Partilha fotografias dos seus filhos? Pode ser um ato de amor. “Para mim, pode ser o início de um futuro horrível". E, atenção, o perigo não tira férias

9 ago 2023, 07:00
Família

Publicar fotografias dos filhos nas redes sociais pode ser muito mais do que gritar ao mundo o orgulho que temos neles e o quanto os amamos. Pode abrir a porta a criminosos e colocar em risco a própria integridade física e emocional das crianças, facilitando a vida a bullies, predadores e até sequestradores

O vídeo da operadora alemã Deutshe Telekom tornou-se viral em poucos dias. “Without Consent” (Sem Consentimento), a mensagem de “Ella”, já foi vista um milhão de vezes no YouTube, tem centenas de comentários e milhares de partilhas. “Ella” é uma versão adulta de uma menina cujos pais partilham fotografias e vídeos seus nas redes sociais. Uma versão adulta criada com recurso a Inteligência Artificial e que surge no ecrã do cinema onde os pais foram ver um filme para os alertar para os riscos das partilhas que fazem.

“Olá mãe, olá pai. Sou eu, a Ella. Bem… uma versão digital de mim. É impressionante o que hoje se pode fazer, não é? E só é preciso um par de fotos, daquelas que vocês partilham nas redes sociais. (…) Sei que para vocês, são apenas memórias. Mas, para outros, são dados e, para mim, podem ser o início de um futuro horrível”, alerta Ella, que enumera algumas das consequências mais impactantes de um gesto que, à partida, parece totalmente inocente: identidade roubada, responsabilização por crimes que não cometeu, uso da voz para burlar os pais, bullying, pedofilia…

O que vocês partilham online é uma pegada digital, que me vai seguir para sempre”, acrescenta Ella.

 

De acordo com dados mostrados no próprio vídeo, 75% dos pais partilham fotos dos filhos nas redes sociais e oito em cada 10 pais têm seguidores que nunca viram na vida. O estudo EUKids, que, de quatro em quatro anos, mede o pulso à utilização da Internet pelos jovens, mostra dados assustadores acerca do sharenting (o nome que se dá à prática de partilhar dados dos filhos nas redes sociais). O último relatório é de 2020, analisa uma amostra da população entre os nove e os 17 anos, de 19 países e mostra que os pais portugueses são dos menos cuidadosos: 29% dos jovens inquiridos admitem que os pais partilham fotos suas na Internet sem o seu consentimento (em pior situação só a Noruega, onde 36% dos jovens admitem que os pais partilham informação sua online), 13% dizem que já foram incomodados online por causa de informações que os pais partilharam e 6% dizem que já foram gozados pelos amigos pelo mesmo motivo.

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A psicóloga Ivone Patrão, do projeto Geração Cordão, tem vindo a acompanhar o fenómeno de perto. E a sua experiência empírica, do trabalho que faz junto de jovens, nas escolas, mostra dados ainda mais preocupantes: “Mais de 50% dos jovens com quem falamos dizem que os pais publicam informação sobre si nas suas redes”.

“Não sei até que ponto as pessoas têm noção das consequências do sharenting. É muito importante fazermos um debate alargado, na sociedade e em família, sobre o que é privado, íntimo e público. É importante que a família discuta com os jovens sobre o que é aceitável ser publicado ou não. Todos temos pegada digital. E os pais, ao publicarem informação dos filhos na Internet, desde a fralda ou antes da fralda, estão a construir a pegada digital dos próprios filhos. Os dados estão todos ali. É só dar largas à imaginação sobre a forma como os podemos utilizar. Há quem os use para o bem, mas também há quem os use para o mal”, sublinha Ivone Patrão.

Facilitar a vida aos predadores e aos sequestradores

Tito de Morais, especialista em segurança na Internet e um dos mentores do projeto Miúdos Seguros na Net, alerta para a falta de controlo da própria pegada digital que os jovens têm. Não foram eles que a construíram, não foram eles que escolheram os conteúdos publicados. O especialista começa por apelar a uma reflexão simples: “Como adulto, gostaria que criassem uma pegada digital minha, sem que eu a pudesse controlar e que pode ser usada para os mais diversos fins?”.

Todos temos direito à nossa privacidade e, na realidade, os pais estão a violar o direito à privacidade dos filhos”, sublinha.

Tito de Morais alerta ainda para o tipo de fotografias que são partilhadas e, com alguma ironia à mistura, fala de questões sérias. “Temos fotos do 1º cocó que a criança faz no penico e o adolescente quando chega a determinada idade acha pouca graça a isso”.

Mas há pior: sem maldade, publicamos fotografias dos nossos filhos nus ou seminus e, sem darmos conta, essas imagens podem estar a ser usadas por pedófilos e por redes de pedofilia. “Temos ideia que toda a gente olha para estas fotos como nós, com carinho e com amor. E há pessoas que olham para elas como fonte de prazer, de excitação, de desejo sexual”, remata.

O problema pode nem ser a própria fotografia. Tito de Morais diz que “os pais não têm noção das informações que vêm associadas a essas fotografias”. E dá exemplos muito simples: “Fotos do primeiro dia de escola, com o portão da escola lá atrás ou com o nome da escola perfeitamente visível. Fotos de determinada atividade que eles frequentam depois da escola. Com estas fotos, estamos a colocar as crianças em determinados locais, em determinadas rotinas, e a facilitar a vida a potenciais predadores e sequestradores”, diz.

Numa conversa a três, entre a CNN Portugal, Tito de Morais e Cristiane Miranda, cofundadora do projeto Agarrados à Net, esta especialista recorda um caso grave que se passou no Norte do país. “Uma família que tinha por hábito partilhar fotos e vídeos do seu dia-a-dia e a filha também o fazia. Se os pais o faziam, porque é que ela não o haveria de fazer? Um dia, entraram-lhes em casa durante a noite e foram certeiros a ir buscar determinados bens cujas imagens tinham sido partilhadas e levaram a jovem, que até hoje não apareceu”.

E cada imagem tem uma espécie de impressão digital, um conjunto de informações que não são visíveis a olho nu, mas que podem ser utilizadas por quem quer fazer mal. “A geolocalização da fotografia: mesmo que a foto não esteja a mostrar a escola ou o uniforme da escola, hoje em dia é possível detetar onde a foto foi tirada”, diz Cristiane Miranda.

Outras consequências

Além dos perigos de roubo de identidade, de uso das imagens e outras informações para fins criminosos, do bullying, da pedofilia, esta pegada digital pode ditar o sucesso ou insucesso profissional dos nossos filhos no futuro. Cristiane Miranda lembra que, em termos de trabalho, muitas empresas vão pesquisar a pegada digital dos candidatos a um determinado posto de trabalho.

E isso não acontece só nas grandes empresas. Há casos de pequenas e médias empresas que vão pesquisar as redes sociais dos candidatos e, por exemplo, se uma jovem aparece em poses provocadoras, situações comprometedoras, ou em determinados locais, pode ser considerado que não se coaduna com os valores da empresa e ser recusada por causa disso”, diz a especialista.

A psicóloga Ivone Patrão lembra também que o sharenting pode ter impacto na saúde mental das crianças e dos jovens e que essas consequências podem perdurar e impactar na idade adulta. “São os próprios jovens a dizer que a informação que os pais publicam os leva a ser motivo de gozo. Numa altura em que estão a viver um processo de autoconhecimento, de definição de personalidade, tem um impacto muito negativo na sua autoestima, na sua imagem, na forma como se vê ou como acham que os outros os veem”, alerta a psicóloga.

“Leva a isolamento, ansiedade, depressão. Se provoca isolamento, vai condicionar a capacidade dos jovens de aprenderem, de socializarem. Os adolescentes estão muito nas redes sociais, eles veem, os outros também veem e toda a gente vê. Eles fazem muita socialização digital e a sua formação nesta matéria fica condicionada”, acrescenta.

“Também há tios e avós orgulhosos”

Publicar imagens dos filhos, dos seus feitos e das suas conquistas é, aparentemente, só uma forma de extravasar o orgulho e as alegrias da parentalidade. Muitos de nós não vamos além das partilhas em grupos de família do WhatsApp e acreditamos que, assim, estamos protegidos e os nossos filhos estão a salvo das consequências atrás mencionadas.

Mas esquecemo-nos que também há tios e avós orgulhosos, que mostram aos amigos, que partilham com eles… E entretanto, já perdemos o controlo daquilo que partilhámos num grupo privado”, provoca Tito de Morais.

“A partir do momento em que partilhamos algo no campo digital, ou até quando registamos a foto no nosso telemóvel, estamos a dar o primeiro passo para perder o controlo sobre isso… o telemóvel pode ser roubado, por exemplo”, acrescenta.

O perigo não tira férias

As férias são uma época propícia para o sharenting. Os pais estão muito mais com os filhos do que em período de aulas e trabalho e a disponibilidade e tentação para registar esses momentos é maior. “Além disso, estão em momentos instangramáveis, bonitas refeições, vistas bonitas, locais em que se pode mostrar felicidade. Por isso, as férias são a altura em que os pais mais infringem nessa questão do direito à privacidade”, constata Tito de Morais.

O especialista sublinha que “não somos donos dos nossos filhos”. Por isso, “temos de respeitar o direito à privacidade dos nossos filhos”. “O facto de sermos pais não nos dá o direito de abusar do privilégio de ter filhos, expondo-os nas redes sociais”, conclui.

“Nas férias também acontece as crianças fazerem algo pela primeira vez. Vão fazer surf, padle… e eu tenho tendência a partilhar isso nas redes sociais. Além de expor os meus filhos, mostro a quem me vê que não estou em casa e a minha casa fica à mercê de assaltantes, por exemplo”, acrescenta Cristiane Miranda.

O superior interesse da criança

Na legislação, nada há que proíba os pais de partilhar informação dos filhos nas redes sociais. Mas o advogado João Luz Soares apela ao bom senso, dado o “forte impacto” esta prática pode ter no futuro das crianças.

Na legislação geral, nada está tipificado. Mas a regulação de responsabilidades parentais e a própria Constituição protegem aquilo a que chamamos o superior interesse da criança e eu questiono se publicar fotos dos filhos na Internet vai ao encontro desse superior interesse da criança”, alerta o jurista.

Em Portugal, há até jurisprudência no sentido da proibição da partilha de imagens. Em 2015, o Tribunal da Relação de Évora confirmava uma sentença de 1ª instância que proibia um casal em litigio de partilhar fotografias da filha menor no Facebook. No acórdão, os juízes consideraram que a menor devia ter direito à imagem e que a divulgação de fotografias de crianças na Internet pode facilitar crimes sexuais.

A sentença parece estar a fazer escola. O advogado João Luz Soares diz que “existe uma sensibilidade dos novos tribunais, das novas equipas de juízes, que já estão atentas a novas realidades familiares”.

Existe uma nova tendência nos acordos de poderes parentais que podem prever já isso. Existem já alguns acordos em que há exigência de um dos pais que essa partilha não seja feita ou dependa de autorização do outro progenitor. É um tema que parece começar a ser essencial para os progenitores”, confirma o especialista.

Estes acordos têm força de lei e, quando não são cumpridos, há consequências. “É uma obrigação legal, com impacto legal, que tem de ser cumprida. Se o não for, constitui uma violação do acordo dos poderes parentais, que pode ser arguida pela outra parte como causa de incumprimento, podendo dar origem a uma revisão do acordo”, alerta o advogado.

Perante isto, as autoridades de proteção de crianças e jovens podem agir, em caso de partilha abusiva de dados de menores? O advogado reconhece que será muito difícil que isso aconteça: “O Estado só pode agir se essa partilha estiver a colocar o menor perante algum risco expresso. Estamos a falar em casos limite, em que essas partilhas coloquem em risco extremo a criança”.

João Luz Soares apela a um esforço de consciencialização social e de “sensibilização dos pais, dos utilizadores digitais e das próprias crianças”. Até porque os jovens têm acesso cada vez mais cedo a dispositivos móveis e a redes sociais e, “também eles, em seu próprio prejuízo, podem fazer partilhas que podem ter impacto no seu futuro”.

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