As análises mais apreensivas ao estado da democracia portuguesa apontam regularmente a uma ameaça: a polarização. Seja no repúdio ao extremismo do Chega, seja no receio pela supremacia do PS, há um respeitável conjunto de observadores preocupado com o futuro do sistema político à medida que este se aproxima do seu cinquentenário.
Fundamentalmente, as suas angústias vão ao encontro de três dúvidas estruturais: a sobrevivência do segundo maior partido enquanto força capaz de ombrear com o primeiro, a capacidade de a economia nacional se aproximar (ou não) dos demais Estados-membros que sofreram a crise das dívidas soberanas, a sustentabilidade do Estado Social perante o brutal envelhecimento da população e a sua emigração qualificada.
Politicamente, dá-se o caso muito particular de o regime a que chamamos Terceira República enfrentar pela primeira vez um movimento frontalmente avesso à sua natureza constitucional ‒ o Chega ‒, mas que nem por sombras resume a insatisfação ou frustração no âmago do debate público atual. A República está hoje dividida entre uma direita crítica do regime político (que julga excessivamente socialista) e uma esquerda contestatária do modelo económico (que é incontestavelmente capitalista), quando ambas se acusam repetidamente do oposto.
Se pensarmos bem, o Partido Socialista é o único integralmente ‒ e simultaneamente ‒ satisfeito com a dimensão política e socioeconómica do regime. E, por sinal, o único a ganhar maiorias absolutas no século XXI.
Para o restante século, e é esse o ponto de vista deste texto, não é certo que as fronteiras entre os que nos representam permaneçam as mesmas. Sendo provável que as suas crenças subsistam, é garantido que as suas circunstâncias se alterarão. Tal já está a acontecer, por mais desconfortável que seja para aqueles que vivem ‒ ou viviam ‒ de ser alternativas.
Na localização do aeroporto, que o chefe de Governo e o líder da oposição confiaram a uma comissão técnica. Na privatização da TAP, que ambos defendem em uníssono. Na Saúde, em que tanto o ministro da Saúde como o PSD fazem juras de amor à “complementaridade” entre público e privado (que seriam próximas do sacrilégio nos tempos de Marta Temido). Na Justiça, com uma reação ao Ministério Público quase idêntica entre PS e PSD. Na Defesa, em que os investimentos para cumprir os 2% da NATO convidarão a um acordo ao longo da década. Nos Transportes, com João Galamba a admitir a abertura ao privado (!) nos carris da CP (!) para combater atrasos. E até no regresso às 35 horas no SNS dentro da dedicação exclusiva, como notou o Pedro Santos Guerreiro no CNN Townhall, os dois principais partidos estão silenciosamente ‒ cuidadosamente, involuntariamente ‒ mais próximos do que até com Rui Rio ao leme do PSD estiveram.
Hoje, já não se trata de discordar em tudo menos nas “contas certas”. É mais do que isso e será ainda mais do que isso. Até ao final da legislatura viveremos nesse paradoxo: um incumbente em degradação acompanhado de uma crescente coincidência de posições entre poder e candidato a poder. Uma co-incidência, por assim dizer, para arriscar o neologismo.
Num ambiente de incerteza internacional, inflação duradoura e instabilidade financeira, a prudência será a regra e a moderação inevitável. Cada um dos que ambicionar governar terá mais em comum do que em diferendo, num longo ciclo de consenso a contragosto. É o tal paradoxo: uma concordância incómoda. As suas consequências, no que toca a quem ficar à margem, são imprevisíveis e um tanto perigosas. Uma aproximação entre os partidos fundadores abrirá novos espaços aos mais recentes ‒ e mais oportunistas.
O meu conselho é não negar nenhuma das realidades: a de que serão precisas soluções, e de que também elas criarão problemas.
A minha preocupação é assumir o evidente para lidar devidamente com ele: a pior polarização poderá vir de um consenso a que já não podemos fugir.