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Um governo em pós-verdade

21 abr 2023, 16:44

O PS não percebe que ao banalizar a mentira enquanto prática política está a dar carta branca a todos os que a usarem contra si, depois de si. Ou percebe. E já não se importa

Os últimos três meses ilustraram na perfeição o impasse político que o regime atravessa. À direita, o Chega cresce tanto nas sondagens como no populismo, tornando-se eleitoralmente incontornável e, ao mesmo tempo, politicamente infrequentável. Ventura não resiste a descredibilizar-se, das insinuações sobre o ataque no Centro Ismaili às ameaças a um chefe de Estado estrangeiro, o que força Luís Montenegro a demarcar-se cada vez mais. À esquerda, a maioria absoluta do PS desdobra-se em brilharetes orçamentais, pacotes de medidas e atualizações de pensões, mas falha em escapar às suas próprias trapalhadas. Sempre que o governo espera dar um passo em frente – e deixar um erro para trás –, tropeça em si mesmo e regressa à casa de partida: à ambiência de crise política, à ameaça presidencial de dissolução, ao descrédito junto dos seus eleitores. 

O impasse, em suma, é esse: um governo que não consegue governar e uma oposição que só se consegue opor; um PSD que não é "alternativa" enquanto não se emancipar do Chega, tanto em discurso quanto em projeção de votos, e um Partido Socialista que não é mais do que poder em funções, cuja maioria absoluta não serve para mais do que a incumbência.

Na última semana, além do impasse, acrescentou-se a inverdade.

Não a suspeita de que "não é bem assim", não um contraste entre percepções ou uma diferença de pontos de vista. Não é disso que se trata. É mais do que isso. É pior do que isso. O que se passou nos últimos dias foi a instituição da mentira enquanto pano de fundo da cena política portuguesa.

O PS, na semana do seu cinquentenário, cometeu atos de uma gravidade profunda que devem constranger qualquer democrata. Já não estamos, receio, no panorama das narrativas. Estamos num ambiente de pós-verdade. Hoje, aquilo que o governo de Portugal diz suscita as mesmas dúvidas – com a mesma legitimidade – que a propaganda russa sobre a guerra na Ucrânia. Não que António Costa tenha a mais remota parecença com Vladimir Putin, que não tem, mas pela forma como o seu partido e o seu governo adoptaram a subtração da verdade como arma, como prática, como norma.

Oiça-se João Torres, promissor rosto dos socialistas, deputado, secretário de Estado, número 2 do partido, indivíduo estimável, que se presta à difusão de realidades alternativas como se não tivesse mais nada a dizer ao país. Ao comunicar uma atualização de pensões para este ano e o cumprimento da fórmula legal para o próximo, Torres veio exigir "um pedido de desculpas" à oposição por ter denunciado um corte que o próprio PS anunciou no outono passado, mas que nunca assumiu. Que o governo tenha preferido a chico-espertice à transparência e que, muito basicamente, não se tenha dado ao trabalho de explicar aos reformados que a sustentabilidade da Segurança Social dependia da eventual receita fiscal extraordinária, é uma opção sua. Que procure passar responsabilidades para quem deu por isso, é uma dissimulação. 

Ao contrário do que diz o secretário-geral-adjunto do PS, não foi só "o PSD" que deu pelo corte. Foi o país inteiro. Foram economistas, jornalistas, académicos e toda a oposição, da direita à esquerda, a quem agora o PS exige "desculpas". É inenarrável. E, infelizmente, mais do que um caso isolado. 

Observe-se Fernando Medina, declarando convictamente que "não há parecer" quando duas colegas do mesmo governo haviam admitido, ora por escrito, ora em pessoa, que o dito parecer jurídico existia e não poderia ser divulgado. Pasme-se perante o líder parlamentar socialista, que acusa o PSD de "abuso de poder" quando foi o governo – o seu governo – que recusou entregar documentação a uma comissão de inquérito que o seu partido integra e cujo pedido também aprovou. Imagine-se que há quem defenda com ar sério que as demissões provocadas pela indemnização em inquérito não são abrangidas pelo propósito do inquérito. Leia-se a deliberação que demitiu a CEO e o chairman da TAP, que acusa os gestores públicos de "deslealdade" ao Estado quando estes não fizeram mais do que obedecer ao governo que os tutelava, sendo seguidamente enxovalhados pelo mesmo na televisão nacional. E não se ignore o processo que Medina colocou a um jornal que não fez mais do que jornalismo e que tem testemunhas em seu favor que se farão ouvir na Assembleia.

Quem é que, afinal, deve um "pedido de desculpas" a quem? Nós ou o PS? 

Quem é que, afinal, está recheado de "deslealdades"? Nós ou o PS? 

Quem é que, afinal, "abusa do seu poder"? Nós ou o PS?

Quem é que, afinal, converteu a inverdade em regra? Nós ou o PS? 

Os senhores não perceberam que, ao banalizarem a mentira enquanto prática política, a normalizaram para todos os que estão contra si e que virão depois de si. 

Ou perceberam. E simplesmente já não querem saber.

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