Passaram-se 40 anos desde o aparecimento do vírus, mas o estigma parece não estar a acompanhar a evolução científica - enquanto um caminha ainda a passo de caracol, com poucos a quererem dar a cara, o outro permitiu dar anos (e qualidade) de vida que muitos viam já como perdidos. Há ainda quem pense “nas coisas como eram há 40 anos” mas “é preferível seguir em frente” - e Amílcar dá o exemplo disso mesmo
Amílcar Soares está habituado a dar entrevistas. A primeira foi em 1989, quando tornou público que estava infetado com o vírus da imunodeficiência humana (VIH), uma decisão que diz ter sido muito ponderada, mas que acabou por marcar o passo daquilo que seriam os anos seguintes: dar a cara e ajudar quem não tem apoio. E é esse passo que mantém hoje, três décadas depois, mas com o mesmo empenho de sempre.
“Cá não se falava praticamente de nada nesta altura”, começa por dizer, recordando a dificuldade em aceder a informação e, sobretudo, a informação credível sobre a chegada de um novo vírus, que muitos escondiam, outros desconheciam e havia quem tentava ignorar. “A informação a que eu tinha acesso era de revistas estrangeiras, como a Time e a Newsweek”, que o seu companheiro de então, a trabalhar na TAP, trazia quando viajava em serviço para os Estados Unidos. Hoje, a informação é mais vasta, reconhece, mas o desconhecimento ainda reina.
“Apesar de a doença ter aparecido em 1981”, recorda o médico Fernando Maltez, “houve um lapso de tempo, não sei precisar se dois ou três anos” até chegar a Portugal. “Lembro-me perfeitamente de como foi a chegada do vírus ao nosso país, fomos dos primeiros serviços a receber pessoas infetadas. O primeiro caso foi diagnosticado no Hospital Curry Cabral e lembro-me do receio de que muitos profissionais de saúde tinham para lidar com os doentes infetados, com medo de contrair a infeção, com medo de não estarem bem esclarecidos relativamente às formas de transmissão da doença”, recorda o atual diretor do Serviço de Doenças Infecciosas do Hospital Curry Cabral, em Lisboa.
O primeiro caso de sida em Portugal aconteceu em 1983, no ano seguinte registaram-se três casos, em 1985 eram já 30 e em 1989 eram 200. O número máximo de casos aconteceu em 1999 com 1289 diagnósticos de sida. Desde então, a doença tem vindo a perder expressão em Portugal, segundo os dados do Pordata.
No dia em que se celebra o Dia Mundial da Luta Contra a Sida, a CNN Portugal, pela voz de Amílcar Soares e dos médicos Fernando Maltez e Mafalda Guimarães, faz um retrato do vírus e da doença em Portugal e do que, apesar de tudo, ainda não mudou e continua a lutar contra a vergonha, o medo e o estigma.
Testar para diagnosticar
“Sabia o que andava a fazer”. Amílcar Soares, agora com 67 anos, tomou a iniciativa de fazer o teste de despiste ao VIH mesmo antes de ter qualquer tipo de sintoma ou a certeza de que tinha tido relações sexuais desprotegidas com alguém infetado, mas tinha noção do quão arriscados estavam a ser os seus comportamentos. “Sabendo um pouco das práticas sexuais que tinha, tinha consciência de que estava num grupo de risco. (...) Era dador de sangue e, entre o Natal e Ano Novo de 1985, decidi doar sangue aqui no [hospital] Santa Maria e pedi para fazerem o teste”, recorda. O resultado chegou passados três meses, em março de 1986.
“Tinha 32 anos na altura. Foi complicado digerir aquilo, não disse nada a ninguém, tive as primeiras consultas, fui gerindo e pensando no que ia fazer na minha vida”, lembra Amílcar Soares, seropositivo há 35 anos.
Os primeiros anos de VIH ficaram marcados pela facilidade com que os portadores do vírus desenvolviam sida - doença causada pela infeção pelo VIH e que se caracteriza pela diminuição ou destruição de reações imunitárias do organismo, as chamadas defesas. “Era uma doença rapidamente mortal, a sobrevida após o diagnóstico raramente ia além dos 18 meses”, lamenta Fernando Maltez, explicando que naquela altura “nunca dizíamos aos doentes que estavam condenados [à morte]”, mas pouco havia a fazer. “Limitávamo-nos a detetar as infeções oportunistas que os doentes apresentavam”, refere o médico infeciologista.
Amílcar escapou à estatística da época, mas ele próprio viveu por perto uma realidade assustadora: a sida ‘levou-lhe’ dois companheiros, “mais de 30-40 utentes nossos [da Associação Positivo, que fundou] e uns dez amigos mais chegados”. O facto de ter descoberto que tinha contraído o vírus numa fase em que já tinham sido desenvolvidos fármacos retrovirais ajudou a que nunca tivesse desenvolvido a doença e a que tivesse “o vírus indetetável desde que me lembro”. Mas podemos dizer que a medicina aliou-se à aceitação, numa sinergia perfeita que ainda hoje é a filosofia de vida de Amílcar. “Dediquei-me aos estudos, foi uma forma de criar perspectivas para o futuro”, conta, lembrando que trocou um curso de engenharia por um de belas artes e a cidade de Lisboa pela do Porto. Tinha muito para viver ainda.
E a vida é agora uma certeza para os pacientes portadores do vírus, uma vida que se sobrepõe à sentença de morte de outrora. “Tenho doentes [seropositivos] com 90 anos. Já houve estudos a dizer que, pelo facto de serem acompanhados com regularidade no médico e haver o seguimento de outras doenças, [os seropositivos] acabavam por estar mais protegidos do que o doente sem VIH que nunca vai ao médico”, revela Mafalda Guimarães, especialista de Medicina Interna no Hospital de Cascais.
Evolução farmacológica que faz toda a diferença
Para o médico Fernando Maltez, o “calcanhar de Aquiles é não haver ainda uma cura”. Embora os fármacos atuais não atuem nos reservatórios - nome dado ao local onde o vírus se ‘esconde’ mal entra no organismo, os gânglios, ficando lá o resto da vida - o médico mostra-se otimista com a possibilidade de se conseguir, um dia, curar a doença, algo que a médica Mafalda Guimarães acredita que passará “por medicação que acorde os reservatórios, quase como se fosse lançar um isco, colocá-los em circulação para matar o vírus, porque a medicação atual não atua nos reservatórios”.
Até se chegar a uma potencial cura, a medicina continuará a evoluir, assegura Fernando Maltez, que destaca os avanços médicos ocorridos ao longo de quatro décadas e que permitiram transformar uma doença logo à partida mortal numa doença crónica onde a qualidade de vida dos pacientes está assegurada. À boleia da evolução dos fármacos foi também possível travar a transmissão do vírus por parte de quem é acompanhado e segue os tratamentos. “Com as terapêuticas eficazes que existem atualmente, um doente suprimido, com uma carga viral não detetável, não transmite e isso é bom para os outros, mas também para o próprio doente não viver com esse medo da transmissão”, garante médica internista Mafalda Guimarães.
“O primeiro fármaco antirretroviral surge em 1987 e depois foram surgindo novos fármacos. Em 1996 entrou-se naquele que terá sido o primeiro grande paradigma da abordagem dos doentes, que foi a confirmação da eficácia da terapêutica tripla e depois a partir daí tem sido uma história de sucesso, uma história de sucesso terapêutica com desenvolvimento e disponibilização de fármacos cada vez mais eficazes, cada vez mais potentes, mas cada vez menos tóxicos, cada vez melhor tolerados”, diz o médico Fernando Maltez. Já para a médica Mafalda Guimarães, um dos pontos de viragem na terapêutica - e na adesão dos pacientes à mesma - foi a passagem de “esquemas de dezenas de comprimidos por dia para, neste momento, termos vários regimes de comprimido único”.
Mas, se há 40 anos a preocupação dos médicos era atuar perante as infeções oportunistas, hoje “chegamos à conclusão que a regra é para tratar todos”, diz Mafalda Guimarães, referindo-se a quem já tem um diagnóstico há algum tempo ou quem ficou a saber agora que é portador do vírus. “Graças ao conceito i é igual i, indetetável é igual a intransmissível, ao tornarmos o vírus indetetável em circulação de um doente sob tratamento vamos fazer com que ele não seja transmissível e com isso quebramos a cadeia de transmissão. No fundo é o conceito de tratar como forma de prevenção, o tratamento vai ter benefícios não só do ponto de vista individual do próprio doente, mas também em termos de saúde pública”.
Atualmente é possível um portador de VIH ficar com uma carga viral indetetável em apenas quatro semanas e para a vida toda, no entanto, ressalva a médica, é preciso seguir à risca o tratamento.
Um estigma que permanece
Um ano depois de ter tornado público que era seropositivo, Amílcar Soares foi alvo da desinformação, do estigma e da incompreensão que na altura existia - e que ainda hoje se faz sentir. “Estava a trabalhar numa agência de publicidade e a entidade patronal pediu para eu não voltar porque ‘era complicado’, porque podia picar-me e contaminar os colegas”, conta Amílcar, relembrando o impacto que o episódio teve em si. “Digeri isso muito mal. Recorri aos apoios e ao sindicato e como não era um problema laboral disseram que não podiam fazer nada, com alguma relutância afastaram-se do problema”, denuncia.
A família soube em 1990, quando Amílcar não conseguia guardar mais para si o que se passava: além do diagnóstico de VIH, estava desempregado e com uma depressão. “Tive mesmo de abrir o jogo”, desabafa. A reação, diz, foi a que todas as famílias tinham à data e muitas delas têm ainda hoje: “É pesaroso, choram e lamentam e ficam naquela do que é que vai ser agora”.
Para o fundador da Associação Positivo, acompanhar o desenvolvimento da transmissão do vírus e da doença nos Estados Unidos, através das tais revistas internacionais que lia, ajudou a que tivesse uma postura mais consciente da sua realidade. “Como estava a ter bastante informação, não tinha medo, havia uma certa aceitação”, diz, sem nunca deixar de abordar as incertezas que pairavam na altura e o estigma que sentia.
“Quando tornei público as coisas modificaram-se, há mais coisas que começamos a perceber, como pessoas que vão desaparecendo do nosso convívio”, lamenta.
Mafalda Guimarães recebe vários pacientes com sida e portadores de VIH no Hospital de Cascais, alguns com o diagnóstico recente, outros que vivem com o vírus há vários anos. Mas a vergonha e o sentimento de culpa mantêm-se tal e qual como nos anos 80. “Continua em doentes com diagnóstico há 10 ou 15 anos e mesmo assim têm vergonha de estar na sala de espera, ficam noutro sítio e ficam à espera que eu os vá chamar. Eles próprios têm vergonha e, por mais que se tente informar, têm medo de transmitir. Tenho avós que têm medo de transmitir para os netos. Há uma luta constante”, explica a médica, que revela que, em alguns casos, o estigma e o preconceito leva, por vezes, à negação e a que alguns pacientes interrompam a terapêutica.
Não só para tentar fazer frente ao estigma e às incertezas que havia, mas sobretudo para dar a oportunidade de falar e ouvir outras pessoas portadoras de VIH, Amílcar sentiu necessidade de criar um espaço de partilha, de conversa sobre VIH, algo que ia já acontecendo lá fora mas que em Portugal não, ainda imperava um silêncio que se mantém até aos dias de hoje. Foi em 1991, já de regresso a Lisboa, que nasceu o Espaço Positivo que, em 1993 deu vida à Associação Positivo, que ainda hoje recebe pessoas seropositivas e dá apoio na realização de testes de despistagem do vírus, assim como acompanhamento psicológico, nutricional e médico.
À associação continuam hoje a chegar pessoas com as mesmas angústias das décadas passadas. “Continua tudo na mesma, a vergonha e a culpa, [o receio do] que os outros vão pensar, o que o patrão vai pensar, o que os meus amigos chegados vão pensar. Ainda há estigma social”, queixa-se.
“Continuo a achar que as pessoas continuam a pensar nas coisas como eram há 40 anos, que os seropositivos contaminam tudo e todos, quase como agora com a covid-19. Não sei se é só desconhecimento ou pavor, medo de apanhar alguma coisa. Depois há esta coisa que temos muito católica, de as pessoas dizerem ‘estou limpo e não tenho nada’, esta coisa da limpeza e sujidade é cultural e com influência religiosa”, critica Amílcar Soares.
VIH e sida em Portugal
Segundo o relatório Infeção VIH e Sida em Portugal - 2020, levado a cabo pelo Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge (INSA) e a Direção-Geral da Saúde (DGS), o número de infeções por VIH continua a descer, tendo-se registado nesse ano 778 novos casos, o equivalente a 7,6 casos/100 mil habitantes. Do total de infeções, foram diagnosticados 172 casos de sida.
Entre 1983 e 2019 foram registados 61.433 casos de infeção por VIH, dos quais 22.835 casos em estádio SIDA. Nestes 36 anos avaliados, foram notificados 15.213 óbitos em casos de infeção por VIH.
As formas de transmissão, as relações amorosas e a gravidez continuam a ser as questões que mais incertezas causam aos portadores de VIH, mas Mafalda Guimarães garante que seguir à risca o tratamento é o melhor-escudo protetor. “Hoje em dia não há bebés nascidos com VIH em Portugal se a gravidez tiver sido vigiada. Há mães que só sabem do diagnóstico na própria gravidez, essa análise é feita durante os três trimestres, e temos a situação da mulher que tem VIH e está sob tratamento e vai ter uma gravidez mais vigiada da nossa parte e da obstetrícia, mas que tem bebés que nascem sem VIH. A própria relação entre um casal serodiscordante, ou seja, quando um está infetado e o outro não, causa dúvidas, havia muitas pessoas que viviam muitos anos com o peso e medo de transmitir para o parceiro. Saber que o conceito de i é igual i dá-lhes uma segurança. Não precisam de usar preservativo em casal porque não há transmissão”, diz Mafalda Guimarães.
Testar precocemente continua a ser a forma mais eficaz de detetar o vírus, mas os comportamentos de risco devem ser evitados. Caso tal não aconteça, “depois de um comportamento de risco as pessoas têm 72 horas para ir ao hospital para receber uma medicação que se faz durante um mês para prevenir apanhar o vírus”, avisa a médica internista.
De acordo com o relatório do INSA e da DGS, “a maioria (69,3%) dos novos casos de infeção por VIH registaram-se em homens (2,3 casos por cada caso comunicado em mulheres) e a mediana das idades à data do diagnóstico foi de 38 anos. Em 24,1% dos novos casos, os indivíduos tinham idade igual ou superior a 50 anos”. A transmissão heterossexual é ainda a mais frequente, no entanto, “os casos em homens que têm sexo com homens (HSH) constituíram a maioria dos novos diagnósticos em homens (56,7%)”.
“No caso de Portugal, com as medidas associadas à toxicodependência, como o programa de metadona e o programa de troca de seringa, em que Portugal foi pioneiro, acabaram por excluir quase essa via como via de transmissão”, destaca Mafalda Guimarães.
Para Amílcar Soares, lidar com o estigma e com o vírus não é fácil, mas é preciso ir além do que os outros pensam. A quem chega à Positivo diz que “vamos aprender a viver com isto e não ficar a marcar o passo a tentar perceber o porquê, o ‘e se’. É preferível seguir em frente, as coisas vão-se resolvendo”. Até porque, reconhece, “é uma frase feita, mas temos de aprender a viver conforme a vida vai correndo”.