Com duas casas, de casa às costas e agora sem casa. A vida de três professores no fim de um ano letivo

5 ago 2023, 09:00
Professores

HISTÓRIAS CNN || Durante o mês de agosto, todos os sábados, recuperamos e revisitamos a história de pessoas que já foram notícia na CNN Portugal

Daniel Nunes está a dar aulas em Setúbal. Viveu, no início do ano letivo, o drama de centenas de professores: arranjar casa e mudar uma vida pessoal e familiar para dar aulas longe dos seus. Em maio, viu-se confrontado com mais um revés, que, apesar de esperado, lhe tem causado um enorme transtorno: o senhorio quis alugar a casa a turistas e Daniel ficou sem teto em Setúbal. Voltou a casa dos pais e a fazer incontáveis viagens entre Montemor-o-Velho e Setúbal, para terminar as aulas e para as reuniões de final de ano.

Daniel passou de andar com a casa às costas, como contava na reportagem que protagonizou em novembro, para não ter casa sequer e experimentou mais uma provação de uma profissão que poucos querem abraçar. Sobretudo os jovens da sua idade e mais novos. Comparado com a esmagadora maioria dos colegas que compõem o corpo docente das escolas portuguesas, acabou de chegar à profissão. Já deu aulas nos Açores, em Lisboa, em Setúbal… não sabe o que é trabalhar perto de casa. E ainda não é este ano que isso vai acontecer.

“Vou tentar novamente em Setúbal, porque preciso de três contratos seguidos para efetivar e aqui é quase certo que terei colocação, porque é uma das zonas do país com mais falta de professores. Vou concorrer ao país todo, mas com Setúbal em primeiro lugar”, conta.

Em Lisboa, Daniel espera não voltar a ficar colocado. Se isso acontecer, já sabe que vai “pagar para trabalhar”. Os preços da habitação na capital e nas zonas adjacentes levam metade do salário de um professor e o que sobra não dá para as viagens para ver a família, alimentação e saúde.

Daniel ficou sem casa, ainda antes do ano letivo terminar, e tem de fazer centenas de quilómetros para ir dar aulas e às reuniões de fim de ano. (Arquivo Pessoal)

A incerteza, continua a ser a palavra de ordem da vida de Daniel: Mais uma vez, o resultado dos concursos vai sair nas vésperas de iniciarmos funções e vamos ter muito pouco tempo para todo o processo de mudar de escola, para nos apresentarmos, arranjar casa e mudar a nossa vida toda.”

A descoberta de uma nova paixão

Em novembro, Susana Seixas mostrava-se capaz dos maiores sacrifícios pela profissão. Tinha a família separada: o marido a viver em Sines, ela e a filha mais nova no Vale da Amoreira e a filha mais velha em Braga. Encontravam-se muitas vezes a meio caminho, em Belmonte, onde a família mantinha, com sacrifício, uma casa que servia de porto de abrigo aos quatro. Ainda assim Susana mostrava-se profundamente apaixonada pelo ensino: “Eu quero mesmo ser professora”.

Susana descobriu a paixão de dar aulas a adultos. (Arquivo Pessoal)

O ano letivo foi passado com muitas lutas e desafios avassaladores. Susana passou de dar aulas a crianças, num colégio privado, para o ensino de adultos, muitos dos quais nem sequer falavam português. E a profissão voltou a surpreender Susana da forma mais compensadora que alguma vez sonhou: “deixei-me encantar pelas pessoas do Vale da Amoreira”. “Trabalhar com adultos fez-me conhecer uma realidade muito diferente. Por um lado, as pessoas que frequentam a escola para terem direito ao rendimento social de inserção e, por outro, as que querem aprender. Estas últimas são as mais extraordinárias! Trabalham o dia inteiro e depois, à noite, ainda vêm à escola. Depois ainda temos os que vêm aprender português... imensas pessoas que precisam de aprender a língua para poderem obter autorização de residência. É um mundo à parte, onde me sinto bem e onde a palavra ‘respeito’ faz a diferença”, conta.

Susana, que achava que não ia aguentar o embate de sair do ambiente protegido do ensino privado para ensinar numa escola que ocupa os últimos lugares do raking, sente-se fortalecida após nove meses da experiência. “Deixamos de ser professores e passamos a ser assistentes sociais e até amigos. A escola que está no último lugar do ranking faz um trabalho muito valorativo e muito importante para as pessoas que ali vivem, nomeadamente no acolhimento aos imigrantes. É muito, muito gratificante”, congratula-se.

Família de novo reunida

Susana e a família tinham de suportar o custo de quatro habitações: a de Belmonte, o quarto da filha mais velha em Braga, o quarto do marido em Sines e o apartamento na Baixa da Banheira. Só neste T2, onde Susana vivia só com a filha mais nova durante toda a semana, gastava 600 euros por mês. “Metade do meu salário”, resumia.

Despesas acrescidas que levaram Susana a desdobrar-se para conseguir pagar as contas ao fim do mês. “Tive de acumular outra escola, para ter mais algum rendimento. Sou como os meus alunos, que também trabalham em vários locais”, constata.

Os sacrifícios têm valido a pena. Susana conseguiu reunir a família toda na Baixa da Banheira: o marido encontrou emprego no Cartaxo (“longe, mas ainda assim, mais perto do que Sines. São 60 e poucos quilómetros… fazem-se bem”) e a filha mais velha terminou a licenciatura.

A filha mais nova que chegou a ficar uns meses sozinha em Belmonte e sofria com a ausência dos pais e da irmã, a ponto de isso se refletir nas notas, veio para junto da mãe e “recuperou”. “Era o apoio da mãe que precisava”, resume.

Vivem agora todos juntos e já só têm de fazer face às despesas da casa da Margem Sul e à de Belmonte.

O destino no próximo ano letivo, à semelhança do de Daniel, é incerto. Mas Susana também nutre a forte esperança de continuar na zona onde está. Concorre na segunda prioridade e isso dá-lhe esperança acrescida. “Vou nitidamente ficar nesta zona, onde há falta de professores”, acredita.

Solidariedade entre colegas

Hélder Brás também teve agradáveis surpresas nos últimos nove meses. O professor primário que deixou os filhos na Guarda e foi dar aulas para o Algarve, onde ficou a viver em casa de um tio experimentou uma solidariedade da parte dos colegas e um apoio por parte dos pais como nunca tinha sentido. “Surpreendentemente, foi um ano fácil de passar. O Algarve é uma zona turística e acabamos por ter sempre uma válvula de escape. Há sempre a hipótese de ir ver o mar e lavar a alma”, admite

“Quado vim para aqui, achei que era o único estrangeiro dentro do meu país. Mas, depois, ao ouvir os diferentes sotaques na sala de professores, percebi que havia mais colegas na mesma situação e colegas que estavam a dar aulas no Algarve há mais tempo do que eu e conseguiam aguentar, apoiando-se uns aos outros”, recorda.

Ainda assim, Hélder teve de enfrentar duros nove meses de saudades de casa. Ainda se colocou a hipótese de deslocar os filhos e de a mulher mudar de emprego e juntarem-se todos no Algarve, mas não se concretizou. E Hélder não esconde que lhes sentiu a falta.

Hélder continua a viver a mais de 500 quilómetros da família. (Arquivo Pessoal)

Apesar disso, em nome de objetivo que se chama efetivação, o professor primário não descarta a hipótese de continuar a Sul. “Os pais gostam de mim, os meninos gostam mais ainda. O retorno é um pilar que nos faz continuar e gostar de dar aulas, apesar das dificuldades. Se eu tiver que cá ficar mais um ano, dado o apoio e a solidariedade dos colegas, vou ficar. Posso pedir a recondução por mais um ano e se eu pudesse ficar com a mesma turma, assinava já por baixo”, confessa.

Mas isso ainda não é certo. Como a manifestação de disponibilidade é feita em junho e o ano letivo termina em agosto, Hélder só pode concorrer com o tempo de serviço do ano passado e isso fá-lo descer nas prioridades.

Se não ficar na mesma escola, há de, com certeza, ficar pelo Algarve, dada a falta de professores que há na região. À semelhança do que acontece em Lisboa, poucos são os que querem dar aulas numa região que vive do turismo, onde o preço da habitação supera as possibilidades proporcionadas pelo salário de um professor e onde o risco de ficar sem teto quando começa a época turística é grande.

A ansiedade de uma luta que também foi sua

Os nove meses que separam a primeira reportagem com Susana, Hélder e Daniel deste artigo foram de grande conturbação nas escolas. As greves e os protestos quase diários de professores e assistentes operacionais trouxeram uma inevitável ansiedade a toda a comunidade escolar. Incluindo aos professores.

Apesar de a bandeira mais mediatizada dos professores ser a recuperação do tempo de serviço – os já conhecidos 6 anos, 6 meses e 23 dias, e isso não lhes dizer diretamente respeito, há outras reivindicações na luta que, dizem, deviam dizer respeito a todos, incluindo pais e alunos. “Se não lutarmos, não somos só nós que perdemos. Perde a escola pública. Perdem os nossos alunos”, justifica Hélder Brás.

“Sempre tive a preocupação de alertar os pais com a antecedência de que iriamos entrar numa luta mais intensa. E, surpreendentemente, os pais encararam muito bem. Os pais estão na escola, estão com os professores. Eles percebem bem o que é estar longe da família. Estiveram sempre, sempre, sempre do nosso lado. Quando às vezes a vontade esmorecia um bocadinho, eram os próprios pais que nos davam força. O próprio Governo percebeu que a estratégia de colocar os pais contra os professores não resultava”, garante Hélder.

Daniel Nunes não tem dúvidas de que o próximo ano letivo vai ser igualmente intenso em termos de luta sindical. “Não temos qualquer gosto em ter este tipo de ações. Mas foi todo um acumular de situações que levou a que os professores explodissem. Uma luta que não tem estado parada nos últimos anos, mas que este ano se intensificou um bocadinho e, infelizmente, vai continuar para o ano”, antevê.

Daniel, que tem estado também envolvido nas lutas sindicais de uma forma mais direta, sublinha que há falta de vontade de negociar por parte do Governo. E ressalva que é preciso continuar, em nome da escola pública: “Faltam psicólogos, assistentes operacionais, condições materiais nas escolas. Falta de tempo para ser professor. Passamos o tempo em tarefas burocráticas, com excesso de alunos, tudo falha na escola pública. E a culpa não é nossa.”

Relacionados

Educação

Mais Educação

Patrocinados