opinião
Estudante de Doutoramento em Teologia na Universidade da Santa Cruz, Roma

Temos pena… ou compaixão?

16 jan, 15:47

Rotunda da Boavista (Porto), 6.ª f., 5/1/2024. No final de uma fria tarde e na paragem do autocarro, uma jovem adolescente acompanha a sua mãe. A dada altura, um sem-abrigo que mal falava português aproxima-se e pede uma esmola. A mãe: “Tenho pena, mas não dou”. E o pobre continua a mendigar junto de outras pessoas. Assisto a um diálogo interessante: “Mãe, o que se faz quando passa um pobre a pedir? Porque é que não deste nada?”, pergunta a filha. A resposta foi imediata: “Se me pedisse para comer, dava, mas como pediu dinheiro, não dou”. A filha: “Se calhar ele não sabe pedir comida”. A adolescente correu, foi ter com o pobre que continuava a mendigar. Perante a admiração da mãe que permanecia imóvel na paragem, deu o bolo que tinha na mochila. Olhei para a mãe, que remoía sentimentos contraditórios. Certamente um grande orgulho no ato generoso da sua filha e a pena de não se ter dado conta dessa necessidade antes. 

Esta história, ali, em direto, recordou-me o artigo que li dias antes numa revista inglesa sobre a diferença entre as expressões inglesas pitty (pena) e compassion (compaixão). (a)

É possível ter pena de alguém e considerar essa pessoa inferior. As pessoas necessitadas que encontramos não precisam de uma palmadinha nas costas, mas uma ajuda para enfrentar os seus problemas com determinação. Mostrar pena pode ser uma forma de fazer com que a pessoa se sinta vítima. Ter compaixão é ligar-se à pessoa e ajudá-la naquilo que ela precisa. 

Encontramos pessoas que passam dificuldades. Podemos mostrar pena ou podemos ir mais longe para entrarmos empaticamente nos seus problemas. Há dias jantei em casa de uma família amiga. Ao pôr a mesa, uma criança que ajudava deixou cair um prato. Não ouvi críticas, lamentos, ou queixas. Vi só o irmão mais velho vir logo recolher, de vassoura na mão, os cacos do prato. E rapidamente todos esqueceram o incidente. Mais do que pena, aquele irmão mostrou compaixão, em silêncio, sem chamar a atenção. 

Diante de alguém que está doente, sem emprego, perdeu a mãe, ficou sem telemóvel, há sempre perguntas que posso fazer. Precisas alguma coisa da farmácia? Queres ajuda para fazer o teu CV? Queres que vá contigo ao centro de emprego? Como se chama a tua mãe para rezar por ela? Quando é o funeral? Precisas que te empreste um telemóvel que tenho e não preciso?

A compaixão é uma virtude que está na moda (b). Preocupam-nos os discriminados, os marginalizados, os que sofrem maus tratos devido à sua posição social. Compaixão significa cum + passio, "sofrer com", "sentir o sofrimento do outro" ou "estar disposto a aliviar o sofrimento do outro". Cria laços de confiança e bem-estar e atenua a rigidez da justiça humana, oferece perdão e esperança. 

Proponho 6 breves reflexões para entender melhor a compaixão:  

  1. A compaixão verdadeira não é seletiva. Cuidado com  uma visão estreita da compaixão, que a encolhe a pequenos grupos: os pobres, os sem-abrigo, os imigrantes. A compaixão faz falta aos pobres na Rotunda da Boavista, é certo. Mas também lá em  casa, e ao vizinho doente, e ao colega que está com problemas pessoais que o influenciam no trabalho.

  2. A compaixão não é monopólio do Estado. Todos queremos erradicar a pobreza. Porém, é frequente transferir essa responsabilidade só para o Estado. Sim, o Estado pode dar subsídios de desemprego, teto aos sem-abrigo, entre outras medidas de apoio social.  No entanto, isso não substitui aquilo que está ao nosso alcance quando empatizamos com quem tem problemas que o Estado desconhece. O Estado não se preocupa com uma pessoa desesperada por perder o telemóvel, e não consola quem chora um familiar que partiu. Então, os familiares e os amigos são insubstituíveis.

  3. A compaixão não é um sentimento. Impressiona-me ver voluntários a entregar refeições à noite aos sem-abrigo (c). O que é que os move? Certamente a generosidade, fazer o bem que está ao seu alcance. Não o fazem uma vez. Mas todas as noites, todas as semanas, todos os meses. Também quando chove e gela. Quando joga o seu clube e quando têm sono e estão cansados de um dia de trabalho. O que eles “sentem” é isso: sono, cansaço, pena por não estar a torcer no estádio ou na TV. O que eles “fazem” é compaixão. Não um sentimento, mas uma virtude. Querem e lutam pelos outros de forma continuada, ainda que exija esforço.

  4. A compaixão não me faz melhor que os outros. Ser compassivos acorda-nos para a nossa impotência perante tantas dificuldades que, mais tarde ou mais cedo, provavelmente também nos vão bater à porta. Um acidente de carro, uma doença prolongada, perder o comboio, não acontece só aos outros. Algum dia nos tocará a nós. Tanto melhor saberemos enfrentar esses desafios, quanto mais os tivermos ajudado a resolver empaticamente na vida de outros. 

  5. De Deus também se aprende a compaixão. A Bíblia recolhe muitos apelos de Deus a viver esta virtude (d). Um dos mais eloquentes é a história contada no evangelho de um homem, judeu, inanimado na berma da estrada após ter sido assaltado com violência. Por ele passa um judeu entendido na religião judaica (um “levita”), e passa também um clérigo judeu (um “sacerdote”), mas estavam com pressa e, por razões religiosas, não podiam tocar onde houvesse sangue. Passa também um homem não judeu, pertencente a um grupo que os judeus hostilizavam (os samaritanos), mas, ao vê-lo, sente compaixão. O Papa Francisco recordou esta história na JMJ em Portugal e deixou esta pergunta: “Que coisas me fazem sentir compaixão?” (e). Este não judeu leva o judeu doente a uma estalagem e diz ao hoteleiro: “Volto daqui a três dias. Cuida dele. Toma, pago-te isto e se for preciso mais, pago-te no regresso”. O Papa recorda que nesta história temos “os ladrões que matam, o bom samaritano que cuida, o levita e o sacerdote que se afastam para não ficarem impuros. Onde é que sujo as mãos? É preciso sujar as mãos para não sujar o coração” (f). O samaritano é o herói desta história, o que teve compaixão, o que sujou as mãos. Mas também foi herói o dono da pensão. Foi ele que curou as feridas até elas cicatrizarem, atendeu-o, deu-lhe de comer. Tudo isso sem protagonismo, servindo com uma compaixão oculta. 

  6. De Deus também se aprende a compaixão (II). Na Bíblia Deus é concreto a sugerir o bem que devemos fazer. São obras boas, conhecidas como “obras de misericórdia”, são obras de compaixão: 7 corporais e 7 espirituais. Corporais: (1) dar de comer a quem tem fome, (2) dar de beber a quem tem sede, (3) vestir os nus, (4) acolher quem está de viagem, (5) dar assistência aos doentes, (6) visitar os presos, (7) enterrar os mortos. E espirituais: (1) aconselhar os indecisos, (2) ensinar os ignorantes, (3) corrigir os que erram, (4) consolar os aflitos, (5) perdoar as ofensas, (6) suportar com paciência as pessoas desagradáveis, (7) rezar a Deus pelos vivos e defuntos. São 14 pontos concretos para pensar no bem que podemos fazer aos outros. 

“Mãe, o que se faz quando passa um pobre a pedir?”. Faz-se compaixão. A compaixão é a coragem de compreender com gestos as necessidades dos outros. 


***

Referências

(a) The Important Difference Between Pity and Compassion 
(b) No âmbito da gestão, hoje é comum ouvir falar sobre a “Compassion Leadership”, liderança compassiva. Consiste em liderar com empatia, compreensão e uma preocupação genuína pelo bem-estar de uma equipa. Não se trata apenas do resultado final; trata-se de reconhecer o elemento humano na sua organização e valorizar as pessoas que tornam tudo isto possível. Cfr. Os 5 C’s da Liderança compassiva. Consciência, curiosidade, compaixão, competência e coragem (IMD Business School)
(c) Penso particularmente no esforço louvável da Comunidade Vida e Paz, cujos voluntários atendem diariamente centenas de pessoas em Portugal. Li uma entrevista recente do seu presidente que apelava para a necessidade de donativos para continuarem com a sua atividade. Pode ajudar esta iniciativa neste site 
(d) Especialmente em Ef 4, 32; 1Pe 3, 8; 2Cor 1, 3-4; Col 3, 12; Rom 12, 15; Zac 7, 9-10; 1Jo 3, 17; Is 49, 15-16; Is 30, 18; Is 54, 10; Ps 103, 13. 
(e) Discurso do Papa Francisco no Encontro com os jovens da Scholas Occurrentes em Cascais, 3/8/2023. (lisboa2023.org) 
(f) Discurso do Papa Francisco no Encontro com os jovens da Scholas Occurrentes em Cascais, 3/8/2023. (lisboa2023.org) 

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