de consciência a intervir no processo de IVG que só começa na primeira consulta quando a grávida expressa ao profissional a sua vontade”, diz à CNN Portugal Diogo Ayres de Campos, garantindo que os internos fazem ecografias de datação em vários contextos, seja para gravidez, problemas menstruais ou em técnicas de reprodução assistida. “E dentro desta formação fazem também datação para IVG pois esta não implica um procedimento ativo para por termo à gravidez.”

Uma opinião que os autores da auditoria discordam por considerar que há circuitos de procedimentos (fluxogramas) definidos expressamente para os casos em que alguma utente recorre ao hospital a pedir para fazer um aborto e que constam do folheto Informativo “Estou a pensar interromper voluntariamente a gravidez – o que devo fazer?”.

O relatório, apurou a CNN Portugal, será enviado para a Ordem dos Médicos que pode determinar as irregularidades em causa. 

No entanto, Maria do Céu Patrão, presidente do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, considera que a situação “não é aceitável”. “Depois de uma utente fazer um pedido de IVG tudo o que passa depois é conducente à vontade da mulher e um médico objetor de consciência não pode estar envolvido nesse processo.” 

Alem disso, diz Maria do Céu Patrão, a exclusão do objetor de consciência deste processo, incluindo na ecografia inicial, "serve para defender o próprio médico" e garantir "total transparência por parte da instituição".  

Também Eurico Reis refere que a situação detetada no Santa Maria possa ter algumas irregularidades, apesar de juridicamente esta ecografia não seja considerada um ato de IVG. “Se há um caminho de procedimentos para as mulheres que querem interromper a gravidez e outro para as outras grávidas, e se há normas internas definidas, então pode estar em causa a violação de regras, desse fluxograma”, diz Eurico Reis, notando que a situação seria “gravíssima” se algum objetor intervir para tentar dissuadir a mulher de cumprir a sua vontade.

De acordo com dados da auditoria, 88,5 % dos médicos do Serviço de Obstetrícia do Hospital de Santa Maria são objetores de consciência.

Numa resposta enviada à CNN Portugal, o Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte diz que "confirma a realização de uma auditoria interna sobre o cumprimento da legislação e circuitos estabelecidos no CHULN na área da Interrupção Voluntária da Gravidez, na sequência de notícias publicadas em fevereiro de 2023 que davam conta de atrasos no acesso a consultas de IVG". E garante que as "conclusões da auditoria foram enviadas às autoridades inspetivas e disciplinares competentes".

O CHULN sublinha ainda "a sua determinação no cumprimento da lei da IVG, assegurando os melhores cuidados de saúde obstétricos e a garantia dos direitos das mulheres".

Esta auditoria alerta ainda para outras irregularidades no que se refere aos tempos definidos por lei para a primeira consulta e à forma como são feitos os exames às mulheres que pretendem abortar. De acordo com a auditoria, há falhas “relacionadas com tempos para a Consulta Prévia superiores aos 5 dias previstos na legislação” e que pode interferir depois na contagem do prazo permitido por lei para uma mulher realizar a IVG. Por outro lado, os autores da auditoria alertam para o facto de se realizarem “ecografias a utentes de IVG, no mesmo espaço em que se realizam ecografias a utentes com gravidez normal” – uma situação que tem gerado, dizem,“ constrangimento.”

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