"Por favor, não te metas nisso", disse-lhe o pai. Mas ele meteu-se mesmo. Um outro olhar sobre Paulo Raimundo

24 fev, 18:00

Enfrenta as primeiras eleições nacionais como secretário-geral do PCP, mas a mãe quer uma garantia: que não falte ao almoço de domingo, mesmo que venha a ser primeiro-ministro

Tomás, Matilde, Maria Flor, Débora e Mia Cantigas. Tudo personagens de um desenho onde também está Paulo Raimundo, embora com mais cabelo, como o próprio brinca. São os três filhos, a mulher e a cadela da família, respetivamente.

O secretário-geral do PCP esteve no Dois às 10, onde foi entrevistado por Cristina Ferreira e Cláudio Ramos, abrindo um lado menos comum da política.

Discreto impopular (como gosta)

Praticamente anónimo até 2022, o nome surgiu como uma surpresa para a sucessão a Jerónimo de Sousa. Para liderar os comunistas surgia um homem de Cascais, mas cuja família cedo se mudou para Setúbal.

E foi na cidade a sul da Capital que foi padeiro, carpinteiro, monitor… até se vestiu de palhaço em festas infantis – chegou mesmo a pensar ser ator. Mas nada disso, sobretudo a partir do secundário.

É nos anos finais de formação que lhe começa a despertar o lado mais reivindicativo, com uma forte ligação à luta estudantil e a atenção pelas desigualdades sociais, temas que o levaram a filiar-se na Juventude Comunista Portuguesa, completando este ano 20 anos de funcionário do PCP.

Discreto, é verdade, mas esteve sempre na linha da frente em todas as decisões do partido. “Sempre fui mais de empurrar os outros para a frente, mas pronto, agora não pode ser assim”, conta, admitindo que ficou “um bocado à rasca” quando lhe disseram que tinha de avançar para a liderança do partido.

Ganhou logo consciência de a vida ia mudar e até aproveitou para brincar com o “camarada Jerónimo”, a quem lembrou como “entalou” tanto a vida, sugerindo que ali recebia a paga de tudo isso.

Agora já se acostumou: “Acho que, passado este tempo, acho que é mais fácil”, afirma, reconhecendo aspetos positivos e negativos, mas destacando que a tarefa é mais simples se se mantiver igual a si próprio.

“Há um ano e meio que sou secretário-geral do PCP, mas tal e qual como hoje, tal e qual como ontem”, garante, contando que no dia anterior à entrevista até foi buscar uma bilha de gás, uma vez que se tinha acabado em casa.

Um bacaulhauzinho com leitura

Ainda Paulo Raimundo não se esquece de onde passa, como um restaurante que o marcou. E por isso mesmo faz sentido ouvir quem trata dele. Jorge e Rosa, donos do Botafogo, foram ao Dois às 10 preparar um famoso “bacaulhauzinho à Braga”.

“Foi o meu refeitório, o meu local de conversa de muitos, muitos anos. No mínimo quatro, quando estive em Braga”, explica, lembrando que foi durante o período na cidade minhota que nasceu o seu primeiro filho.

“Ou seja, eu estive lá dois anos sem o meu filho ter nascido, depois o meu filho nasceu e dois anos depois é que eu regressei, neste caso, a Lisboa”, continua, recordando primórdios da infância, quando os pais trabalhavam – chegaram mesmo a viver no estádio - para o Estoril Praia, clube de futebol da linha de Cascais que ainda hoje está na primeira divisão e que é um dos históricos nacionais.

São dois livros que o marcam. Fazem-lhe lembrar aspetos da infância, da altura em que brincava com os amigos e via um cruzar de realidades. “Toda essa infância de pé descalço, essa infância das árvores, de coisas que nem se podem contar, não ficam bem”, desabafa, admitindo “muitas dificuldades, muitas privações”, mas que eram superadas, deixando “espaço para os sonhos”.

Apanhar marisco com a mãe

Foi no meio dessas dificuldades que deixou a escola mais cedo. O ensino secundário só o terminou à noite.

Antes disso, se lhe perguntam o que fez como primeiro trabalho, recorda a apanha do marisco com a mãe, nomeadamente de berbigão.

“Isso não é nada fácil”, assume, embora admitindo que “gostava muito porque tínhamos de bater uma plataforma de madeira, que chamávamos de carrinho, para nos podermos deslocar em cima da lama”.

“Parecia que estava a fazer ski. Nunca fiz ski na vida, mas a imagem mais próxima do ski que tenho é aquela”, acrescenta.

Depois disso foi padeiro, carpinteiro… nesta última até se “safava”. Ainda hoje consegue fazer um móvel e tem “muito gosto” nisso.

“Até é uma coisa que me liberta, às vezes, a pressão. Claro, às vezes tens pressão e isso ajuda-me a libertar-me. E depois tive uma atividade profissional da qual eu tenho um gosto particular e uma imagem riquíssima que foi animadora”, continua.

Fala da experiência como animador cultural em Setúbal, no bairro da Bela Vista, onde trabalhou com várias crianças. “Fui palhaço. Às vezes posso continuar assim”, brinca, explicando que ensinou “alguma coisa às crianças”, mas que de volta recebeu “alegria”.

Foi nessa altura que entrou no programa “A Filha da Cornélia”, transmitido pela RTP. Uma das senhoras que trabalhava com Paulo Raimundo disse-lhe para irem. E foram. “Ganhei mil contos”, recorda, o que à conversão atual dá cinco mil euros, mas na altura era mesmo muito dinheiro.

Com esse dinheiro abriu uma conta e tirou a carta. “Sentimo-nos homens. Com mil contos pensei ‘nunca mais vai acontecer na vida’”, lembra, contando que também comprou um Renault 5 GTR 1300. “Vermelho, bonito, em segunda mão”. Um carro que durou dez anos.

"Por favor, não te metas nisso"

Foi o que o pai lhe disse quando contou à família que ia subir a secretário-geral do PCP. “Por favor, não te metas nisso”. Paulo Raimundo lembra a forma carinhosa como o pai o disse, admitindo que diria o mesmo a um filho seu.

Mas a mãe também sofre. “Vive bem com os comentários positivos… com os negativos, é mãe”, conta.

E é aí que entra Teresa. Reservada, como o filho, a mãe de Paulo Raimundo garante que não refila com ele, que acredita nas suas capacidades e está feliz com a escolha, mas quer uma garantia: na eventualidade de o líder comunista vir a ser primeiro-ministro, o almoço de domingo não pode faltar.

“O Paulo é um rapaz, um senhor, um homem digno, com pensamentos muito positivos, com capacidades muito boas”, continua, confessando que ficou preocupada quando o filho foi escolhido para o cargo.

“Não foi por não acreditar nele, mas sim por preocupação. Mas hoje estou feliz e vejo que as coisas vão bem”, conclui, brincando que pelo menos os votos lá de casa estão garantidos.

Serão mais, com certeza, e Paulo Raimundo vai ser um dos estreantes no Parlamento.

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