61% dos portugueses não leram qualquer livro em 2020

15 fev 2022, 23:59

Inquérito às Práticas Culturais dos Portugueses, realizado pelo Instituto de Ciências Sociais com a Fundação Calouste Gulbenkian, mostra como estas práticas estão relacionadas com a idade, grau académico e rendimentos. 90% das pessoas vê televisão mas apenas 28% frequenta museus e só 6% vai a concertos de música erudita

No ano de 2020, 61% dos portugueses não leram qualquer livro impresso e 27% leram apenas entre um e cinco livros. Os dados sobre os hábitos de leitura dos portugueses são bastante desanimadores quando comparados, por exemplo, com Espanha, onde o número de pessoas que não leu nenhum livro durante um ano ronda os 38%. E são preocupantes, afirma o investigador José Machado Pais: "Sabemos que existe uma correlação forte entre a leitura de livros e os restantes consumos culturais. Um leitor de livros tem uma forte propensão para se interessar por outras práticas culturais". Por isso, conclui, "todas as iniciativas de incentivo à leitura são bem vindas, seja nas escolas ou nos média".

As desigualdades nas práticas culturais dos portugueses refletem as desigualdades existentes nos rendimentos, no nível de educação e na idade. Os mais velhos, os que têm menos escolaridade e os que têm menos rendimentos lêem menos livros, vêem menos filmes e espetáculos, visitam menos museus e monumentos e, de uma forma geral, consomem menos cultura.

Fica claro também que, apesar de tudo, a escola tem um papel fundamental no combate a estas desigualdades. E, de uma forma por agora menos significativa, a Internet pode também ter um papel importante, sobretudo após a experiência pandémica.

Estas são algumas das principais conclusões do Inquérito às Práticas Culturais dos Portugueses 2020, realizado pelo Instituto de Ciências Sociais (ICS) da Universidade de Lisboa, com financiamento da Fundação Calouste Gulbenkian, que será apresentado esta quarta-feira numa sessão pública na sede da fundação em Lisboa.

As conclusões não surpreenderam os coordenadores deste inquérito - José Machado Pais e Pedro Magalhães, professores e investigadores do ICS, e Miguel Lobo Antunes, programador cultural - mas levantam muitas inquietações. Significa isto que os bilhetes para o teatro ou os livros são demasiado caros? Ou significa que os portugueses não têm na cultura uma prioridade e preferem gastar dinheiro noutras coisas? Como poderemos alargar o público da cultura? Que medidas políticas podem ser tomadas? O que está ao alcance dos programadores, criadores e gestores culturais?

Com trabalho de campo realizado nos últimos meses de 2020 e adaptado de forma a traduzir as mutações em curso durante a pandemia, o inquérito está assente em três pilares: a receção cultural, a prática artística e indicadores sobre o que conduz ou bloqueia o consumo cultural. O objetivo era sobretudo conhecer os hábitos culturais dos portugueses com idade superior a 15 anos em todos as regiões do país e detetar os seus constrangimentos. Estas foram algumas das coisas que ficámos a saber:

Internet: o mundo dos mais jovens

O uso da Internet ronda os 100% entre os inquiridos dos 15 aos 34 anos. No entanto, quando consideramos a população portuguesa como um todo, a percentagem de inquiridos que utiliza a Internet fica-se pelos 71% - muito aquém da média alcançada pelos países da UE-27 (87%, para inquiridos dos 16 aos 74 anos, segundo os dados do Eurostat 2021). Razões de natureza demográfica (a população portuguesa é uma das mais envelhecidas da UE-27), educacional e económica poderão explicar esta divergência. É preciso ter em conta, primeiro, que apenas cerca de um em cada quatro dos inquiridos com 65 ou mais anos de idade usa a Internet.

Em média, os inquiridos passam mais tempo na Internet para trabalho ou estudo (18 horas por semana) do que por lazer (10 horas semanais). No entanto, a percentagem dos que se ligam diariamente à Internet por lazer (82%) é dupla em relação aos que a ela acedem para trabalho/estudo (41%).

Televisão e rádio: à procura de informação

A proporção de inquiridos que vêem diariamente televisão (90%) é mais do dobro dos que diariamente ouvem rádio (40%) ou se ligam à Internet (41%).

Mais expostos à televisão encontram-se os idosos (65 ou + anos) e os inquiridos de rendimentos mais baixos, em claro contraste com os mais jovens (15 a 34 anos), os mais instruídos e os de mais elevados rendimentos.

Os programas de televisão habitualmente mais vistos contemplam notícias, reportagens e informação (81%), filmes (57%), séries (43%), telenovelas (40%), documentários (36%) e programas desportivos (33%).

Em relação à rádio – sobretudo ouvida em deslocações de carro por 66% dos inquiridos –, os programas habitualmente mais seguidos são os de notícias e informação (59%) e música popular (50%). Porém, a audição de música clássica (12%) não anda longe da audiência de
programas de desporto, incluindo relatos de futebol (17%).

O contexto pandémico levou a que 23% dos inquiridos passassem a ver mais televisão e a ouvirem um pouco mais de rádio (5%).

Livros: a grande influência do contexto familiar

A percentagem de inquiridos portugueses que, no último ano, não leram qualquer livro impresso é de 61%. Apenas 7% afirmam ter lido entre 6 e 20 livros.

A leitura de livros digitais foi realizada por 10% dos inquiridos portugueses.

Os que menos prazer retiram da leitura (43%) são os jovens dos 15 aos 24 anos, precisamente os que mais leem para estudar ou realizar trabalhos escolares (45%). As escolhas de leitura são fortemente influenciadas pelas redes sociais, sejam elas offline ou online: 43% das recomendações surgem dos círculos da família, amigos e colegas de trabalho; 16% de comentários de amigos nas redes sociais online e 10% buscam-se em sites de redes sociais virtuais especializados na leitura e avaliação de livros.

Na sua infância e adolescência, a maioria dos inquiridos não beneficiou de estímulos à leitura gerados em contexto familiar. Nunca os pais ou qualquer outro familiar os acompanharam a uma livraria (em 71% dos casos), a uma feira do livro (75%) ou a uma biblioteca (77%); nem tão-pouco lhes ofertaram um livro (47%) ou os deleitaram com a leitura de um livro de histórias (54%). Porém, os inquiridos mais jovens e aqueles cujos pais têm ou tinham qualificações académicas superiores reconhecem, com mais frequência, esse apoio familiar.

Apesar do fraco índice de leitura de livros, José Machado Pais sublinha o surgimento de "outras leituras noutros suportes não impressos", sobretudos entre os jovens: "Lêem blogs, lêem sites de notícias, interagem com outros em sites", a leitura está presente na vida das pessoas mas de outras formas.

Museus e monumentos: só 28% frequentam museus

Nos doze meses anteriores ao início da pandemia, 31% dos inquiridos visitaram monumentos históricos, 28% frequentaram museus, 13% deslocaram-se a sítios arqueológicos e 11% frequentaram galerias de arte. Considerando a última visita a estes espaços patrimoniais, constata-se que 70% dos visitantes com escolaridade superior os frequentaram contra apenas 11% com escolaridade até ao 3º ciclo.

No conjunto dos espaços reconhecidos como património mundial, os mais visitados, pelo menos uma vez na vida, são o Mosteiro dos Jerónimos (63%), a Torre de Belém (61%) e o Mosteiro da Batalha (59%).

Cinema e espetáculos: preços afastam os mais pobres

Nos doze meses anteriores ao início da pandemia 41% dos inquiridos foram ao cinema, percentagem que duplica entre os jovens dos 15 aos 24 anos (82%).

De entre as principais razões para não se ir mais vezes ao cinema destacam-se a falta de tempo (25%), a falta de interesse (22%), a possibilidade de se ver filmes na televisão e em outros suportes digitais (15%) e o elevado preço dos bilhetes (14%). Entre os 59% de inquiridos que não foram ao cinema, sobressaem os de rendimentos abaixo dos 800 euros mensais.

No conjunto de espetáculos e concertos ao vivo, os festivais e festas locais foram os mais frequentados (38%). Logo a seguir, os concertos de música ao vivo (24%), o teatro (13%) e o circo (7%). Os mais baixos índices de assistência reportam-se a espetáculos eruditos: música clássica (6%), ballet ou dança clássica (5%) e ópera (2%).

O poder de atração dos festivais e festas locais é transversal a toda a população. A distinção cultural ocorre, sobretudo, no acesso a espetáculos eruditos, francamente preferidos por inquiridos com rendimentos elevados, grandes empresários, profissionais liberais, profissionais socioculturais e gestores. José Machado Pais conclui que as pessoas com mais habilitações académicas e maiores rendimentos têm um "omnivorismo cultural", ou seja, tanto vão ver espetáculos eruditos como participam em festas populares.

Preços elevados, efeito da Internet e outros dados para refletir, questionar e tentar mudar

Os dados do Inquérito realizado revelam significativas desigualdades sociais no acesso à cultura, em função do perfil sociográfico dos inquiridos. Há práticas culturais minoritárias, com destaque para os espetáculos eruditos, que não estão ao alcance de todos.

Um dos grandes constrangimentos parece ser económico: 20% dos inquiridos põem o preço elevado como principal motivo para não frequentarem as atividades culturais.

Dando como exemplo, os preços dos concertos de música erudita no Grande Auditório da Gulbenkian, Miguel Lobo Antunes questiona-se o que se poderá fazer: "Se tivermos em conta a excelência do programa, os preços não são caros quando comparados com os bilhetes noutros países, são até bastante baratos", diz. Além disso, se as salas estão cheias, isso também quer dizer que os preços não são demasiados elevados para o público da Gulbenkian.

Neste exemplo, como sublinha a presidente da Gulbenkian, Isabel Mota, não se trata de um problema de falta de público, trata-se de "um problema de público que parece ficar excluído" por não poder pagar os bilhetes. É como se a cultura erudita estivesse reduzida a um público muito pequeno mas muito assíduo, que participa em diversas atividades dando por isso a sensação de que se chega a mais pessoas do que aquilo que realmente acontece.

Outra das questões que fica por responder é o impacto da pandemia nos eventos ao vivo - como concertos e espetáculos - e no cinema. Em contexto pandémico, os inquiridos intensificaram o uso da Internet no domínio cultural, sobretudo os jovens dos 15 aos 24 anos: 40% passaram a ver mais filmes e séries; 21% a ler mais livros, jornais e revistas online; e 16% a ver mais espetáculos de música. Outro dado relevante é a clara afirmação do telemóvel como dispositivo preferencial de acesso à Internet, numa lógica de conectividade permanente.

É possível, portanto, que a oferta cultural nas plataformas digitais, indiciada, em contexto pandémico, por uma relativa intensificação dos usos da Internet no domínio cultural, possa acentuar-se no futuro.

Apesar de não ser possível prever o futuro, os coordenadores do estudo acreditam que o aumento dos consumos culturais através da Internet poderá ter um "efeito cumulativo, mais do que substitutivo". Ou seja, as pessoas não deixarão de ir a concertos ou de ir ao cinema para ver tudo no computador, até porque existe uma dimensão social, de "convivialidade", em muitas das práticas culturais, sublinha Pedro Magalhães.

Perante estes dados, importa agora perceber como agir. "Isto é um retrato de uma realidade estática. Temos de ver como é que esta realidade vai evoluir e o que podemos fazer", conclui Miguel Lobo Antunes, na apresentação das conclusões aos jornalistas. "É importante conhecer a realidade para saber onde há constrangimentos. Agora, é preciso tentar perceber os motivos destes constrangimentos para sabermos onde podemos atuar."
 

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