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As criações de Costa ‒ e a vida própria que têm

6 jul 2023, 20:09
Pedro Nuno Santos e Marta Temido (António Cotrim/Lusa)

A imagem mais marcante do regresso de Pedro Nuno Santos ao Parlamento foi captada por um fotojornalista da Lusa e dava-o amigavelmente em braços com a sua ex-colega de governo Marta Temido. Ela, de vestido veranil e sorriso resgado; ele, igualmente bem-disposto, com a farda de alguém que ainda podia ser ministro. O degrauzinho que os separava ‒ ele mais acima, ela logo abaixo ‒ quase que podia representar o atual pódio de favoritos ao futuro do PS. O cumprimento, exagerado como tudo o ocorrido naquela tarde (e esta semana), significou mais do que uma simpatia e menos do que uma declaração de lealdade. Não foi só “bem-vindo, Pedro”; foi “eu também estou aqui” e “eu sei que estás, Marta”.

Se os dois protagonistas são apenas uma ilustração fácil do primeiro ano de maioria absoluta ou, por outro lado, um retrato do que António Costa deixará no dia em que abandonar a liderança do seu partido, é cedo para dizer. O facto é que, um ano depois de Temido sair do governo e seis meses após Pedro Nuno fazer o mesmo, são ambos figuras com um horizonte assegurado no espaço socialista. Ele mais acarinhado, mais implementando, com um percurso seu. Ela mais surpreendente, menos autónoma e ainda sem grupo.

Apesar de tanto um como o outro terem ascendido a responsabilidades governativas sob a alçada de António Costa, a sua existência política ultrapassará o costismo. Independentemente de quem vier a seguir, eles estarão certamente lá. Pedro Nuno é mais do que provável candidato a secretário-geral desde o congresso da Batalha; Temido é encarada como um ativo relevante para os dois próximos ciclos eleitorais até às legislativas: as europeias, que poderá encabeçar, e as autárquicas, para disputar Lisboa. A vida dela, nesse sentido, é bem mais leve do que a dele.

O primeiro pormenor interessante deste quadro é que quando António Costa chegou ao palácio de São Bento, no outono de 2015, não imaginaria com certeza que uma administradora hospitalar próxima do anonimato (e distante da competência) e um secretário de Estado dos Assuntos parlamentares (acabadinho de perder as eleições no seu distrito) seriam dados como seus herdeiros oito anos mais tarde. Com franqueza, tirando os camaradas mais antigos de Pedro Nuno, de São João da Madeira à JS, ninguém imaginaria.

Pedro Siza Vieira, Mariana Vieira da Silva, Fernando Medina, Duarte Cordeiro, o invejavelmente popular Mário Centeno ou o transversalmente aplaudido José Luís Carneiro não são ‒ nem foram ‒ falados com intensidade semelhante. Tal trata-se de algo verdadeiramente extraordinário ‒ e, para alguns deles, até injusto ‒, mas sobretudo de algo que já não está nas mãos de António Costa. Hoje, o futuro é um vento que sopra a uma velocidade que o primeiro-ministro não controla. A seu favor ou contra a sua vontade, as suas criações têm vida própria, autonomia, ambições, força.

O segundo pormenor inescapável é que Pedro Nuno Santos e Marta Temido só têm tudo isso porque António Costa criou, inadvertidamente ou não, um ambiente onde a ressurreição é inevitável porque a morte política nunca é definitiva.

Temido deixou o Ministério da Saúde com o maior crescimento de mortalidade na União Europeia entre o pré-pandemia e o pós-pandemia ‒ 24% ‒ e o SNS com a maior dependência de sempre do setor privado. Pedro Nuno Santos indemnizou uma administradora de forma ilegal, nomeou-a para uma empresa pública de forma igualmente ilegal, nada disse ao vê-la tornar-se secretária de Estado do Tesouro, nada disse sobre lembrar-se ou não da indemnização, esqueceu-se de ter aprovado o valor da mesma, recordou-se ao dar milagrosamente com uma conversa eletrónica e demitiu-se. Mas nada disso importa ‒ ou importou ‒ e do relatório preliminar da comissão de inquérito à TAP ao ânimo do grupo parlamentar do PS quase dá ideia de que bom, bom, bom era o dr. João Galamba ser amanhã substituído pelo seu antecessor na pasta. E let bygones be bygones, no fundo.

Para António Costa, como é sabido, o seu braço-direito desde a Câmara de Lisboa, moderado mas capaz de pontes, competente mas algo apático, seria o sucessor ideal e Pedro Nuno terminaria os seus dias numa autarquia remota de Aveiro ou no exílio igualmente remoto de Bruxelas. E não será assim, nem por sombras. A abolição da responsabilidade política decretada por António Costa ao longo dos seus governos ‒ que perpetuou Urbano de Sousa, Cabrita, Cravinho, Galamba, etc. muito para lá do recomendável ‒ salvou o primeiro-ministro de mil crises políticas, é certo, mas retirou-lhe margem para guiar o seu partido para onde realmente gostaria de o deixar.

Como tudo foi permitido aos que estiveram com Costa, tudo será permitido aos que já não estão com ele. É esse o ponto, é essa a ironia. A manutenção de João Galamba nas Infraestruturas contra o defendido pelo Presidente da República, pela metade pensante do PS e pela maioria racional dos observadores, permitiu a António Costa subjugar Marcelo Rebelo de Sousa, vergando-o, mas também ofereceu a Pedro Nuno Santos uma aura de normalidade, de imunidade e de inevitabilidade que, há seis meses, nem Pedro Nuno sonhava recuperar.

Seja em 2024, seja em 2026, seja quando for, o atual primeiro-ministro aperceber-se-á demasiado tarde que era algo impossível abolir a responsabilidade política nos seus governos sem acabar por entregar o futuro do seu partido ‒ e eventualmente do país ‒ àqueles que ele próprio considera demasiado irresponsáveis para o governar.

Tradicionalmente, os líderes são acusados de não gerarem sucessores. Costa será julgado por deixar estes.

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