Nas mãos de muitos dos mais novos, os livros deram lugar aos telemóveis e às consolas. As histórias de encantar deram lugar aos vídeos do YouTube e aos jogos de computador. Mas ainda é possível resgatar leitores. Pais, professores, jovens e autores explicam como
Nem todas as histórias contadas por Rui Beato começam por “era uma vez”. Na mala que leva de escola em escola, cabem tantas vezes como tantas as histórias que conta. O professor bibliotecário do Agrupamento de Escolas do Alto dos Moinhos, na Terrugem, Sintra, é um apaixonado pelo ensino e por literatura infantil. Já lecionou Educação Física, depois foi professor titular do primeiro ciclo e foi nessa fase que as histórias começaram a fazer parte das aulas. O ensino da Língua Portuguesa, da História e da Matemática passaram a ter outra dimensão.
“Tirei uma especialização em literatura infantil. Tirei várias formações em teatro e aproveitei essas valências para as minhas aulas, inventando histórias sobre os conteúdos das minhas aulas. Escrevia histórias diariamente para os meus alunos”, começa por contar na conversa com a CNN Portugal.
Agora é professor bibliotecário e percorre as escolas do agrupamento a contar histórias e a trazer as crianças e os jovens para o mundo dos livros. Mas o seu trabalho em prol da divulgação da literatura não se fica pelo concelho de Sintra. Vai de escola em escola, pelo país inteiro, com o projeto “Eram Tantas Vezes”. O objetivo é o mesmo: levar histórias às crianças e trazer as crianças para a literatura.
“O professor do primeiro ciclo está a perder a comunicação com os alunos e a comunicação é fundamental. Os alunos não começam a ganhar gosto pela leitura se os professores não criarem esse gosto nos alunos. E os professores não têm tempo para desenvolver atividades com os alunos que criem gosto pela leitura. A burocracia, a falta de tempo, os professores estão cansados e estamos a atravessar um processo de conflito com o Ministério que tira vontade de fazer atividades diferentes”, lamenta.
Os amigos e os cúmplices do professor
Quando vai às escolas, falar de algum dos quatro livros que já escreveu ou de livros de outros autores, Rui Beato nunca vai sozinho. No projeto “Eram Tantas Vezes” vai acompanhado do ilustrador Nuno Silva e de objetos e de instrumentos musicais e de sons e de imagens e de marionetas. Já se tornaram amigos, unidos na missão de atrair as crianças para a leitura. Nas escolas de Sintra não leva Nuno Silva, mas os outros cúmplices nesta missão vão sempre.
“É criar o chamado multiverso à volta do livro. Um vídeo, uma música, uma atividade de artes plásticas… Por exemplo, no livro “MU Danças a Vaca Dançarina” personifiquei a vontade que tinha na infância de ser bailarino e não fui, porque gozavam comigo e diziam que era uma coisa efeminada. Mas eu sempre quis ser bailarino. E inventei uma personagem que tinha tudo para não ser bailarina e fartou-se de viajar e aprendeu as danças de vários países. Quando levo o livro às escolas, vou vestido de vaca e os miúdos acham imensa graça”, exemplifica.
“O professor tem de criar um ambiente propício à leitura e começar por algo diferente do livro, um pequeno vídeo, uma história, uma efeméride, uma curiosidade”, acrescenta.
Rui Beato não duvida que o segredo para trazer os mais jovens para a leitura está em ir ao encontro do que lhes interessa. Uma tarefa árdua, numa altura em que “as crianças são assoberbadas por informação, através do telemóvel e das redes sociais”. E é preciso sair dos livros para fazer os outros entrar neles: “Chamo-lhes os livros superstar. Aqueles livros que podem trazer um filme, uma música, um teatro, uma atividade… Se nós quisermos todos os livros podem ser livros superstar.”
“Sócios da biblioteca desde bebés”
Ana Paiva também é professora do primeiro ciclo, embora este ano os concursos de docentes a tenham deixado até agora no desemprego. Também ela sempre dedicou tardes inteiras às histórias com os alunos: “Ligo as histórias a outras atividades… expressões plásticas, expressão musical… sempre articuladas com as histórias.”
Mas é como mãe que Ana Paiva, de 42 anos, fala à CNN Portugal. Tem dois filhos, um de cinco e uma de 10 e ambos apaixonados pelos livros. “O pequenino ainda não lê, mas gosta que lhe leiam. E fica chateado quando há alguma mudança na nossa rotina e vamos para a cama mais tarde e já não conseguimos ler”, conta.
Ana admite que Teresa e Pedro têm exemplos de leitores ávidos lá em casa. “Eu própria gosto muito de ler. Têm o exemplo de sempre me verem a ler muito. Eles são sócios da biblioteca desde bebés. A foto que eles têm no cartão da biblioteca é de bebé”, revela.
Vivem em Santa Maria da Feira, onde, louva, “a biblioteca municipal é muito ativa”. A família não falha as várias atividades que a biblioteca proporciona e todos os fins de semana são visitas assíduas. Nunca voltam para casa de mãos vazias. Teresa já escolhe sozinha os livros que lhe hão-de fazer companhia durante a semana. Ainda se deixa deslumbrar pelos clássicos que já a mãe gostava de ler, como as coleções “Uma Aventura”, “O Clube das Chaves” ou “Os Sete”. Mas também gosta de ler títulos mais recentes, como “O Diário de uma Totó” ou “A Avozinha Gangster”. “Quando começa a ler uma coleção, gosta de ler os outros de seguida”, revela a mãe.
“Os miúdos não querem ser polémicos”
Nuno Caravela, 55 anos, é o autor de uma das coleções que os jovens entre os sete e os 12 anos mais gostam de ler – “O Bando das Cavernas”. O primeiro Bando saiu da caverna para as estantes dos portugueses há 11 anos. Desde então, já vendeu cerca de um milhão de livros. São 48 histórias, se contarmos só com os livros… tradicionais. “O Bando é uma espécie de um mundo que fomos criando. Além das histórias, há os livros históricos, ‘Os Heróis do Mundo’, em que trabalhei com uma historiadora, e falamos de personagens e acontecimentos históricos relevantes. Tira um pouco de peso à História, mas temos sempre um quadro, que é a ‘enciclopedra’, com a informação correta e séria para ensinarmos alguma coisa e despertarmos também o gosto pela História. Já vai no número 12. E temos também as novelas gráficas. A banda desenhada é uma linguagem que leva muitos miúdos com alguma resistência à leitura aos livros. Já vamos para o terceiro volume”, contabiliza.
E cada livro do Bando é sucesso garantido. Nuno Caravela acredita que a chave está em algumas premissas que diz seguir “religiosamente”. “O desafio do Bando era precisamente criar livros que pusessem os miúdos a ler. Acredito que a chave começa por adequar a faixa etária aos conteúdos que estou a escrever. Os assuntos têm de ser adequados à idade. Há assuntos que são polémicos e poderiam estar mais explorados, mas há um tempo para tudo. Há um tempo para as pessoas se deslumbrarem, para as pessoas se divertirem e depois para se informarem. E nesta faixa etária, dos sete aos 12, equilibrar a imagem com o texto também é fundamental. Tenho a facilidade de ser o ilustrador dos meus próprios livros. Nunca tenho mais de X linhas por página, dê lá por onde der. E, depois, deixo sempre algo em aberto para a página seguinte, que deixe o leitor curioso. E o fim tem de ter aquela chama que surpreenda”, explica.
Pai de uma jovem de 23 anos, Nuno Caravela considera que a chave para ligar os mais novos aos livros está em “encontrar livros que surpreendam” e “adequar os livros certos, com os assuntos certos, na idade certa”. “Não se deve deixar de falar de qualquer tema, mas ter cuidado com o timing em que se fala. Os miúdos não querem ser polémicos. Querem é ser felizes e divertirem-se a ler! É muito difícil não ser polémico e manter no Bando um oásis de felicidade para os miúdos”, confessa.
A BookToker “super fã de thrillers e romances”
E se a relação das crianças e adolescentes com os livros atravessa uma crise, há também jovens que têm nos livros vários mundos além do mundo. Iris Bicho tem 20 anos e alimenta um canal no TikTok sobre literatura. Lê mais de uma dezena de livros por mês e não se cansa. A página na rede social que começou por ser um registo para si própria, tornou-se num fenómeno com mais de 12 mil seguidores e agora Iris até já vai a escolas promover o gosto pela leitura.
Sabe de onde lhe vem a paixão pelos livros: “A minha mãe sempre gostou de ler também, sempre fui à hora do conto na FNAC aos domingos de manhã e sempre estive rodeada de livros em casa.” Mas a irmã de Iris, com 15 anos, não parece seguir-lhe os passos: “A minha mãe gosta de ler, o meu pai não. E a minha irmã parece ter puxado ao meu pai. Tem mais de 800 livros em casa e não pega em nenhum.”
Iris admite que já assumiu a página no TikTok como uma missão. “Quero tentar chegar a várias pessoas, de várias idades. Tento que a minha página chegue a vários tipos de público. Nunca pensei que fosse chegar a tantas pessoas. Hoje em dia é comum ser abordada na rua por quem me segue e me vem dizer que leu determinado livro porque eu o recomendei”, diz.
“Mas também ganho muito. Criei o TikTok por não ter ninguém com quem falar sobre os livros. Agora, para além de influenciar pessoas, também sou influenciada todos os dias. É mutuo”, garante.
Se há conselho que Iris pode deixar a pais e professores, nesta missão de atrair os jovens para a leitura, é “não obrigar ninguém a nada!”. “Não é a forçar as crianças ou os jovens a ler livros que acho que são adequados ou que estão no Plano Nacional de Leitura que os vou atrair”, resume.
“É preciso mostrar que ler é algo divertido. Começar por livros que já se tornaram filmes ou séries, por exemplo, pode ajudar”, acrescenta.
“A leitura tem de ser um prazer e não uma imposição”
Maria João Diogo é de uma geração diferente da de Iris. Tem 46 anos e é apaixonada pelos livros. Há mais de uma década que alimenta um blogue sobre literatura, A Biblioteca da João. Do blogue, que “era só para registo próprio”, para as redes sociais foi um salto e também ela assume como missão a divulgação dos livros e da literatura.
É mãe de um rapaz de 13 anos, que, lamenta, não tem “a mesma aptidão para a leitura da mãe”. Lamenta, mas não a preocupa. Tem a certeza que o tempo do amor dos filhos pelos livros virá. “Ele lê, mas o foco dele neste momento não está nos livros. A leitura tem de ser um prazer e não uma imposição. Eu nunca o obriguei a ler, mas sempre lhe incentivei a leitura. Leio para ele, desde os seis meses. Assim que começou a aprender a ler, quis ser ele a começar a ler sozinho. Ele durante um dia não pega num livro, mas se estiver de castigo [sem tecnologias], ele lê”, revela.
E se há conselhos que possa dar a outros pais, Maria João não tem dúvidas em dizer-lhes: “Sejam exemplo!”. “Dar o exemplo é a melhor coisa que se pode fazer. Acredito que se os filhos virem que os pais são leitores regulares, isso vai despertar-lhes a atenção.”
“Não obrigar é fundamental. A partir do momento em que veem os livros como obrigação, deixa de ter interesse”, reforça, para acrescentar que, quando se quer criar um novo leitor, há outros aspetos mais importantes a valorizar além do conteúdo: “Óbvio que o conteúdo é importante e há conteúdos mais adequados para cada idade, mas se começarem pelos chamados livros chiclete, que os divertem, porque não?”
Maria João não vê as tecnologias e as redes sociais como inimigos da leitura. Antes pelo contrário. “Com as redes sociais, a leitura não é necessariamente uma tarefa solitária. Dá lugar à partilha de opiniões, de sugestões. E isso é bom!”, aponta.
Além disso, louva o trabalho feito pelas editoras e pelos autores nacionais em benefício da leitura e dos leitores. “Há cada vez mais autores nacionais a escrever e a escrever muito bem. E o facto de eles se predisporem a responder a mensagens, a estar com os leitores, a conversar com eles traz muita gente para a leitura”, analisa.
Os conselhos do professor
A pedido da CNN Portugal, o professor Rui Beato dá alguns conselhos para pais, professores e futuros leitores. Dicas que podem ser úteis para atrair os jovens para o mundo dos livros.
“É importante fazer uma ponte entre o que está dentro do livro e o aluno. A maior parte dos alunos lê por obrigação o que está no currículo… Fernando Pessoa, os Lusíadas… lê pela nota e depois esquece, porque foi obrigado. Não lhe disse nada”, observa.
Assim, para atrair novos leitores, aconselha:
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Não obrigar a criança a ler. “Forçar a leitura não resulta e pode até ser contraproducente”;
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Comunicação. "É preciso comunicar com emoção, para suscitar o interesse da criança”;
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Ler em voz alta para os filhos e para os alunos. “Ler em voz alta para eles ouvirem e promover atividades de leitura em voz alta pelas próprias crianças”
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Pedir aos alunos que peguem num livro de que gostem muito e que falem dele aos colegas. “Quando é a criança a escolher o livro que quer, ela vai começando a escolher e a seriar a informação. E isso é importante para o seu crescimento”;
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Fazer atividades “para fora do livro”. Rui Beato considera que um livro pode e deve ser apenas um ponto de partida, para algo maior e mais abrangente.
As sugestões da BookToker
Iris Bicho considera que o livro certo na idade e na altura certas pode ser o ponto que espoleta o amor pelos livros. Por isso, deixa algumas sugestões para as diferentes idades dos jovens que a seguem:
10-12 anos
A coleção “Colégio do Templo”, de Nuno Bernardo
A coleção “O Diário de Um Banana”, de Jeff Kinney
A coleção “O Diário de Uma Totó”, de Rachel Renée Russell
12-14 anos
A coleção “Harry Potter”, de J. K. Rowling
A coleção “Carolina”, de Patrícia Reis
A série de livros “Percy Jackson”, de Rick Riordan
14-16 anos
A série de livros “Heartstopper”, de Alice Oseman
“O Verão em que Quebramos Todas as Regras”, de K. L. Walther
“O Guia de uma Rapariga Cubana para o Chá e o Amanhã”, de Laura Taylor Namey
16-18 anos
“Os Jogos da Fome”, de Suzanne Collins
“O Amor Não Morreu”, de Ashley Poston
Os livros de Freida McFadden e de Holly Jackson