Qual é o valor da tua “farramenta”?

1 jun 2022, 09:22

A União Europeia conseguiu aprovar o sexto pacote de contramedidas contra a Rússia, com uma decisão unânime e uma aplicação das medidas nada unânime. A Hungria, com efeito, levou a sua avante e vai continuar a comprar o petróleo russo através do oleoduto de Druzhba, também conhecido, veja-se lá, como da “amizade” e do “Comecon”; e a medida dirige-se, no essencial, a todo o petróleo adquirido à Rússia por via marítima. Para já, diz o Presidente do Conselho, Charles Michel, 2/3 a menos de importações relativamente ao status quo. Até ao fim do ano, diz a Presidente da Comissão, Ursula von der Leyen, menos 90%.

Parecem de enunciar, desde já, algumas conclusões preliminares.

Por um lado, com mais ou menos exceção, a decisão europeia é de grande envergadura, e chegou mais cedo do que tinham sido as previsões. É possível que, desta feita, com inteligência tática, os altos responsáveis europeus tenham decidido baixar as expectativas para depois o rebuçado ser mais saboroso.

O corte terá impacto real na Rússia, ainda que esta possa tentar compensar através da venda noutros mercados (mas com taxas de desconto brutais, como ainda há dias anunciava o Presidente da Sérvia), ou de uma redução da produção em 20 a 30%, para que a escassez de produto injetada nos mercados desencadeie uma subida dos preços e, logo, das suas receitas (mas, também, uma subida dos preços pagos pelos seus “inimigos” e “adversários”). A prazo, e creio que rapidamente, a Federação Russa cada vez terá menos agilidade e músculo económico-financeiro, e cada dia a mais na Ucrânia custar-lhe-á muito mais caro do que aquilo que está a perder no teatro de operações propriamente dito.

Em segundo lugar, todos sabem dos defeitos graves do regime húngaro, mas muitos padeceram de uma cómoda miopia sobre o assunto durante muitos anos, ou, então, viram com nitidez, mas seguiram a técnica clássica do “quem o diz é quem o é”, ou seja, do “eles são maus? E os da vossa cor?” Este episódio do sexto pacote e da posição contra da Hungria, acompanhada aliás por reivindicações similares de outros dois Estados encravados, a República Checa e a Eslováquia, evidenciam como tudo é igual, ao mesmo tempo que tudo é diferente. Outra coisa não assumiu o Primeiro-Ministro português, quando disse que era muito diferente o voto favorável de Portugal (que não depende em nada do petróleo russo) ou o de outros Países que, neste como noutros assuntos, têm de assumir custos efetivos que se vão refletir, de forma mais grave, nas suas economias e na vida dos seus cidadãos.

Lembram-se muitos, com certeza, que já bem “adiantada” a agressão russa, se zangaram as comadres dentro do grupo de Visegrado, que integra a Hungria – alvo da cólera dos restantes – a República Checa, a Polónia e a Eslováquia. Foi por alturas das eleições húngaras, ganhas por quem todos sabem. A Ministra da Defesa checa, Jana Cernochova, escreveu então no Twitter que sempre tinha sido apoiante do V4, “e tenho muita pena que os políticos húngaros agora considerem que ter petróleo barato é mais importante do que o sangue ucraniano”. Parece que, como agora é moda dizer-se, esta declaração envelheceu muito mal.

Dir-se-á que, neste campo, há até mais. Com hipocrisia q.b., por exemplo em relação à Alemanha, foi defendido que, rica como é, bem podia assumir mais sacrifícios do que todos os outros, mais ou menos como uma coletivização dos custos em que o outro paga, nós não pagamos nada, mas, afinal, cada um paga em média 50%.

Tudo isto recorda demasiado aquele episódio extraordinário, aquela aula prática de teoria política, ciência política e teoria económica, nos idos de 1975, quando um garboso revolucionário tentava explicar a um lavrador, gente simples e de pouca literacia cívica e política, por que motivo, naquela altura de grande liberdade, a enxada deixava de ser dele e passava a ser da cooperativa. A dado momento, já um pouco exaltado e elevando a voz, questionava: “qual é o valor da tua farramenta”? E o agricultor, teimoso como poucos, a insistir que a “farramenta” era dele, qual cooperativa qual coisa. “E os outros que não trazem farramenta nenhuma, a farramenta deles é da casa deles!”, retorquia, carregado de uma razão imortal.

Aqui está condensada uma sabedoria daquelas. Portugal, por exemplo, e tomando este exemplo, é um dos agricultores que faz parte da cooperativa, mas deixou a “farramenta” em casa. A Hungria, desta vez, tinha a “farramenta” em jogo, e argumentou como o lavrador. E a Alemanha tem a “farramenta” na mão, tem outra em casa, tem mais “farramentas” do que todos, mas também tem dado mais à cooperativa (o apoio à Ucrânia) do que qualquer um que a critica.

É assim, pela natureza das coisas.

Cada “pacote” europeu tem sempre atingido a Rússia – é esse o efeito que se pretende, e a premissa (oxalá não nos enganemos!) é a de que este empobrecimento forçado do agressor irá fazê-lo ceder e regressar à legalidade.

Porém, cada pacote atinge depois, em ricochete e já vimos que de maneira desproporcional, cada um dos decisores. A uns (como a nós, felizmente), afeta-nos de forma direta bastante pouco, ou nada. Mas, de forma indireta, afeta-nos como aos outros, veja-se a inflação upa upa e como já a sentimos e começa a doer.

A outros, mais perto da Rússia, atinge e dói ainda mais a sério. Sou capaz de compreender sem rebuço as hesitações húngaras, embora registando que, tanto como defender um interesse próprio, a Hungria está a atacar, e a vangloriar-se de atacar, a União Europeia (como se comprova pelo vídeo divulgado pelo Primeiro-Ministro Orbán depois de conseguir a exceção para o seu País).

Admiro, por outro lado, aqueles que pagam um custo elevado por cada voto a favor, sejam ou não ricos, tenham ou não uma azia particular ao atual regime russo (e um receio real quanto à sua segurança).

A União Europeia, de todos os que se uniram no propósito de apoiar a Ucrânia é, e de muito longe, quem mais está a sacrificar a economia dos seus membros e os respetivos povos. É quem mais solidariedade demonstra (se houvesse um termómetro da solidariedade, esta seria tanto maior quanto mais elevado o custo de a praticar). Não deixa de ser politicamente penoso, por conseguinte, que este ou aquele lhe aponte menos vontade, menos união, menos convicção, comparando-a, lá está, com este ou aquele. Quem critica, quase sempre, fala com o conforto de quem não negoceia com a Federação Russa por convicção e, sobretudo, porque não precisa. Na União, ainda estamos a meio da ponte, já sem as vantagens de estarmos na margem de onde saímos, e com os inconvenientes de ainda não termos atravessado o rio. Se fosse necessário algo que mostrasse como é mau estar sempre a caminho, aí está esta guerra para nos ajudar a ver mais claro.

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