A história da jovem portuguesa que escolheu viver "numa das maiores favelas do mundo"

25 dez 2021, 08:00
Marta Baeta com as crianças a desejarem um bom Natal

Entre o choque cultural, denúncias de corrupção e ameaças de morte, Marta Baeta contou à CNN Portugal a sua história de superação e resiliência na Kibera, uma das maiores favelas do mundo situada no Quénia

Aos 21 anos, Marta Baeta decidiu deixar o Barreiro, em Lisboa, e rumar sozinha para o Quénia com o objetivo de cumprir o sonho de fazer voluntariado “numa das maiores favelas do mundo”, a Kibera. A ideia inicial era passar três meses a ajudar as crianças do bairro, mas os meses transformaram-se em vários anos e, desde então, já se passou quase uma década. Entre o choque cultural, denúncias de corrupção e ameaças de morte, a jovem portuguesa contou à CNN Portugal como a Kibera passou de um "pesadelo" diário para uma família à qual não conseguiu dizer adeus.

Tudo começou em 2012, altura em que Marta ainda estudava na universidade, em Lisboa, e tinha pela frente um semestre sem aulas. “Nessa altura já tinha organizado a minha vida e juntado dinheiro para cumprir o meu objetivo, que era fazer voluntariado fora de Portugal”, contou à CNN Portugal. 

Foi então que entrou em contacto com a AESEC, uma organização não-governamental (ONG) que se dedica ao trabalho voluntário em várias zonas necessitadas em todo o mundo, e fez a candidatura para viajar para o Quénia. “Vim sozinha por três meses para Kibera, que é uma das maiores favelas do mundo, para dar aulas numa escola - que no fundo era só uma sala de aula – com 25 crianças”, todas elas com idades diferentes, recordou.

Marta descreve Kibera como “uma lixeira” a céu aberto: “Há lixo por todo o lado, não há recolha do lixo, não há saneamento, só se veem barracas de chapa ou de terra e madeira”, acrescentou. Foi este o cenário com que a jovem se deparou quando chegou ao bairro em 2012, e, a partir de então, as coisas não ficaram mais fáceis para Marta.

Além das dificuldades na comunicação com as crianças e com as pessoas com quem trabalhava diariamente, uma vez que nenhuma das partes sabia falar inglês, a jovem também enfrentou dificuldades ao nível da cultura do país:

“Eu era muito mal vista pelos pais das crianças por ser uma miúda tão nova a dar ordens e a mandar e a gerir coisas”, contou, recordando uma fase “muito complicada” e “muito forte emocionalmente” nos primeiros meses na Kibera.

“O respeito pela mulher aqui é nulo e eu sempre me levantei para lutar e para fazer barulho pelo que eu achava que era o correto. (...) Aqui a violência doméstica é normal, como o é a poligamia, as violações, (...), portanto todos os dias temos de fechar os olhos a tudo o que acontece para não desistir”, acrescentou.

Durante estes três meses, Marta levantava-se bastante cedo para apanhar dois transportes e chegar à escola às 07:00 da manhã, hora em que as aulas começavam. A jovem ficou encarregue do ensino da matemática e de criatividade, que “era uma novidade” para todas as 25 crianças.

“Elas brincavam com lixo, tentavam brincar com tudo o que encontravam, mas não sabiam, por exemplo, fazer um jogo de equipa, não sabiam canções, sem ser duas ou três que a professora lhes ensinava”, recordou Marta.

Um "pesadelo" diário e um regresso que motivou uma nova ida

Apesar de ter ficado “completamente apaixonada pelas crianças”, Marta descreveu estes primeiros três meses na Kibera como “uma experiência muito má” e “muito intensa”. “Eu sofria horrores, era quase todos os dias um pesadelo maior do que o do dia anterior”, recordou, referindo-se à relação com as pessoas com quem trabalhava na escola, mas também com a restante comunidade, que, sempre que a abordavam, era com “segundas intenções”, para lhe pedir dinheiro.

Foi por essa razão que, quando chegou a Portugal, a jovem não tinha qualquer intenção de voltar para o Quénia, até porque a ideia inicial era continuar a fazer voluntariado, mas noutros países. Entretanto, já no Barreiro, continuou a receber apoio de muitas pessoas, que a abordavam na rua e acabavam por lhe dar algum dinheiro para “comprar uns rebuçados para os miúdos”. 

De “mãos atadas”, Marta decidiu então voltar para o Quénia, altura em que descobriu que a escola para a qual anteriormente tinha pago as propinas de algumas crianças, “era afinal uma escola pública” e que não devia ter pago tanto dinheiro quanto pagou. 

“Decidi fazer uma queixa no Ministério da Educação do Quénia a denunciar essa escola por corrupção, que é uma coisa muito comum cá [no Quénia], e a partir daí tudo mudou: fui ameaçada de morte, fui obrigada a sair da favela, foi toda uma sequência de acontecimentos que foram muito desagradáveis. Mas mesmo assim, depois disso, decidi voltar”, contou, referindo-se a um novo regresso ao Quénia, já depois de voltar a Portugal por receio das ameaças de morte de que foi alvo. 

“A vida prega-nos partidas e as saudades que eu tinha eram muitas, e, no ano a seguir, em janeiro de 2014, regressei ao Quénia para garantir mais um ano de escola para as crianças. A partir daí já foi tudo mais pacífico (...) e a verdade é que desde então nunca mais voltei a ter a mesma vida”, confessou, acrescentando que esta mudança de vida não foi uma surpresa para a família, até porque só avisou os pais quando já tinha uma casa alugada e já tinha tomado a decisão. 

Entretanto, desde 2015, Marta recebe todos os anos a visita do pai ou da mãe, uma vez que eles próprios já consideram a comunidade de Kibera como "uma família".

Foi nessa altura que Marta decidiu fundar a associação From Kibera with Love, uma associação que atualmente apoia 65 crianças, além de dar apoio a várias famílias, num total de 200 pessoas. Inicialmente, os apoios eram sobretudo para fins escolares, no sentido de garantir que as crianças pudessem ter acesso à educação, mas rapidamente esses apoios passaram a abranger também a alimentação e cuidados médicos, contou.

Para tal, a associação não só conta com o apoio de perto de 400 padrinhos, que podem acompanhar ao longo do ano as crianças que apoiam, como também angaria dinheiro através da venda de artesanato do Quénia nas redes sociais.

Artesanato do Quénia produzido pela associação fundada por Marta

O desafio da pandemia de covid-19 no Quénia

Estes apoios foram também importantes durante a pandemia no Quénia, que, no início, pareceu “o fim do mundo”: “A maior parte das pessoas perdeu o emprego, porque grande parte das mulheres, principalmente, trabalha em casa de outras pessoas como empregadas domésticas”, contou. 

“Mas o Governo tomou logo medidas muito drásticas, encerrou as escolas logo que foi registado o primeiro caso de covid-19, portanto tivemos as escolas fechadas durante quase um ano, tornou-se obrigatório o uso de máscara na rua, tivemos um recolher obrigatório durante mais de um ano e meio, em que a partir de determinado horário não podíamos andar na rua, e aqui é mesmo a sério”, frisou.

A associação de Marta acabou por diminuir a atividade, uma vez que não podia ter as crianças todas juntas. “Tínhamos receio de ser apanhados, mas continuámos na mesma. Durante sete meses garantimos que todas as famílias recebiam dois cabazes por mês, com alimentos e produtos de higiene, além das máscaras e do álcool gel”, contou.

Agora que “as coisas voltaram ao normal”, a associação está a funcionar como habitualmente e os 10 funcionários que trabalham com Marta já foram vacinados, bem como todos os jovens com mais de 18 anos. Mais recentemente começaram a ser vacinadas algumas crianças que estão no ensino secundário, e a associação aguarda agora que possam ser vacinadas as crianças do ensino primário.

A jovem salientou que não há um problema de acesso às vacinas no país, mas “são muito poucas as pessoas que levaram a vacina” porque “têm muito medo ainda”. Pelo contrário, o acesso aos testes de despiste à covid-19 já é mais difícil, pois “quase não estão disponíveis em lado nenhum”. 

Além disso, sempre que se faz um teste PCR no país, “o resultado é sempre negativo”, pelo que os números de infetados e de mortes por covid-19 no Quénia “não são fidedignos”, lamentou. De acordo com as autoridades locais, o Quénia registou, desde o início da pandemia, 270.899 casos de infeção, 5.355 óbitos por covid-19, e um total de 249.557 recuperados da doença. 

Um Natal em família e um desejo para 2022

Todos os anos, a associação de Marta oferece, no dia 24, um cabaz de alimentos a todas as famílias apoiadas e, no dia 25, celebra-se a festa de Natal no centro da associação. “Nesse dia temos uma comidinha mais especial, oferecemos presentes e as crianças fazem apresentações relacionadas com o Natal que estiveram a preparar, como músicas, danças ou teatros”, contou. 

Este ano, porém, acabou por ser um especial para a associação fundada por Marta, que conseguiu cumprir um dos grandes objetivos: enviar três crianças para Portugal com o objetivo de estudarem e construírem uma vida no país. “Estamos a falar de crianças de 10, 15 e 18 anos e que vão ficar a viver em Portugal para sempre. Conseguimos parcerias com escolas internacionais em Portugal e cada criança fica à responsabilidade de uma família de acolhimento enquanto aí estiver”, adiantou. 

Mas este objetivo não se fica por aqui: entre os desejos de Marta para 2022, a prioridade continua a ser levar mais crianças para estudar em Portugal, razão pela qual a associação vai abrir no futuro “candidaturas para famílias de acolhimento” no país, com o objetivo de conseguir um lar para “mais duas ou três crianças” no próximo ano.

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