Vinte anos de promessas, mais de um milhão de portugueses ainda sem médico de família: eis porquê - e eis os centros com mais utentes à espera

18 abr 2022, 08:42
Atualmente, há SNS um total de 5.949 especialistas de Medicina Geral e Familiar. (Pexels)

Em 20 anos, nenhum governo cumpriu o objetivo. Médicos e sindicatos apontam o dedo à falta de investimento e à incapacidade de fixar médicos.

O XXIII Governo Constitucional, agora em funções, faz a mesma promessa que o XV já fazia: cada cidadão português teria um médico de família. Então, foi o primeiro-ministro José Manuel Durão Barroso quem o inscreveu no programa de um governo que durou de 2002 a 2004. Vinte anos depois, a promessa continua por cumprir. E a repetir-se.

“Tendo em vista um novo Sistema Nacional de Saúde, o Governo pretende: (...) a reorganização da actual rede de cuidados primários, com vista a proporcionar a cada cidadão o seu médico assistente, tendo por base um modelo de contratualização com os médicos de clínica geral e familiar que tenha em conta uma capitação definida associada a incentivos”, lia-se no programa de Barroso, que pode ser consultado no Arquivo Histórico dos governos após o 25 de Abril.

Antes, no programa do XIV Governo, liderado por António Guterres entre 1999 e 2002, já havia a promessa de “garantir o acesso a cuidados médico-dentários a todas as crianças entre os 6 e os 12 anos”, quase como um pontapé de saída para uma promessa generalizada à população e que se vem a repetir há duas décadas.  As promessas repetiram-se nos programas dos governos XVI de Santana Lopes, XIX e XX de Pedro Passos Coelho, XXI e XXII de António Costa, tendo em 2017 sido mesmo uma das bitolas do atual primeiro-ministro.

Até agora, todas as promessas falharam. 

Pandemia deixa a nu problema antigo

Em março de 2022, com os dados mais recentes do Portal da Transparência, registavam-se 1.235,831 de portugueses sem médico de família atribuído.

Só na ACES Sintra são 121.465 (no centro de saúde de Algueirão-Mem Martins, é preciso chegar às seis da manhã para conseguir uma senha para ser atendido por um médico), na ACES Loures/Odivelas 88.292 (no centro de saúde de Famões, em Odivelas, os utentes queixam-se da falta de médicos e têm dificuldade em ter uma consulta) e na ACES Estuário do Tejo são 74.713. O governo prometeu disponibilizar numa plataforma online as vagas existentes em cada centro de saúde, mas até agora o acesso a essa informação não está disponível.

A pandemia veio agravar as contas, não apenas com um aumento do número de inscritos nos cuidados de saúde primários, mas também com a transferência de médicos de medicina geral e familiar para serviços focados no combate à covid-19. Mas para os médicos e sindicatos, o problema é já de longa data.

“Nos últimos quatro, cinco anos isto agravou-se. Na altura, eram uns 500 mil portugueses [sem médico de família], mas havia a desculpa de que eram não utilizadores [dos cuidados de saúde primários]. O poder político devia encontrar soluções para isso, mas tentou sempre tapar o sol com a peneira - tinha apenas o discurso”, começa por dizer à CNN Portugal Jorge Roque da Cunha, secretário-geral do Sindicato Independente dos Médicos (SIM).

Atualmente, e de acordo com os dados provenientes do RHV (Recursos Humanos e Vencimentos), “que não incluem trabalhadores independentes/prestadores de serviços, nem entidades em regime de PPP, em março de 2022 contabilizavam-se no SNS um total de 5.949 especialistas de Medicina Geral e Familiar”, esclarece por escrito à CNN Portugal a Administração Central do Sistema de Saúde, que adianta que este número “representa um acréscimo de 143 médicos especialistas de MGF face ao início da pandemia”.

Jorge Roque da Cunha considera esse número como claramente insuficiente: “Seriam precisos, no curto prazo, 100 médicos para colmatar as reformas e os médicos doentes, e reverter o cenário”, ajudando a encurtar o número de portugueses sem médico de família.

A 18 de janeiro, o governo anunciava que haviam sido preenchidas 160 vagas na área de medicina geral e familiar de um concurso de 235 vagas. O governo estima que o recrutamento destes 160 médicos permita mais perto de 300 mil utentes tenham acesso a médico de família. 

Para Nuno Jacinto, presidente da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar (APMGF), “são muitos utentes para poucos médicos, é completamente impraticável e irrealista”. Uma das razões para que o problema se arraste ano após ano é a sobrecarga dos clínicos, sublinha.

O programa do atual governo, liderado por António Costa, revela que  “o número de médicos de família e de enfermeiros no SNS aumentou nos últimos anos”. Porém, reconhece que “a aposentação de um número significativo de médicos de família, uma tendência demográfica que ainda se prolongará até 2024, e o aumento de inscritos no SNS, em particular desde o início da pandemia, não permitiram ainda o cumprimento da meta de cobertura de todos os inscritos no SNS por uma equipa de saúde familiar”. No entanto, não apresenta qualquer proposta para colmatar a questão da Medicina Geral e Familiar, mesmo estando o país a entrar no rescaldo da pandemia e a ter de enfrentar tudo o que ficou por fazer nos cuidados de saúde, por causa do foco no controlo do SARS-CoV-2.

Entre as medidas previstas no Orçamento do Estado, figura o arranque da concretização do regime de dedicação plena dos profissionais do SNS, sem diferenciar especialidades.

Segundo Nuno Jacinto, esta medida, que não é nova, até poderá ser um atrativo para captar médicos, mas tudo depende da forma como for executada, uma vez que há o risco de ter o efeito oposto e afastar ainda mais os profissionais de saúde do SNS.

“A questão da exclusividade, que foi algo que já existiu há alguns anos e terminou com a revisão das tabelas remuneratórias, pode ser mais um fator favorável, mas é preciso saber quais as condições e o que implica, de forma isolada não é de suficiente”, diz Nuno Jacinto, apressando-se a acrescentar que “isto não é só uma questão salarial".

"Vamos assumir que esse regime é implementado e que nada mais é feito noutros campos: continuamos com unidades sem condições, dificuldade em ter equipas completas, falta de segurança, tudo isto é um pacote pouco atrativo e os colegas continuam com melhores opções no privado e no estrangeiro”, analisa.

A responsabilidade não é de Nossa Senhora de Fátima... 

Sobre as constantes falhas dos governos em garantir um médico de família a cada português, o representante do SIM é categórico: “Não se pode apontar responsabilidades ao vazio, nem à Nossa Senhora de Fátima", ironiza. "A responsabilidade é dos governos. Os concursos ficam desertos, o que deveria levar o governo a encarar isto como um problema sério. Mas foram sempre negando”.

“É uma questão sobre a qual também nos interrogamos, nomeadamente os que não têm médico de família”, diz Noel Carrilho, presidente da Federação Nacional dos Médicos, que continua: “Se há um médico de família, que se formou como médico que pretende ser médico de família, e que prefere não ser médico de família no SNS, isso é uma chamada de atenção que já deveria ter sido tida em conta”.

Os 20 agrupamentos de Centros de Saúde com mais utentes sem médico de família atribuído

Administração Regional de Saúde Agrupamentos de Centros de Saúde Inscritos nos Cuidados de Saúde Primários Utentes sem médico de família atribuído
Lisboa e Vale do Tejo ACES Sintra 371.204 121.465
Lisboa e Vale do Tejo ACES Loures / Odivelas 376.134 88.292
Lisboa e Vale do Tejo ACES Estuário do Tejo 238.313 74.713
Lisboa e Vale do Tejo ACES Arco Ribeirinho 229.751 70.431
Lisboa e Vale do Tejo ACES Lisboa Central 306.969 64.591
Lisboa e Vale do Tejo ACES Arrábida 240.682 58.268
Lisboa e Vale do Tejo ACES Almada / Seixal 360.979 56.822
Lisboa e Vale do Tejo ACES Amadora 177.082 56.086
Lisboa e Vale do Tejo ACES Oeste Sul 213.894 52.993
Lisboa e Vale do Tejo ACES Médio Tejo 225.724 50.723
Lisboa e Vale do Tejo ACES Lisboa Ocidental e Oeiras 250.638 50.053
ARS Algarve ACES Algarve Barlavento 185.838 48.989
Lisboa e Vale do Tejo ACES Oeste Norte 181.673 41.530
Lisboa e Vale do Tejo ACES Cascais 227.572 40.444
Lisboa e Vale do Tejo ACES Lisboa Norte 273.856 34.751
ARS Algarve ACES Algarve Central 276.979 33.617
Lisboa e Vale do Tejo ACES Lezíria 201.254 30.641
Centro ACES Pinhal Litoral 277.729 29.683
Alentejo ACES São Mamede 115.260 22.833
Centro ACES Baixo Mondego 392.166 21.529

Fonte: Portal da Transparência, com dados relativos a março de 2022.

O que tem falhado?

Noel Carrilho aponta o dedo à inexistência de uma “iniciativa correta por parte dos últimos governos”. Se tal iniciativa tivesse existido, garante, “poderíamos ter médicos de família para praticamente todos os portugueses”.

“Foram formados médicos especialistas de Medicina Geral e Familiar em número suficiente para preencher essas lacunas, o que aconteceu é que houve centenas de médicos de família que foram ficando de fora dos concursos, o que é bastante revelador das condições de trabalho no SNS”, lamenta Noel Carrilho.

Já Nuno Jacinto, presidente da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar (APMGF), considera que “várias coisas têm falhado” ao longo dos anos, que contribuem para a incapacidade de dotar os centros de saúde e unidades de cuidados de saúde primários com médicos suficientes para toda a população. Mas não só: contribuem também para a incapacidade de fixar os médicos de família e de evitar que estes transitem para o setor privado ou social.

No Orçamento do Estado para 2022, o Governo anuncia um reforço na Saúde de 700 milhões de euros, para 13.578 milhões de euros de despesa total consolidada. Contudo, o representante dos médicos de Medicina Geral e Familiar diz que “não é só a questão orçamental propriamente dita”. E enumera outros aspetos que têm contribuído para a incapacidade de cumprir a promessa legislatura atrás de legislatura: “A questão relacionada com a remuneração dos profissionais é importante, é importante melhor a remuneração dos médicos de família”, afirma. 

O sindicalista Jorge Roque da Cunha dá o exemplo da dificuldade em fixar médicos em Lisboa e Vale do Tejo, que tem 891.803 portugueses sem médico de família atribuído (72% do total nacional). A razão? O “elevado custo de vida: a renda é de 600 euros em Lisboa, o salário de um especialista é de 1.800 euros líquidos, assim o Estado empurra médicos para trabalho precário”, defende.

Há ainda a questão das carreiras médicas que, segundo Nuno Jacinto, “são lentas, pouco efetivas e que não diferenciam os graus em que estão inseridas”. E também a questão dos horários, muitas vezes sobrecarregados com um elevado número de pacientes por clínico e com assuntos burocráticos que tiram tempo para consulta, horários esses “que não permitem conjugar [o trabalho] com a docência e com a investigação”. 

Noel Carrilho defende ainda que “não houve nenhum tipo de atuação que viesse a tornar mais atrativa a carreira médica no SNS, e aqui incluem-se os médicos de família”. E aponta que “as condições são difíceis, as listas de utentes excessivas, há médicos que não entram no SNS, há outros que abandonam para exercer outro tipo de funções”. “Isto é uma amostra da incompetência do governo em manter os médico”, reitera.

O presidente da APMGF lista ainda mais um aspeto a ter em conta para perceber todas as promessas falhadas: a falta de reconhecimento, o que leva à desmotivação que, aliada a todas as queixas apresentadas, faz com que muitos abandonem o ‘barco’ da saúde pública. “Falamos de uma coisa que não custa dinheiro, mas que é simples, que é o reconhecimento e a valorização, o acarinhar os profissionais do SNS. Tudo isto dá motivação”.

“Os grandes prejudicados não serão apenas os médicos, mas também os portugueses. O governo maioritário tem de se mexer”, desafia Jorge Roque da Cunha.

Das más condições dos centros de saúde aos sistemas informáticos obsoletos

Nuno Jacinto aponta as “condições de trabalho nas unidades de saúde, a nível de instalações e de sistemas informáticos, de informação e comunicação” como fatores negativos, com impacto no dia-a-dia dos médicos, e que têm vindo a ser ignorados pelos governos mesmo se afectam diretamente a prática clínica dos médicos. Muitos optam por abandonar o Serviço Nacional de Saúde e o país. “Há unidades familiares com muitos défices e falta de condições”, assevera, sejam elas de materiais, estruturas ou segurança. Em novembro de 2021, o Bloco de Esquerda denunciou a falta de condições no centro de saúde de Salvaterra de Magos, onde denunciou haver infestações de ratos e baratas.

“É essencial que se dê condições para os médicos ficarem”, frisa Jorge Roque da Cunha, pedindo um maior “investimento em instalações e em equipamentos”. Até porque, “os sistemas informáticos são obsoletos” e dificultam o trabalho, tornando-o moroso. “Na pandemia demorámos quase dois anos para conseguir desmaterializar as baixas dos doentes positivos, numa altura em que estávamos com uma sobrecarga burocrática”, refere Nuno Jacinto.

“Tem de haver uma aposta clara nos recursos materiais do espaços, não falamos em instalações de luxo, mas dignas, em segurança, com acessibilidade e com equipamentos necessários para a atividade, para todas as especialidades. As coisas têm de funcionar, quando falamos em sistema informáticos. Estes deveriam ser como os dos aeroportos, sem falhar, não pode acontecer ter unidades que ficam dias sem sistema, isto não pode acontecer”, desabafa o presidente da APMGF.

Algumas falhas seriam facilmente evitáveis, diz, mas o seu impacto pode ser drástico na rotina diária de um médico. Exemplo? Os não raros “problemas de impressoras nos centros de saúde”.

Para lá das questões técnicas e informáticas, os médicos de família queixam-se também da burocracia e do trabalho administrativo, que rouba tempo para o paciente. “Há um conjunto de tarefas administrativas pesadas que aumentam a carga de trabalho e acabam por diminuir a capacidade”, lamenta Jorge Roque da Cunha.

Corrida "atrás do prejuízo" já começou

“Não ter médico de família faz com que a pessoa não consiga que o seu estado de saúde seja acompanhado de forma regular, e empurra os portugueses para seguros [de saúde], são já quatro milhões os que têm”, refere Jorge Roque da Cunha, que não hesita em apontar danos colaterais associados à falta de clínicos especializados em medicina geral e familiar, que são o primeiro contacto de muitos utentes e a ponte para as especialidades, e que acabam por ser a única alternativa para quem não tem capacidade financeira para procurar outras saídas.

Há quem faça o esforço para ir ao privado para ter acompanhamento, como relatou a TVI no final do ano passado, a propósito da falta de médicos de família no Centro de Saúde de Alenquer - apenas 1.700 dos 16.500 utentes têm médico de família. Em Porto de Mós, em Leiria, dos cinco médicos de família, resta apenas um.

“Não se fazem rastreios do cancro do colo do útero e da mama, patologias como a diabetes e a hipertensão não são seguidas e, além disso, é dificultado o acesso aos cuidados hospitalares. Sem acesso aos cuidados de saúde primários não há o referenciamento para os hospitais” e para as consultas de especialidade ou até cirurgias - cujas listas de espera se mantêm altas -, alerta o secretário-geral do SIM, que garante que toda esta situação “afeta essencialmente os mais desfavorecidos”.

Segundo dados apresentados pela Liga Portuguesa Contra o Cancro, “perto de 450 mil rastreios aos cancros da mama, do útero e do colo e reto ficaram por realizar no primeiro ano de pandemia, bem como 29 milhões de exames complementares de diagnóstico e terapêutica”. Também a diretora clínica do Instituto Português de Oncologia (IPO) do Porto alertou que há doentes com cancro do pulmão, da mama e digestivos a chegar em estado mais avançado, uma consequência da pandemia, que veio deixar a nu o impacto que a falta de acesso a cuidados de saúde primário pode ter.

“Há diagnósticos que ficaram significativamente alterados e para muitos portugueses já irremediavelmente atrasados. Vamos tornar essas situações irreversíveis ainda em maior número”, lamenta Noel Carrilho.

Em nome do Sindicato Independente dos Médicos, Jorge Roque da Cunha diz-se “muitíssimo preocupado por os seus alertas não terem sido ouvidos nos últimos anos”, mas também não crê que a situação seja resolvida a curto prazo. “Tal como São Tomé, é ver para querer”.

“Como não se resolveram muitos destes problemas ao longo dos anos, isso faz com que, em plena crise económica e com inflação, haja daqui a uns meses mais utentes sem médico. O governo tem de rapidamente encontrar soluções”, atira Roque da Cunha. Defender mais investimento do Estado no SNS "parece um jargão, mas não pode haver neste momento qualquer dúvidas quanto a isso”, diz. Até porque, “se continuar assim, a catástrofe será maior, com pessoas a morrer mais cedo, sem acesso a especialidades, mais casos de AVC, menos controlo da diabetes e da cegueira”.

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