Folhetim de voto: Rio deixa um elefante no meio da sala do PSD

7 fev 2022, 07:47
Rui Rio

Enquanto Rui Rio insiste em acarinhar as lutas do Chega, importa saber o que pensam os potenciais candidatos à liderança do PSD sobre o futuro relacionamento com o partido de André Ventura. Há posições para todos os gostos, nota Filipe Santos Costa na sua coluna de análise e opinião diária sobre o pós-eleições. Da oposição frontal de Rangel e Moreira da Silva a quaisquer negociações, à vontade de casar com a extrema-direita manifestada há muito por Pinto Luz, passando pela ambiguidade de Montenegro. Eis o elefante que Rui Rio deixa no meio da sala social-democrata

PSD. Segundo o Expresso, a palavra de ordem no PSD é fazer uma transição “rápida, mas sem pressa”. A frase é de David Justino, que confirma o seu peculiar talento para dizer coisas que soam bem mas não significam nada. Não haverá nem pressa nem rapidez numa transição que se arrastará por cinco ou seis meses, durante os quais o homem que ofereceu ao PSD a pior derrota da sua história continuará à frente dos destinos do partido, tentando condicionar o seu futuro. Será estranho que o PSD, que em tempos se reclamava como o “partido mais português de Portugal”, e nesses tempos revelava um instinto de sobrevivência sem comparação em qualquer outro partido, se continue a deixar levar pelo maior derrotado da sua história. Mas eles lá saberão… Foi o mesmo PSD que, há poucos meses, apostou em manter em funções um líder com sobejas provas dadas de fracasso. Mostrei várias vezes - e muitas delas em direto, quando comentava estas coisas todas as tardes n’Os Quatro - o meu espanto por o PSD continuar a apostar no líder que o levara a alguns dos piores resultados da sua história, cometendo sucessivos erros táticos e estratégicos nos quais fazia questão de insistir, com indisfarçado orgulho. Por alguma razão - que racional não era - esses militantes acreditaram que o mesmo líder, com o mesmo discurso e o mesmo posicionamento que dera tão maus resultados em sucessivas eleições, haveria de dar certo, por um qualquer milagre eleitoral. O acaso de Lisboa, onde o PS ficou em casa confiante de que a vitória estava no papo, e o PSD venceu contra a sua própria expetativa, agravou o erro de perceção. Sem surpresa, Rio não acertou uma. Agora, diz que fez uma campanha “espetacular” e não reconhece qualquer erro. Como prémio, o PSD pondera dar-lhe todo o tempo do mundo para sair. Para que o partido mostre “maturidade”, dizem eles. Maturidade teria sido aprender com os erros e perceber que as mesmas causas provocam as mesmas consequências. Mas talvez o estado de anestesia interna no PSD não permita tanto.

 

Passado. Não é indiferente manter Rui Rio em funções por tanto tempo. Permitir-lhe-á ser o protagonista do partido durante o debate do programa do Governo e do Orçamento do Estado, quando o PSD já devia estar de olhos postos no futuro, e não preso ao passado. Permitir-lhe-á continuar a defender erros do passado, batendo-se contra os debates quinzenais, quando é evidente que estes serão ainda mais necessários face a uma maioria absoluta - e, por ironia, talvez seja o próprio PS a permitir que voltem, apesar de Rio querer continuar a poupar o primeiro-ministro ao confronto regular com as oposições. 

 

Chega. Mas, mais importante, esta longa transição permitirá a Rio continuar a afundar o PSD na questão que mais dano provocou ao partido nos últimos anos: a relação ambígua com o Chega. No novo “caso nacional” que o Chega impôs na agenda política e mediática - o pretenso direito a “indicar” um vice-presidente da Assembleia da República -, Rio caiu outra vez na armadilha de Ventura, dando-lhe razão, sem que Ventura a tivesse. Partido algum tem “direitos” no que concerne à presidência ou vice-presidências do Parlamento, para além do direito a indicar nomes que se sujeitam à votação dos 230 deputados. Uns serão eleitos, outros serão chumbados, como aconteceu tantas vezes no passado. Mas Rio não resistiu, mais uma vez, a dar força aos queixumes do Chega, seja porque desconhece o que diz o Regimento da AR, seja pelo seu fascínio pelo que pensa ser “politicamente incorreto”. À saída de Belém, alinhou na conversa de Ventura, afirmando que “não há que distorcer aquilo que o povo determinou”. Mais uma vez, foi incapaz de dizer não ao Chega. Nesta altura do campeonato, essa atitude já não surpreende ninguém.

 

“A direita não aprendeu nada”. A questão do vice-presidente da AR é um micro-caso, que só interessa ao Chega; a atitude do PSD em relação ao Chega pode colocar um problema estrutural na democracia portuguesa, e deve interessar-nos a todos. Porque, se não souber lidar com esse facto, o PSD corre o risco de entregar ao PS, por muito tempo, o centro político português - onde está todo o eleitorado moderado que decide quem governa. Escrevi isso aqui, na sexta-feira passada: “O Chega pode tornar-se, de forma persistente, o maior obstáculo à possibilidade do PSD voltar ao poder - e depende apenas dos sociais-democratas remover esse obstáculo, retirando o Chega de toda e qualquer possível equação futura. Será interessante ouvir o que dirão sobre isso os candidatos à liderança laranja.”

Ontem, no Público, a Ana Sá Lopes escrevia todo um texto a tentar demonstrar a mesma coisa. “Os ziguezagues de Rui Rio relativamente ao Chega – nomeadamente quando se deixou capturar pela agenda de André Ventura no frente-a-frente com o líder do Chega e ainda levou o tema da versão “mitigada” da prisão perpétua inopinadamente para o debate com Catarina Martins – foram uma preciosa ajuda para a obtenção da maioria absoluta do PS. E António Costa percebeu bem que estava ali a fragilidade do líder do PSD e explorou-a até à sua exaustão”. 

Concordo com a Ana: o pecado capital foi cometido nos Açores. “A partir do momento em que Rui Rio, que deu o ámen ao acordo dos Açores, nunca deixou o eleitorado sossegado sobre futuras associações ao Chega, claro que interessava ao PS explorar o risco. Uma grande parte do eleitorado, que até não votaria PS, decidiu votar António Costa para não se ver confrontada com o cenário.” Perante isto, “interessava obviamente ao PS falar no Chega”. E continuará a interessar. Por estranho que pareça, uma parte da direita - incluindo boa parte do PSD - parece apostada em continuar a dar razões para que a esquerda - e em particular, o PS - continuem a falar do Chega. Volto a citar a Ana Sá Lopes: “Pelo que se tem visto nos últimos dias, a direita não aprendeu nada com o que se passou a 30 de Janeiro e prepara-se para ser o seguro de vida do PS para os próximos anos.” 

 

Rangel: Não. Olhemos para o que dizem os potenciais candidatos ao lugar de Rui Rio sobre este elefante que Rui Rio deixa no meio da sala do PSD. Há posições para todos os gostos. Mesmo todos. Nas últimas diretas, em dezembro, Paulo Rangel disse, com toda a clareza e com todas as letras, que com ele não há acordos nem negociações com o Chega. Demarcou-se (embora tarde) da solução encontrada nos Açores, e assegurou que, consigo, não seria nunca repetível a nível nacional. O Chega, segundo Rangel, “não faz parte da direita moderada”, e representa um “limite intransponível”. Negociações à direita, segundo Rangel, seriam apenas com o CDS e a IL. “Um Chega mais forte permite ao PS perpetuar-se no poder”, alertou Rangel, considerando que “o grande interessado em que o Chega possa bloquear soluções no centro-direita é o PS e não é mais ninguém”. Quando Rui Rio se refugiava em malabarismos sonsos, foi bom ouvir alguém no PSD pronunciar um sonoro “Não é não”. 

 

Pinto Luz: Sim. Por estranho que pareça, Miguel Pinto Luz, vice-presidente da Câmara de Cascais que tenta há anos apresentar-se como candidato à liderança do PSD, esteve nessas diretas ao lado de Paulo Rangel. Unia-os a oposição a Rio, mas separava-os a recusa de conversar com o Chega. Pinto Luz não só discorda da ideia de que o Chega esteja fora de futuras coligações do PSD, como se apresenta como o grande defensor desses entendimentos. Em 2020, nas diretas disputadas entre Rio, Luís Montenegro e Pinto Luz, este orgulhava-se de ser quem, de forma mais vocal, defendia que o PSD devia conversar com todos os partidos à sua direita, incluindo explicitamente o Chega. Fazer outra coisa, defendia Pinto Luz, era alinhar na conversa do PS e limitar as hipóteses do PSD. “Não contem comigo para reduzir ainda mais o PSD e as capacidades do PSD de poder falar e congregar várias forças políticas à volta de um projecto reformista para Portugal”, afirmava. Quando os sociais-democratas fizeram o famigerado acordo com o Chega nos Açores, Pinto Luz apressou-se a reclamar uma espécie de paternidade desse casamento, por ter sido “o primeiro no PSD a tomar uma posição pública, clara e objectiva sobre política de alianças no centro-direita”. Pinto Luz tem apresentado razões diversas, ao longo do tempo, para defender os entendimentos com o Chega. Por um lado, a necessidade de somar votos, ponto. Por outro, uma simetria entre PSD e PS, que o leva a fazer uma equivalência entre extrema-direita e extrema-esquerda. “Em 2015, António Costa foi, no mínimo, “brilhante” por ter federado as esquerdas radicais; mas, em 2020, José Manuel Bolieiro e Rui Rio cruzaram todas as linhas vermelhas por alargarem a sua coligação de governo a um partido populista de direita.” Por fim, nega que o Chega seja de extrema-direita - classifica-o apenas como “populista”. E recusa fazer distinções entre o que chama de “direita boa” e “direita má”. Na sua ótica - explicitou aqui esse pensamento - a única direita má será a que recusa juntar a direita toda, incluindo a extrema-direita. Apesar de já ter admitido que o PS é quem mais ganha com o crescimento do Chega, continua a defender que o PSD deve dar utilidade ao Chega, integrando-o em futuras maiorias. Não parece dar-se conta da contradição em que cai. 

 

Moreira da Silva: Nunca. Estes ataques de Miguel Pinto Luz ao que classificava como a “direita dos salões” (e que será a “direita má”, apesar de Pinto Luz discordar dessas classificações) surgiu quando Jorge Moreira da Silva reclamou que o PSD fizesse um congresso extraordinário por causa do acordo com o Chega nos Açores. Moreira da Silva pregou praticamente sozinho no deserto contra esse entendimento. O PSD ignorou-o olimpicamente, e mesmo fora do partido teve pouco eco. Mas não foi por poupar nas palavras. Pelo contrário. Questionando-se sobre o que teria acontecido ao seu partido de sempre, que Moreira da Silva não reconhecia no acordo dos Açores com o Chega, defendeu uma linha vermelha inultrapassável. “Não se fazem acordos com partidos xenófobos, racistas, extremistas e populistas. Com partidos que, por ignorância ou perversidade moral, propalam propostas incompatíveis com a dignidade humana. Ponto! Claro que não se pode impedir esses partidos de viabilizar as nossas propostas ou o nosso programa de governo. Essa é uma liberdade que lhes é conferida e não depende da nossa opção nem das nossas ações. Coisa diferente é o papel que tenhamos em aceitar ou, pior ainda, promover tais acordos. E aí os limites são claros. Não se conversa, informal ou formalmente, e muito menos se negoceia com esses partidos.” Nem houve congresso extraordinário nem grandes manifestações de apoio a esta posição. No caso de Pinto Luz, ela serviu para atacar o seu companheiro de partido com uma violência que nunca dirigiu, por exemplo, contra André Ventura. Foi esclarecedor. Como foi esclarecedor que, por esses dias, fossem mais os silêncios de conveniência do que as afirmações de princípios. José Eduardo Martins foi um dos poucos a perturbar o som dos grilos, que se ouvia no PSD. Cada vez mais distante da vida do partido, o comentador foi dos poucos a denunciar o negócio dos Açores como um enorme tiro no pé dos sociais-democratas: “O CDS suicidou-se e o PSD não está melhor", escreveu por esses dias. Poucas vezes tão poucas palavras acertaram tanto.

 

Montenegro: Não, mas talvez. Nas diretas disputadas a três em 2020, entre Rio, Pinto Luz e Luís Montenegro, foi este o que mais se demarcou de futuras conversas com o Chega. Mas, entretanto, embarcou em jogos de palavras que cultivaram alguma ambiguidade em relação ao partido liderado por André Ventura. Aliás, chegou a afirmar que Ventura “não deslustrou o PSD” na sua famosa candidatura à câmara de Loures, em 2017, naquela que foi a sua plataforma de lançamento para o estrelato nacional como voz da extrema-direita racista. Há poucos meses, após as eleições autárquicas, Montenegro recusou-se a "dissertar muito" sobre as opções do PSD para conseguir maiorias no Parlamento, mas defendeu que "o que é preciso é que todos à direita do PS ganhem mais deputados". Ou seja, admitia um entendimento - tácito ou explícito - entre toda a direita. Mais tarde, já durante a campanha para as legislativas, defendeu que “o PSD, o CDS, a Iniciativa Liberal, o Chega (...) todos eles têm que ter um princípio que é não viabilizar governos socialistas". E depois? "Depois, enfim, como é que se podem entender é uma questão suplementar".


 

Deixou de ser uma questão suplementar. É a questão que o PSD terá de resolver se quiser voltar a pensar em chegar ao Governo. Caso contrário, corre o risco de que o Chega continue a crescer e o PS o continue a agitar como o espantalho que assusta o eleitorado que decide as maiorias. Desta vez funcionou.

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