“É perigoso ser bonita”: Sinéad O'Connor 1966-2023

26 jul 2023, 21:47
Sinéad O'Connor (Getty Images)

Em adolescente foi várias vezes violada pela mãe. Em adulta viu o filho de 17 anos morrer. Pelo meio carregou uma fotografia do Papa para a rasgar em direto na televisão. Durante tudo isso foi uma das maiores artistas do final do século XX

Nunca quis ser pop, não queria ser bonita e não tinha problemas em falar de todos os seus problemas: morreu Sinéad O’Connor. 56 anos. 56 anos...

Quando lançou “Nothing Compares 2 U”, uma canção originalmente escrita por Prince, já tinha tomado uma das decisões mais difíceis da vida: a adoção de um novo estilo, que passou por uma cabeça rapada. Numa entrevista concedida ao Dr. Phil, em 2017, a artista irlandesa confessou a razão para o penteado que a popularizou: “Quando éramos crianças, a minha irmã tinha um lindo cabelo ruivo, um cabelo glorioso. Eu tinha ciúmes dela. Mas a minha mãe meteu na cabeça que o cabelo da minha irmã era feio, horrível e desprezível. Quando eu tinha cabelo comprido, ela apresentava-nos como a filha bonita e a filha feia. E foi por isso que cortei o cabelo. Não queria ser bonita”.

Na mesma entrevista, Sinéad O’Connor revelou outra razão para não querer ser bonita: “É perigoso ser bonita”. Foi abusada psicológica e fisicamente pela mãe várias vezes, incluindo violações quando era criança. “Eu não queria ser violada. Não queria ser molestada. Não queria vestir-me como uma menina. Não queria ser bonita.”

Uma postura que manteve mesmo perante o perigo de a sua carreira não evoluir favoravelmente. Afinal tinham-lhe dito que se deixasse crescer o cabelo e usasse uns calções curtos conseguiria vender mais, vender a sua “sexualidade”. “Não queria vender-me assim. Se ia ter sucesso, queria que fosse por ser uma boa música.”

Estava certa: a música era boa. Ainda hoje funciona: tem mais de 6,2 milhões de álbuns vendidos em todo o mundo e mais de 3,4 milhões de ouvintes mensais na plataforma Spotify.

Chegou ao estrelato em 1990, com “Nothing Compares 2 U”, e dois anos depois decidiu utilizar a sua visibilidade para lutar pelo que acreditava. No programa Saturday Night Live pediu que se combatesse o “verdadeiro inimigo”. Se dúvidas havia sobre de que inimigo se tratava, a ação que teve dissipou-as: depois de cantar o tema "War", de Bob Marley, Sinéad O’Connor rasgou uma fotografia do Papa João Paulo II em direto na televisão norte-americana, o que até lhe valeu críticas de pessoas como Frank Sinatra. Entrava assim como uma das primeiras figuras públicas a contestar os primeiros relatos de abusos sexuais na Igreja Católica, que na Irlanda tiveram os primeiros ecos nos finais dos anos 1980.

"Não me arrependo do que fiz. Fui brilhante", contou em 2021 ao The New York Times, falando sobre o episódio no Saturday Night Live, admitindo que também foi "traumatizante" mas sem nunca ceder à pressão de ser uma "menina boa". "Parece-me que para ser uma estrela pop quase que temos de estar numa prisão."

Rasgar aquela fotografia era muito mais do que um protesto, era também uma afirmação pessoal. Sinéad O'Connor carregou aquela mesma imagem durante sete anos, desde a morte da sua mãe. Quando a rasgou rompeu simbolicamente uma ligação abusiva e que passava por uma educação com base católica, mesmo que de cristã pouco tenha tido.

E era por isso que a música da mulher que se definiu como "orgulhosa por ser problemática" refletia todas as suas opiniões vincadas sobre a vida. Do sexismo à religião, passando pelo abuso sexual ou pela violência pessoal.

Mas também os problemas de saúde, que nunca escondeu. Sinéad O'Connor tinha stress pós-traumático, transtorno de personalidade, era bipolar e reconheceu por várias vezes ter tido pensamentos suicidas.

Pensamentos esses que só se exacerbaram há pouco mais de um ano, depois de saber que o filho, Shane, tinha tirado a própria vida, aos 17 anos.

Do pai as recordações também não são as melhores, mas foi durante o tempo em que vivia com ele que o destino a encaminhou. Apanhada a roubar, a jovem Sinéad O'Connor foi enviada para uma escola de correção gerida por freiras dominicanas. Aos 14 anos, durante o casamento de uma das professoras, conheceu o baterista da banda irlandesa In Tua Nua. Estava introduzida ao mundo da música, onde só arrancou definitivamente em 1985, com o lançamento do primeiro álbum.

Ainda voltaria a ser notícia pela religião, mas pela sua conversão ao islamismo, em 2018, quando também anunciou que se passaria a chamar Shuhada' Davitt. "O que estou prestes a dizer é algo tão racista que nunca pensei que a minha alma pudesse senti-lo. Mas, sinceramente, nunca mais quero estar perto de pessoas brancas. Em momento nenhum, por razão nenhuma. São nojentas", disse, justificando a opção.

No seu livro de memórias acabaria por confessar um "colapso total", nomeadamente depois de ter sido submetida a uma histerectomia radical, em 2015. Passou seis anos a entrar e a sair de instituições para pessoas com problemas de saúde mental, mas ainda tentaria um novo regresso, com o álbum "No Veteran Dies Alone". Nunca chegou a apresentar o disco, depois de novo colapso pela morte de Shane, deixando neste século apenas um álbum, "I'm Not Bossy, I'm the Boss", de 2014.

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