Campo Maior teve mar. Foi Rui Nabeiro que o criou

21 mar 2023, 17:44

Um mar de gente, um mar de flores. Sob o sol alentejano, aguenta-se tudo para honrar o “senhor Rui”, que foi a enterrar na terra que sempre amou. Os netos, que vão segurar o império, desfiam as memórias. Não há como evitar as lágrimas. O povo, que é da família, sofre com eles. “O meu avô, que não era meu. Era nosso.”

“Parece que ainda não é verdade.” Para a morte, nunca ninguém está preparado. Para a despedida, depois do choque da notícia, talvez. Maria João Ruas, 13 anos de Delta, chegou cedo. O relógio ainda não dava as 08:30. Ela, como Campo Maior, aprendeu a acordar cedo com o “senhor Rui”. E hoje, sobretudo hoje, não podia ser diferente. 

O patrão vai a enterrar. Tantas vezes a saúde lhe pregou partidas, mas nem Maria João nem as colegas anteviam a morte. Sempre que o fundador da Delta era hospitalizado, as colegas repetiam: “o senhor Rui volta, o senhor Rui volta”. Desta vez, não voltou. 

O mar não se fez num só dia. E também o mar de Campo Maior, de gente e de flores, se foi tornando mais compacto à medida que a hora da missa de despedida se aproximava. O largo da igreja matriz, já apertado de si, foi encolhendo. 

Adriano Simões e Anabela Gomes vieram de Aveiro. Eram fornecedores do império que Nabeiro criou. Nas mãos dela, uma coroa de flores brancas. Mas atira as palavras para o marido. “Sempre que fazia anos envia-lhe um email. Nunca me faltou resposta.” Para a semana, mandaria os parabéns pelos 92 anos. Mas a vida quis de outra forma. 

Por muito que o velório se tenha alongado, há sempre quem guarde para a última hora, arriscando-se a não conseguir. Duas funcionárias da Delta contam que estão a tentar entrar, mas que está difícil. O segurança ouve e compadece-se. “Entre lá”. E elas vão apressadas. Nem dá tempo de perguntar o nome. 

Pelas dez da manhã, a igreja está cheia. Avisa-se que, só saindo quem lá está, podem entrar outros. E entre a multidão há quem solte o desabafo. “Isto é só para os grandes.” Estranham as grades de ferro colocadas entre eles e o corpo do “senhor Rui” – o homem que, em vida, nunca lhes colocou nenhuma barreira. Uma gata passeia pelo espaço vazio, mia alto, alheia à tristeza do povo.

“O meu avô, que não era meu. Era nosso”

O “senhor Rui” valia todo e qualquer esforço. E, para assistir a duas horas de missa através do ecrã gigante colocado na escadaria de igreja, tudo ajuda. Os lenços, os panos, os guarda-chuvas. Porque o sol de março, no Alentejo onde Portugal quase acaba, é forte. Novos, velhos. E os joelhos de todos a ameaçar ceder. “Pelo senhor Rui aguenta-se.”

Do outro lado passam Marcelo, Costa e Santos Silva. E mais uns tantos senhores de Lisboa que "devem ser importantes". Mas os campomaiorenses só querem saber do pai e avô que perderam. Encheram-no de flores, tantas que não cabiam no interior da igreja. Foram amontoadas junto à porta principal, com a garantia de que todas chegariam ao cemitério. 

À hora marcada, a missa arranca. Segue-se o ritual, com o arcebispo de Évora a destacar, entre outras coisas, o amor à terra e o espírito generoso do comendador. “Estes belos mármores que piso são sua oferta.” À igreja ia pouco, mas confiava que a sua Alice compensava pelos dois.

O pai e avô de todos

Ana Pinto escreveu dezenas de discursos para Rui Nabeiro. Mas ele, por muito que lhe apreciasse o trabalho, improvisava. “Ele falava de coração.” O testemunho emocionado faz soltar lágrimas a muitos dentro e fora da igreja. Porque Ana é a representante de todos eles, os trabalhadores, nesta homenagem. “Cada um tem dentro de nós o senhor Rui. Não vai sozinho.” A igreja levanta-se. Aplausos enchem a rua. Os corações apertam-se. 

Porque, o que viria a seguir, havia de encharcar os olhos. Um novo mar neste Alentejo, um mar de lágrimas. Ivan Nabeiro é o primeiro dos três netos a partilhar as suas palavras. Cirúrgico, certeiro. “Não dava um não. Dava a esperança. Era o maior. O meu avô, que não era meu. Era nosso.” Pausas tão sentidas que dizem tudo. 

Morreu. E não há nada que o devolva, nem a “avalanche de amor” que chegou à família. Rita Nabeiro segura-se para que o rosto não se encha de lágrimas aos primeiros minutos a falar do avô, “o porto seguro, o que aponta o caminho para a luz”, “o nome onde cabem todos”, “os olhos vivos de eterno gaiato”.

Rui Nabeiro estará no café, no copo de vinho, na planície do Alentejo. E estará também no nome do neto que o sucede no império, Rui Miguel Nabeiro. Foram 20 anos de trabalho lado a lado. “Avô, podes estar seguro de que aprendemos a lição”: erguer os punhos, e gritar “Para a frente”.

Perto, como sempre foi

Para a frente, sim. A urna de Rui Nabeiro segue o lema. Mal os olhos do povo se cruzam com ela, o aplauso. Longo, demorado, sentido. A família abraça-se na escadaria, as individualidades assistem a tudo atrás. E as gentes precipitam-se, passando pelas barreiras de segurança. Querem estar perto do “senhor Rui”, tal como ele sempre esteve perto nas suas vidas.

Carla Tomé, Cecília Cabeções e Célia Garcia seguem na dianteira. “O regresso ao trabalho amanhã não vai ser igual.” Na Delta, não vai estar o patrão a tratá-las por “filhas”. São precisos muitos minutos para que o largo fique entregue a si mesmo, às garrafas de água que foram distribuídas para aguentar o calor. 

Quando o “senhor Rui” chega ao cemitério, e se entrega à terra que sempre amou, ainda há flores a ser carregadas nos carros funerários. 
 

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