Na terça-feira, cientistas norte-americanos anunciaram a cura de uma mulher infetada com VIH, o Vírus da Imunodeficiência Humana, naquele que será o terceiro caso no mundo depois das recuperações totais atribuídas aos dois homens que ficaram conhecidos como “Paciente de Berlim” e “Paciente de Londres”. Mas o tratamento através de transplante não é para todos, nem poderia ser
Não estamos mais perto de descobrir a cura para a sida, mesmo que a ciência tenha anunciado na terça-feira uma cura. Trata-se de uma cura e não da cura, no caso de uma doente infetada com VIH, o Vírus da Imunodeficiência Humana, e com cancro (leucemia), que foi sujeita a um novo método de transplante, ligeiramente diferente daquele que viria a estar na origem dos primeiros dois casos de sucesso no mundo, conhecidos como “Paciente de Berlim” e “Paciente de Londres”.
São três casos de sucesso num universo de mais de 30 milhões de infetados com VIH, sendo que apenas duas pessoas estão vivas – o “Paciente de Berlim”, o norte-americano Timoty Ray Brown, morreu de cancro em 2020 depois de ter vivido 12 anos curado do vírus que causa a sida.
A mulher de que agora se fala, de 64 anos, está há mais de um ano sem sinal de VIH, desde 2020, e segue-se a Adam Castillejo, o “Paciente de Londres”, considerado curado em 2019.
“Para esta pessoa específica houve uma cura. Agora, o que se pode pôr em causa é se há uma alternativa viável para potencialmente curar todos os doentes que estão infetados por VIH e isso não. Neste caso, é algo que para qualquer médico como eu que segue doentes VIH acha piada ler, mas não vê com grande entusiasmo”, assume Miguel Araújo Abreu, infeciologista e assistente hospitalar de Doenças Infeciosas do Centro Hospitalar Universitário do Porto, em entrevista à CNN Portugal.
Miguel Araújo Abreu soube da notícia pelos seus doentes. Estava a chegar a casa quando reparou que tinha várias mensagens no telemóvel – “Foi mais rápido do que qualquer uma das mailing lists [listas de contactos através de email] que tenho de estudos científicos interessantes.” Respondeu a todos, não lhes puxou o tapete da esperança, mas fez questão de sublinhar que é matéria que poderá não ter um desfecho tão cedo, nem enquanto for médico, ele que tem 41 anos.
“Quando foi o ‘Paciente de Berlim’ foi a primeira vez e foi realmente um grande entusiasmo, sobretudo para nós que somos infeciologistas e que tratamos doentes infetados por VIH. Foi um marco. Mas esta tendemos a olhar com desconfiança. Ou seja, é preciso dizer que um doente infetado com VIH ao dia de hoje tem uma esperança de vida igual àquela que teria se não estivesse infetado com VIH. Aliás, posso dizer-lhe que há alguns estudos que especulam, e é uma especulação, que até poderá ter uma esperança de vida superior. Noutro dia para fazer uma cirurgia fui fazer umas análises que não fazia há imenso tempo, porque supostamente sou uma pessoa saudável, e tinha o colesterol 250. Um doente meu nunca tem colesterol 250 sem eu saber porque ele colhe análises três vezes por ano no mínimo. E em que eu avalio não só o VIH mas todos os outros parâmetros. Então, detetamos mais cedo problemas e podemos corrigi-los mais cedo”, explica.
Miguel Araújo Abreu vai mais longe no exemplo. Um exemplo que serve, sobretudo, para sublinhar que, na sua opinião, a ciência já venceu quando se trata do VIH e que essa vitória não poderia estar mais bem espelhada na saúde dos doentes que segue ou na longevidade dos doentes em todo o mundo. O problema continua a ser o mesmo, o estigma.
“Do ponto de vista meramente clínico, é preferível ter VIH do que ter diabetes. Eu preferia ter VIH do que ter diabetes, felizmente não tenho nem uma coisa nem outra. Mas se perguntar à população, diria que muito perto de 100%, se não 100%, diria que prefere ter diabetes, porque é uma doença aceite. Tenho doentes que não conseguem fazer um crédito habitação sem ter um seguro de vida que lhes custa mais do que a mensalidade da casa, porque têm VIH. E são muito mais bem seguidos do que a maior parte dos outros [clientes do banco] que têm hipertensão arterial, colesterol elevado ou risco de enfarte. Há um estigma social grande e mesmo burocrático pela infeção por VIH, porque, pela terapêutica que temos disponível, o VIH é uma grande vitória. O tratamento que temos hoje em dia é uma vitória sem precedentes na história da Medicina”, defende.
Doentes VIH sem carga vírica podem ter filhos e até relações sexuais desprotegidas
Mais de 95% dos doentes com VIH que este médico infeciologista do Hospital de Santo António segue em consulta “têm uma carga vírica indetetável”. Ou seja, “não transmitem doença a ninguém, podem ter filhos, podem ter relações sexuais desprotegidas, podem fazer tudo e mais alguma”. E porquê? “Porque têm um antivírico que está constantemente em circulação e que impede que o vírus se replique. Mas a partir do momento em que eu tire esta medicação o vírus volta a replicar-se, porque não tem nada que o impeça de continuar a multiplicar-se.”
E este é que é, para Miguel Araújo Abreu, o grande avanço da ciência para os doentes com VIH, “termos fármacos efetivos no tratamento” da sida.
As três curas anunciadas levantam, na sua opinião, “mais um bocadinho do véu para a possibilidade” de cura, mas não é algo que o faça querer ter vontade de chegar junto dos seus doentes e dizer-lhes: “Vai haver uma coisa nova e vamos todos ficar na boa.”
No entanto, reconhece, o anúncio de uma cura não é algo que se faça levianamente. “É evidente que pegarmos numa doença crónica, para a qual não há cura, e ainda que num caso particular ou vários casos particulares, e conseguirmos a cura é um avanço da ciência e é no mínimo uma porta aberta a mostrar que é possível a cura”.
Mas estes três casos têm todos origem em transplantes e o transplante não é para todos. Um transplante de medula óssea só se aplica a doentes com cancro e com uma situação clínica tão grave que o benefício supera o risco. É preciso ter também sorte em encontrar um dador correspondente, o que nem sempre acontece. E encontrado esse talão premiado é esperar que a nova “fábrica de células” faça o seu trabalho.
“O ‘Paciente de Berlim’ tinha uma doença do sistema imunitário, tinha um cancro, e precisava, para sobreviver, de um transplante de medula óssea. A medula óssea é uma espécie de fábrica das nossas células imunitárias, as nossas células do sangue - não só as de defesa, como os leucócitos e os glóbulos brancos, mas também os glóbulos vermelhos. Mas aqui a importância é dos glóbulos brancos, que são as nossas células de defesa. No doente, as células têm cancro, estão alteradas, e por isso temos de eliminar todas as células do sistema imunitário que estão no organismo e depois substituirmos a fábrica das células por uma fábrica que produza células novas sem cancro. (…) E foi assim que o ‘Paciente de Berlim’ ficou curado”, recorda, referindo-se ao primeiro caso conhecido, de Timothy Ray Brown.
O doente português que tentou a sorte em Berlim, a origem do primeiro caso de cura
O procedimento é, aliás, tão arriscado e tão específico que “não é um tratamento exequível para fazer ao comum dos doentes”. “A probabilidade de morte destes doentes tem de ser muito grande para nós arriscarmos um tratamento tão potencialmente lesivo”, sublinha.
Miguel Araújo Abreu já perdeu três doentes no transplante de medula óssea. Um deles, com possibilidades financeiras, tentou a sorte em Berlim, no mesmo hospital que tratou do primeiro caso de sucesso na cura da sida.
“Só quando o benefício ultrapassa o risco, e nestes doentes o risco é muito grande, potencialmente é que avançamos para isto. Eu faço aos meus doentes o que gostaria que me fizessem e, por isso, a mim ninguém me fazia um transplante de medula a menos que tivesse um linfoma e para salvar a vida”, aponta, insistindo que “continua a não ser uma técnica para usar nos doentes de forma genérica”.
O mesmo entendimento tem Amílcar Soares, doente VIH há 35 anos, o rosto da associação Positivo e de quem está habituado a ser também um caso único quando se trata de dar a cara pela doença. Apesar de a sida ter surgido em 1981, é muito difícil encontrar quem diga que é doente VIH como acontece com os cardíacos, por exemplo.
“É outra dimensão. Acho que em termos de futuro pode ser algo interessante, mas é preciso não embandeirar em arco e achar que isto vai ser possível para toda a gente, porque qualquer um deles recebeu um tratamento muito específico, muito personalizado”, afirma.
Para Amílcar Soares, a ciência “tem necessidade” de mostrar este caminho, mas “ainda há muito caminho para andar”. “É preciso ter algum cuidado, porque as pessoas estão tão desejosas de não voltar a ter nada que leva-as a criar expectativas muito grandes, que muitas vezes não se refletem nas suas vidas”, observa.
Doente HIV português pede bom senso
Amílcar Soares sublinha que estes três casos anunciados de cura são “muito especiais”, para “gente hiperselecionada” e que nunca estarão ao alcance das massas, “mesmo no primeiro mundo”. “Não há dinheiro que chegue para nenhum sistema de saúde, incluindo o dos americanos”, aponta.
Como tudo na vida, diz Amílcar Soares, é preciso bom senso, até para que aqueles que não estão doentes pensem que podem ser infetados que já não haverá problema.
“Não é uma questão de dizer às pessoas que não acreditem. Vamos esperar para ver mais, ainda é um futuro muito incerto e longínquo e até pode haver outra solução que seja mais rápida. Não podemos é correr o risco de ter pessoas que começam a não aderir à terapêutica e aí começam a ficar doentes a sério. Tanto em termos dos que estão a tomar medicação como aqueles que não têm nada e que pensam que podem andar a ter sexo à vontade sem proteção e ficar infetado porque vem aí a cura, como se se tratasse de uma injeção. Ainda há muito caminho para andar.”
Segundo o relatório "Infeção VIH e Sida em Portugal - 2020", o último disponível, conduzido pelo Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge (INSA) e pela Direção-Geral da Saúde (DGS), o número de infeções por VIH continua a descer, tendo-se registado durante o ano 2019, de acordo com as notificações efetuadas até 30 de junho de 2020, 778 novos casos, o equivalente a 7,6 casos/100 mil habitantes. Do total de infeções, foram diagnosticados 172 casos de sida.
Entre 1983 e 2019 foram registados 61.433 casos de infeção por VIH, dos quais 22.835 casos em estádio sida. Nestes 36 anos avaliados, foram notificados 15.213 óbitos.