Os 'double haters' vão "decidir a contragosto" quem vai ser o próximo presidente dos EUA (em 2016 escolheram Trump)

7 mar, 18:00
Trump vs. Biden (Getty Images)

Double haters são eleitores que não gostavam nem de Trump nem de Clinton em 2016. De quem é que eles gostam menos desta vez?

Cada eleição presidencial nos Estados Unidos parece ter sempre o seu próprio “grupo swing”, conjunto de eleitores indecisos que acaba por definir quem chega à Casa Branca e quem fica pelo caminho. Em 2004 foram os chamados “pais NASCAR”, sulistas brancos de meia idade que ditaram a reeleição do republicano George W. Bush e a derrota do democrata John Kerry. Antes disso, em 1996, foram as “soccer moms”, mulheres brancas com filhos a viver nos subúrbios, que contribuíram em larga medida para a eleição do democrata Bill Clinton na corrida contra o republicano Bob Dole. 

Noutras eleições, houve subgrupos a angariar diferentes nomes de batismo pelos media consoante a sua demografia e intenções de voto. E em alguns desses sufrágios, ao contrário do que aconteceu em 1996 ou 2004, acabaram por ter pouco peso – vejam-se os “avozinhos boomers” em 2016 ou as “mães Walmart” que, quatro anos antes, não conseguiram entregar a vitória a Mitt Romney na corrida contra o presidente Barack Obama.

Nas eleições que deram a presidência a Donald Trump, em 2016, os "avozinhos boomers" não tiveram grande impacto na votação, mas a inimizade para com Hillary Clinton entre democratas e indecisos contribuiu e muito para a vitória do empresário. Mas quatro anos depois, na disputa Biden contra Trump – que, dissipadas todas as dúvidas, vai repetir-se em novembro – só 3% dos norte-americanos recenseados compunham os chamados “double haters”, eleitores que, independentemente da sua filiação, não se reveem em qualquer dos candidatos a disputar a Casa Branca.

Esse não parece ser o caso este ano, com sondagens recentes a indicarem que, a oito meses da derradeira ida às urnas, há quase 20% de “double haters” e cada vez mais analistas a antecipar que vão ser eles a decidir quem regressa à presidência no início de 2025. Entre os analistas conta-se Joshua Green, jornalista da Bloomberg que escreveu assim: “A corrida está suficientemente renhida e há mais do que 'double haters' suficientes para parecer quase certo que serão eles que, a contragosto, vão escolher quem será o próximo presidente”.

Esta análise deve-se sobretudo aos resultados da superterça-feira, momento-chave do processo de primárias nos Estados Unidos que este ano envolveu votações em 15 dos 50 estados norte-americanos. Com a totalidade dos votos contabilizados, ficou assim: Donald Trump e Joe Biden vão ter um novo frente a frente em novembro – mesmo que ainda lhes faltem algumas centenas de delegados para atingirem a fasquia mínima (220 no caso do republicano, 472 no caso do democrata). 

A contribuir para esta certeza estão vários factores, a começar pela derradeira rival de Trump na disputa pela nomeação republicana: Nikki Haley venceu em apenas um dos 15 estados com eleições diretas na madrugada de ontem - aconteceu no Vermont. Horas depois de anunciados os resultados, e dado que angariava apenas 89 delegados até agora (contra 995 para Trump), chegou a inevitável desistência. “Cabe agora a Donald Trump conquistar os votos daqueles que pertencem ao nosso partido e, além deles, dos que não o apoiam”, disse Nikki Haley numa curta conferência de imprensa, na qual não adiantou se apoia oficialmente o rival. “TRUNCADA”, escreveu Trump na sua rede social logo a seguir.

Haley desiste e deixa o caminho aberto a Donald Trump – mas sem o apoiar para já (Richard Ellis/EPA)

Pró-alguém? Não, anti-Trump/Biden

“Se a noite de terça-feira cimentou alguma coisa”, escrevia o Politico antes de Haley desistir, “foi que qualquer hipótese remanescente de Trump ou Biden não avançarem nas primárias se tornou objeto de sonho de fãs de ficção científica. Grandes grupos de eleitores de ambos os partidos não apreciam a ideia de uma revanche de 2020. E agora vão ter de se habituar a essa ideia”.

A demonstrá-lo estão os 30% de votos que a ex-embaixadora de Trump na ONU conquistou em alguns dos estados onde perdeu, mesmo só tendo derrotado o rival num. “A maioria dos votos em Haley são votos anti-Trump, não são votos pró-Haley”, destaca Mike Madrid, estratego republicano e cofundador do Lincoln Project, citado pelo mesmo jornal. Na barricada oposta, o sentimento é idêntico. “A escolha que enfrentamos neste momento não é ótima”, diz sob anonimato o líder de uma distrital do Partido Democrata num dos estados que foi a votos. “Preferia que nenhum deles [Trump e Biden] fosse candidato.”

Passemos dos sentimentos aos números. A 25 de janeiro, uma sondagem da Reuters/Ipsos junto de 1.250 eleitores adultos, com uma margem de erro de 3 pontos, mostrava que 18% dos eleitores não querem votar em nenhum dos dois candidatos à presidência. “No geral, o inquérito deu numerosos sinais de que os eleitores não estão satisfeitos com as escolhas”, indicou a agência com base nos resultados da sondagem. “70% dos inquiridos – incluindo cerca de metade dos democratas – concordam com a afirmação ‘Biden não devia tentar a reeleição’ e 56% dizem que Trump também não devia ser candidato, entre eles cerca de um terço dos republicanos.”

Há duas semanas, a 21 de fevereiro, uma nova sondagem da Universidade Marquette junto de 882 eleitores recenseados, com uma margem de erro de 4,5 pontos percentuais, mostrava uma tendência semelhante. “Para Biden e Trump, 17% dos inquiridos são desfavoráveis aos dois candidatos. O número de eleitores que é desfavorável a ambos continua próximo dos 20% desde novembro de 2021. Biden tinha uma vantagem em termos de favoritismo face a Trump na maioria das primeiras sondagens, mas Trump tem mantido essa vantagem nos três últimos inquéritos de opinião.”

O candidato independente Robert F. Kennedy Jr., sobrinho de JFK, pode diluir ainda mais os votos nalguns estados-chave (Meg Kinnard/AP)

Não é uma questão de somenos

Historicamente, sondagens tão distantes da ida às urnas não são particularmente proféticas. Como indica Nate Cohn, do New York Times, muitos eleitores não estão realmente focados nas presidenciais para já. “Mas o facto de estas sondagens não serem necessariamente preditivas não significa que não devam ser levadas a sério. Os eleitores conhecem estes candidatos muito bem. Biden é presidente, Trump é ex-presidente e ambos estão na vida pública há décadas. E com base no que têm visto, os eleitores estão a dizer que não gostam de Biden e que não o consideram um presidente eficaz. E esta não é uma questão de somenos.”

Em teoria, Biden devia ser o candidato favorito, continua Cohn. “É um presidente candidato à reeleição com uma economia saudável q.b. como pano de fundo e um opositor acusado de múltiplos crimes federais. Contudo, de acordo com as sondagens, Trump parte para as eleições gerais ao leme – um avanço modesto mas claro. Ao longo dos últimos quatro meses liderou quase todas as sondagens no Michigan, Nevada, Arizona e Georgia, a par de estados que conquistou em 2020 – o suficiente para lhe dar 283 votos no Colégio Eleitoral e a presidência. Ao longo do último mês, também liderou a maioria das sondagens nacionais, incluindo o inquérito de opinião New York Times/Siena College divulgado no último fim de semana.”

A aversão a Biden voltou a ser notória nesta superterça-feira, com uma repetição do que aconteceu há uma semana no Michigan, quando mais de 100 mil eleitores – 13% do eleitorado democrata daquele Estado – optaram por votar “sem compromisso” nas primárias do partido para não darem o seu voto ao atual presidente, no que analistas dizem ser uma reação ao contínuo apoio da atual administração a Israel na guerra contra a Faixa de Gaza, que já vitimou, segundo as autoridades de Gaza, mais de 30.700 pessoas, sobretudo mulheres e crianças. 

Apesar de ter vencido nos 15 estados, Biden enfrentou votos de protesto de dimensão semelhante em vários deles, a começar pelo Minnesota, onde o número de democratas “não comprometidos” foi ainda maior do que no Michigan – quase 19%. “Os números desta noite mostram que o presidente Biden não conseguirá reconquistar os nossos votos com mera retórica”, disse em comunicado Asma Nizami, porta-voz do grupo de eleitores não-comprometidos do Minnesota, no rescaldo das primárias. “Não basta a Biden usar simplesmente a palavra ‘cessar-fogo’ enquanto financia as bombas que matam civis todos os dias [em Gaza].”

Com ligeiras variações, Biden foi alvo de iguais votos de protesto na Carolina do Norte (12,7% “sem preferência”), no Massachusetts (9,4% “sem preferência”), no Colorado (8,1% “não comprometidos”), no Tennessee (7,9% “não comprometidos”) e no Alabama (6% “não comprometidos”). Num sinal igualmente embaraçoso, e apesar de não haver delegados em jogo no caucus da Samoa Americana, Biden ficou empatado com Jason Palmer, um empresário praticamente desconhecido nos EUA continentais.

Nesta periclitância de intenções de voto e indecisões aumenta a preocupação com o impacto que um terceiro candidato às presidenciais pode ter no resultado final – havendo vários potenciais, o destaque vai para um independente que pertence a uma das mais longas e famosas linhagens políticas da América. “Não há uma grande onda de apoio a nenhum deles, mas Robert F. Kennedy Jr. está lentamente a conquistar acesso a suficientes urnas para potencialmente atrapalhar a disputa [Trump-Biden]”, indica a CNN Internacional

Na noite da superterça-feira, a equipa de campanha do sobrinho de JFK anunciou que conseguiu assinaturas suficientes para pôr o nome do independente nos boletins de voto do Nevada – um Estado que, a par do New Hampshire, Biden não pode mesmo perder se quiser ser reeleito. Neste momento, parece quase certo que Kennedy será candidato em pelo menos seis estados, vários deles campos de batalha de redobrada importância. Até agora, as autoridades eleitorais do Utah foram as únicas a confirmar que o seu nome vai constar dos boletins de voto naquele Estado, mas há movimentações financeiras para garantir que também estará nos boletins do Arizona, Carolina do Sul e Georgia.

Com cerca de um quinto de “double haters”, o surgimento de um terceiro candidato ameaça diluir ainda mais os votos. E não é claro o que é que estes eleitores vão fazer quando chegarem a 5 de novembro – podem votar em Trump para não darem o seu voto a Biden, como aconteceu em 2016 com Clinton; podem apoiar um terceiro candidato, como Kennedy; ou podem simplesmente ficar em casa e não ir votar. E, neste momento, qualquer desses cenários faz pender a balança a favor de Trump.

E.U.A.

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