Quando o cyberbullying atinge os nossos filhos. “Matam a pessoa que a pessoa podia vir a ser”

29 jul 2023, 08:00
Criança ao computador (Pedro Rances Mattey/Getty Images)

Os efeitos das agressões por meios digitais podem ser mais devastadores na saúde mental e no futuro de um jovem do que o bullying físico. Também aqui mais vale prevenir do que remediar e a chave está em travar o cyberbullying antes de ele acontecer. E atenção: as férias escolares são um terreno fértil para a propagação dos ataques e é preciso atenção redobrada

Chamemos-lhe “Beatriz”. Aos 14 anos, estava perdidamente apaixonada pelo primeiro namorado, dois anos mais velho. Confiava nele e era capaz das maiores loucuras por ele. “Lucas” (também nome fictício), o namorado, convenceu-a a enviar-lhe fotografias das partes íntimas e ela enviou. O amor virou um pesadelo quando “Lucas” começou a usar as imagens para fazer chantagem e bullying com ela através da Internet. Ameaçou publicar os vários vídeos que tinha dela, exigiu-lhe sexo a três e usou as redes sociais para a denegrir.

“Beatriz” chegou à consulta com a psicóloga Isabel dos Santos trazida pelos pais, “desfeita, completamente desesperada”, já depois de uma primeira tentativa e suicídio.

O cyberbullying tem um efeito tsunâmico. Acaba por ter efeito até nas pessoas que não presenciaram e não viveram a agressão. Tem efeitos na família”, relata a psicóloga.

“É uma ameaça omnipresente, pode estar em todo o lado. Pode estar no telemóvel, no computador… em qualquer lado. É uma ameaça fantasma”, acrescenta Isabel dos Santos, que assegura receber cada vez mais pessoas em consulta com sequelas desta ameaça digital: “Há muita gente a usar esse tipo de armas, para ter ascendente sobre o outro. Falo de adultos e de adolescentes. O patrão sobre o empregado, o marido sobre a mulher e o contrário, um colega sobre o outro, namorados…”

O cyberbullying e as férias escolares

De acordo com um estudo da UNICEF, mais de um terço dos jovens em 30 países relatam ser vítimas de bullying realizado por meio de tecnologias digitais, sejam redes sociais, plataformas de jogos online, webchats, sms ou até plataformas de apoio ao ensino a distância. Um em cada cinco jovens admitem ter saído da escola por causa de cyberbullying e violência. E estes números são anteriores à pandemia de 2020. Em Portugal, um estudo do ISCTE realizado nos primeiros meses de confinamento, apontava para um aumento do fenómeno durante a pandemia: dos 485 estudantes inquiridos entre março e maio de 2020, 61,4% afirmou ter sido vítima de cyberbullying, pelo menos algumas vezes, 40,8% admitiu ter sido agressor/a e 86,8% observador/a.  

Tito de Morais, especialista em segurança na Internet e um dos mentores do projeto Miúdos Seguros na Net, alerta para um aumento do fenómeno em período de férias escolares. Diz, aliás, que “as férias escolares são propícias para o aumento do cyberbullying”.

Contrariamente ao bullying, o cyberbullying não tira férias, não tem fins de semana e não dorme. Acontece independentemente de onde estivermos. Na escola, no ATL, em casa… nas férias. No período escolar, a criança vítima de bullying tem em casa um refúgio. Os agressores não estão lá. Mas no cyberbullying, mesmo em casa, os agressores estão lá”, diz o especialista, em declarações à CNN Portugal.

“Tendencialmente, o período de utilização das tecnologias no período de férias aumenta. Os tempos de utilização aumentam. Os pais não estão tão presentes. Estão a trabalhar. Aumenta o período de utilização e baixa o período de vigilância”, acrescenta Tito de Morais.

Além disso, as férias também fazem com que os jovens passem mais tempo a jogar online. E as plataformas de gamming são um veículo muito utilizado para este tipo de agressões.

O impacto nas vítimas

As sequelas que o cyberbullying pode deixar nas suas vítimas são incalculáveis e dependem de vários fatores, como a idade ou o suporte familiar e social de que podem usufruir. Mas quase todas apresentam os mesmos sintomas de impacto na saúde mental, como nota a psicóloga Isabel dos Santos: “Insegurança, dificuldade em dormir, alterações do comportamento alimentar, alterações cognitivas (a capacidade da pessoa de raciocinar fica tolhida e isso afeta a aquisição de conhecimento), dificuldade de concentração, dúvida sobre as próprias capacidades e sobre o próprio valor”.

Há uma dissolução da própria identidade. A pessoa deixa de ter fronteiras e demora muitas vezes anos a recuperar a sua identidade. No caso dos adolescentes, é ainda mais dramático. Eles matam a pessoa que a pessoa podia vir a ser. Podia vir a ser uma arquiteta, uma advogada, uma médica ou uma dona de casa. Podia acima de tudo vir a ser uma pessoa feliz. Mas o agressor atropela-lhe o potencial, arrasa com a sua autoconfiança. Imagine o que é uma pessoa abrir o computador e saber que estão lá 30, 40 pessoas, 500 pessoas a rir-se da sua foto. É como uma almofada de penas aberta ao vento”, acrescenta a psicóloga.

Os conselhos do especialista para prevenir o cyberbullying

Acabar com o fenómeno pode ser uma tarefa impossível. Até porque o terreno onde o cyberbullying acontece é volátil, uma espécie de areia movediça, que os permanentes desenvolvimentos tecnológicos e digitais tornam ainda mais instável.

Para já, sabe-se que é nas três redes mais usadas pelos jovens que o cyberbullying mais se pratica: Tik Tok, WhatsApp e o Instagram. Mas aquela que é a realidade de hoje, pode mudar amanhã. “Começam a aparecer algumas redes e aplicações que estão numa fase embrionária, que ainda são desconhecidas dos adultos, mas já são usadas pelos jovens. Se uma determinada rede é a que está a dar, é natural que seja aí que as coisas mais acontecem”, alerta Tito de Morais.

O especialista deixa uma lista de conselhos que podem ajudar os pais a prevenir que os filhos sejam vítimas de cyberbullying ou mesmo agressores:

  • Definir e estabelecer regras claras para utilização da Internet, dos dispositivos em que pode ser acedida e das aplicações. “E temos de fazer um esforço para sermos assertivos no seu cumprimento”, reforça.
  • Promover o diálogo com os jovens sobre estas questões: “É importante falar sobre consentimento, respeito pela diferença, empatia… e sobre a forma mais eficaz de procurarmos ajuda, caso sejamos vítimas ou observadores deste tipo de situações”. “A nossa atitude perante um pedido de ajuda também tem de ser de maior tolerância e menor julgamento. Quando vamos às escolas, perguntamos a quem recorriam se precisassem de ajuda e os pais e professores aparecem em último lugar. Têm receio das reações e das represálias. Por isso, muitas vezes acabam por não pedir ajuda e sofrer em silêncio. O julgamento de quem acolhe o pedido de ajuda pode fazer com que acabem por sofrer duplamente. Uma dupla vitimização”, acrescenta.
  • Promover a resiliência e trabalhar a autoestima: “Se uma criança for resiliente, vai encontrar outras formas de extravasar e dar a devida importância àquilo que os outros pensam sobre ela”.
  • Os pais devem conhece as redes e as aplicações que os filhos usam. “Saber como fazer denúncias de conteúdos numa determinada plataforma e como bloquear, por exemplo”, destaca o especialista.

O desconhecimento e a iliteracia dos pais tornam ainda mais fértil o terreno para o crescimento do cyberbullying. Mas mais do que não saberem, o grande problema é “quando os pais não querem saber”. “Preocupa-me muito quando ouço frases como ‘ahhh de computadores e Internet o meu filho sabe tudo. Ele é que tem para me ensinar’. Temos de ter a perceção de que, pelo facto de eles dominarem a parte mecânica das tecnologias, não significa que tenham pensamento crítico para as utilizarem do ponto de vista de conteúdos”, acrescenta Tito de Morais.

O que fazer quando os filhos são vítimas?

Quando “Beatriz” foi alvo de sextortion, uma forma grave de bullying levada a cabo pelo próprio namorado, foi pela mão da mãe que foi ao consultório da psicóloga Isabel dos Santos. A própria mãe também procurou ajuda profissional para ajudar a filha a lidar com a situação. E deve ser esta, dizem os especialistas, a atitude a adotar, quando constatamos que um filho é alvo de qualquer forma de cyberbullying: manter a calma presente e os julgamentos e condenações distantes.

Contar até 10 e se for preciso até 100. Uma das coisas que acontece é reagirmos emocionalmente. Temos de ter consciência que, se reagirmos emocionalmente, não vai correr bem. É necessário ouvir bem o que eles têm para nos contar, pedir para ver as mensagens ou os posts em causa. Procurar saber quem mais viu e saber se é possível falar com essas testemunhas. Então, sim, na posse toda a informação, avaliar como proceder”, aconselha Tito de Morais.

Além disso, é importante travar a humilhação, bloqueando o utilizador agressor e o conteúdo em causa. “Não sem antes fazer uma cópia desses conteúdos, uma captura de ecrã, que podem constituir provas em caso de crime e de ser necessário apresentar queixa nas autoridades”, sublinha o especialista.

Se estivermos em tempo de escola, é fundamental pedir uma reunião com o responsável da instituição que, apesar de a agressão ultrapassar os muros do edifício escolar, não se pode alhear do sucedido. O diretor de turma ou o diretor da escola poderão ajudar a encaminhar o assunto para as entidades que entenderem adequadas, como a Escola Segura ou a Comissão de Proteção de Crianças e Jovens.

Mas não é só quando troveja que se recorre a Santa Bárbara. Voltando à prevenção, a participação ativa na vida escolar dos nossos filhos é fundamental para travar o cyberbullying ainda antes de ele começar. E, sim, isso inclui também as agressões durante as férias. Conhecer os ambientes em que os nossos filhos gravitam, as pessoas com quem se dão pode ser uma peça chave para prevenir ou reagir ao cyberbullying.

E quando os filhos são os agressores?

Cristiane Miranda, cofundadora do projeto Agarrados à Net, lembra que “amar um filho é intuitivo, mas educá-lo nem por isso, e ser-se bom pai e boa mãe aprende-se”. Por isso, sem culpas, é preciso admitir que os nossos filhos estão expostos a agressões no meio digital, mas também podem eles ser os agressores. É, por isso, necessário ter consciência de que, “em grupo, os nossos filhos podem ter comportamentos contrários ao que lhes ensinámos e aos valores que preconizamos”.

Os filhos agressores são órfãos de pais vivos. Não são filhos de ninguém. Os nossos filhos são sempre os melhores e nunca são os maus da fita”, ironiza.

A especialista lembra ainda que “o agressor é alguém que precisa de ajuda, é alguém que não sabe gerir as suas emoções, porque nunca ninguém lhe ensinou como é que se faz”.

A psicóloga Isabel dos Santos concorda. E sublinha ainda que, apesar de precisarem de ajuda, os agressores “não a procuram com a mesma facilidade das vítimas”. Isabel dos Santos lembra que um agressor é também alguém que sofre de uma grande insegurança. “Se fossem pessoas seguras não sentiam necessidade de humilhar ninguém. A pessoa segura é aquela que ajuda, que incentiva. Não necessita da miséria do outro para lidar com a própria miséria interna”, explica a psicóloga.

 

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