O SOM E A FÚRIA

Os polícias estão zangados comigo. Vou provar que estou certo e com isso vou defendê-los

Qua, 07 fev 2024

Olá. Esta é uma nova newsletter da CNN Portugal. Quero escrever-lhe todos os dias até às eleições

Quanto ganha um polícia? Cerca de dois mil euros brutos, em média. E cerca de 1 100 euros líquidos, em média. Não há contradição entre os valores, como vou mostrar. E sim, há um conflito entre quem está de saída do governo e quem permanecerá nas esquadras. Isto não é um jogo de futebol, é política pura e dura. Muito dura.

Os polícias estão furiosos comigo. Vou provar que estou certo e com isso vou defendê-los

Manifestação de polícias (Estela Silva/Lusa)

Disse esta segunda-feira (aqui na TVI e aqui na CNN) que um agente ganha cerca de dois mil euros brutos por mês. Recebi dezenas de mensagens, algumas com recibos de ordenados, perguntando onde raio tinha eu ido buscar aqueles números tão elevados. Vamos a isso. E veremos, também, quão grande é a diferença salarial que está na base do conflito entre polícias e governo.

O ganho médio de quase 2 000 euros por mês refere-se à PSP, é bem menor do que na PJ – e ambos são maiores do que na GNR, mas os três são bem menores do que sucedia no SEF. O novelo começa aí, numa extinção de um serviço pequeno que foi evidenciando diferenças e aprofundando injustiças em grupos profissionais cada vez maiores – e o pavio ainda chegará a outros paióis, de bombeiros, de guardas prisionais, de… militares? Esse rastilho o governo não extingue, até porque agora se evade. É um governo de gestão que não governou antes nem gere agora: os agentes de segurança ainda não ganharam a guerra mas o governo PS já a perdeu. Mesmo se, com palavras escritas (e não ditas), Costa arremessa uma “traição à democracia” para virar o feitiço da ameaça contra o feiticeiro sindical. Objetivo: inverter o apoio social às polícias à beira das eleições.

O governo do “quanto custa?”

Oito anos de António Costa deixaram um Estado com melhores contas num país com pior Estado.

O caso das forças de segurança é demonstrativo: de como a falta de investimento lacerou infraestruturas, esquadras, automóveis, equipamento; e de como razões certas (melhoria da PJ) se transformaram em decisões erradas (aumentos sectários) porque o sim/não dependeu de muita propaganda (anular o escândalo SEF) e de pouco custo (mas só num primeiro momento).

Não foi um bater de asas de borboleta do outro lado do mundo, foi um assassinato cometido em Lisboa: a morte em março de 2020 do ucraniano Ihor Homeniuk por três inspetores do SEF, já condenados e a cumprir pena de prisão, criou uma sucessão de acontecimentos (em grande parte, já agora, por perseverança inicial de uma investigação de duas jornalistas do DN, esse jornal dado entre a sorte e a morte). O Governo reagiu anunciando a extinção do SEF, com reintegração de 600 dos seus inspetores na PJ.

A PJ recebeu mal a notícia. Até porque os agentes do SEF ganhavam mais do que os da Judiciária. Seria necessário harmonizar condições remuneratórias, sob pena de criar inspetores de primeira e inspetores de segunda. Foi o que aconteceu, e bem, ao longo do tempo até final de novembro último, já depois de António Costa anunciar a sua demissão, na sequência da Operação Influencer (cujas buscas foram conduzidas pela PSP, não pela PJ): aumentos na casa dos 700 euros brutos. O custo para o Estado não foi então revelado, mas não superará a dezena de milhões de euros. Não é muito. Mas agora multiplique por 20: se for estendido à PSP e GNR.

O mal estava feito: por causa de menos de mil pessoas (do SEF) foi necessário aumentar mais de dois mil (da PJ) o que foi sentido como provocação por quase 44 mil (da PSP e GNR). E de precedente em precedente poderemos chegar a quatro mil guardas prisionais, três mil bombeiros ou… 23 mil militares das Forças Armadas. Houve dinheiro para a PJ porque eram poucos, não houve dinheiro para a PSP e GNR porque eram muitos mais. É isto o mecanismo do “quanto custa?”: avança-se se custar pouco. Isto não é bem governar o Estado, é gerir a Fazenda.

O governo errou. Agora, enquanto os ainda ministros entram na toca, milhares das esquadras saem para a rua.

“Dois mil euros?!”

Veja este recibo de vencimento de um militar da GNR, que uso com autorização (e anonimizado):

Trata-se de um salário bruto de 908 euros, a que acrescem dois suplementos que o fazem subir para 1 250 euros, mais subsídio de alimentação. No final, são cerca de 1 100 euros líquidos.

Agora veja este, de um agente da PSP:

É um caso semelhante, cerca de 1 100 euros líquidos.

Onde estão então os “dois mil euros brutos em média” que eu referi ontem?  E como não são eles contraditórios com isto?

Os dados que se seguem são do Síntese Estatística do Emprego Público (SIEP) e do Sistema de Informação da Organização do Estado (SIOE), ambos da Direção-Geral da Administração e do Emprego Público (DGAEP). É informação oficial do Estado, que se encontra em folhas de cálculo nas cavernas dos sites da administração pública.

Nas últimas informações disponíveis, de julho de 2023, quando havia 2296 postos de trabalho na PJ, 20 440 na PSP e 23 287 na GNR (e ainda 947 no SEF, que seria extinto depois), os dados oficiais são os seguintes:

 

  Remuneração base média mensal (bruta) Ganho médio mensal (bruto)
PJ 2 331 € 2 886 €
PSP 1 614 € 2 185€
GNR  1 666 € 1 974 €
Fonte: DGAEP – Departamento de Informação da Organização do Estado e do Emprego Público: Emprego nas Administrações Públicas em Contas Nacionais - remunerações base e ganhos médios mensais nas administrações públicas

Isto significa, em contas grosseiras mas para efeitos exemplificativos, que em média em 2023 (com o IRS de então e sem os aumentos de agora), um PJ levava para casa ao fim do mês 1 900 euros líquidos (salário líquido de 1 600 euros mais 300 de outros rendimentos), um agente da PSP levava para casa 1450 euros (salário líquido de 1 150 euros mais 300 de outros rendimentos) e um militar da GNR levava para casa 1 350 euros (salário líquido de 1 150 euros mais 200 de outros rendimentos).

É por isso que os dados não são contraditórios. Remuneração base é o que se ganha quando se trabalha o horário normal, ganho médio é tudo incluído. Ora, as estatísticas do Estado mostram que o ganho médio é de cerca de dois mil euros brutos, mas mostram também que os agentes da PSP e os militares da GNR ganham grande parte do seu dinheiro em dezenas de horas trabalhadas depois do horário de trabalho e em sacrifício da vida pessoal: em policiamento de jogos de futebol, por exemplo, no que se chamam “gratificados”. Um agente da PSP, por exemplo, recebe cerca de 12 euros por hora em gratificados, sendo os “pacotes” habitualmente de quatro horas seguidas. É uma manhã de sábado ou uma tarde de domingo, por exemplo. Eles têm de trabalhar (e trabalham) dezenas de horas a mais, à noite, aos fins de semana, para ganhar mais.

É por isso que estes dados são consistentes, aliás, com estes antes noticiados na TVI.

Mas os dados mostram ainda outra coisa: com o novo subsídio de missão, em 2024 a diferença salarial da PJ face à PSP e GNR aumenta consideravelmente. Quando houver dados do início de 2024, vamos provavelmente ver que os agentes da PJ levam para casa em média mais quase mil euros que os da PSP e da GNR. E mais: os da PSP e GNR têm de trabalhar mais horas que os da PJ para chegar aos valores finais.

Médias são médias, mas isto significa o seguinte: os inspectores da PJ continuam a ser tão poucos como eram quando António Costa chegou ao governo, em 2015 – o que tendo em conta a intensificação da criminalidade (por exemplo nas frentes informática, financeira e tráfico de droga) é inexplicável. Mas foram aumentados muito acima da média, em 2023 e este ano. E é essa a principal força de revolta das forças de segurança.

A força do silêncio, a fraqueza do grito

As carreiras das três forças policiais são diferentes, há outros subsídios, idades de reforma, qualificações. Mas estas diferenças salariais – e a forma quase clandestina como o governo optou por não as justificar – dão força à GNR e à PSP. Já o defendi aliás aqui e aqui. E é por isso que vários partidos defendem aumentos salariais e o Presidente da República também o invocou. Já o governo estava a tentar que o tempo passasse. Até que houve um jogo de futebol. Ou melhor, até que não houve um jogo de futebol.

Mas o que os sindicatos tinham feito bem – a força numerosa do silêncio – passaram a fazer mal no futebol. As manifestações em Lisboa e no Porto foram impressionantes, pela dimensão, coesão, pela ausência de incidentes. Mas, depois, a simultaneidade das baixas médicas fez suspeitar de agentes e de médicos cooperantes. E sobretudo: a ameaça de não haver eleições foi um erro colossal.

Não sejamos ingénuos: se os que protestam perderem o apoio popular, perderão o apoio político. É por isso que António Costa sai de toca contra as polícias para escrever sobre “traição à democracia”. E é por isso que André Ventura, como se falando em nome das polícias, “anuncia” que as eleições acontecerão.

Com erros destes, e a coincidência de notícias sobre desvios de verbas nos gratificados da PSP, a consequência será dividir e afastar o apoio político e social. António Costa percebeu que está sozinho: Marcelo não se mete nisto e Pedro Nuno Santos tem eleições para ganhar. Mas Costa é hoje ainda primeiro-ministro e será um dia outra coisa política qualquer. Quem julgou que ele ficaria sentado a cruzar dias no calendário não o conhece: entrou por escrito, não saiu proscrito.

Falta pouco mais de um mês para as eleições. É pouco tempo para os agentes da PSP e os militares da GNR ganharem aumentos. Mas é muito tempo para o PS perder as eleições.

Veja o nosso Pulsómetro

Pulsómetro

É uma novidade desta campanha e está a dar muito que falar. Esta imagem reflete o sentimento nas redes sociais até esta madrugada sobre os debates desta quarta-feira. Mas os indicadores estão em permanente atualização. Veja aqui quem está a ganhar nas redes sociais os debates. Com atualização permanente.

E veja aqui a entrevista de Rodrigo Fernandes e João Cerejeira, da Augusta Labs, parceira da CNN Portugal, sobre como funciona o Pulsómetro. 

A avó de Mariana Mortágua foi despejada?

Luís Montenegro vs Mariana Mortágua

E eis que, a meio do debate desta terça-feira à noite com Luís Montenegro, Mariana Mortágua trouxe a sua avó:

“Eu lembro-me de uma lei das rendas, em que as pessoas idosas recebiam uma carta, e, se não respondessem durante 30 dias, a renda aumentava para qualquer valor e podiam ser expulsas. Eu vi idosos a serem expulsos, eu conheço o pânico que era receber uma carta do senhorio. Eu vi o sobressalto da minha avó ao receber cartas do senhorio, porque não sabia o que é que lhe ia acontecer, e essa foi uma responsabilidade do PSD, que esvaziou as cidades.”

A líder do Bloco de Esquerda refere-se ao Novo Regime de Arrendamento Urbano (NRAU) de 2012, que resultou das imposições da troika em 2011 e veio descongelar os contratos anteriores a 1990 e facilitar despejos de quem não pagasse. O NRAU haveria de sofrer várias alterações nos anos seguintes mas, basicamente, os senhorios podiam enviar cartas com aumentos de rendas antigas, dando ao inquilino 30 dias para responder.

Só que o NRAU tinha desde logo duas ressalvas: quem tivesse mais de 65 anos estava protegido de aumentos significativos e de despejos; quem tivesse menos de 65 anos e rendimentos inferiores a cinco salários mínimos (quase 2 500 euros) beneficiara de um período de transição de cinco anos. Mais tarde, o período de transição cairia, aliás num governo já com apoio do Bloco de Esquerda.

Ou seja, ou a avó de Mariana Mortágua era jovem quando recebeu a carta (tinha menos de 65 anos) e ganhava quase 2500 euros, ou estava muito mal informada pela sua própria neta, ou então nunca foi nem expulsa nem confrontada com um aumento "para qualquer valor".

Agora, isto não significa, claro que Mariana Mortágua chumbe no Factos Primeiro da CNN Portugal. De facto, ninguém poderá dizer que o sobressalto da sua avó fosse mentira. 

O gajo não fez nada

Jovens CNN

Por estes dias, andamos também a falar com jovens. Jovens como estes, com quem vimos o debate entre Pedro Nuno Santos e Rui Rocha. "É incompetente, pá, o gajo não fez nada, o gajo não tem nada para dizer “, diz um deles. Pode ver o vídeo aqui, na nossa página de Instagram.  

Onde é que eu já ouvi isto?

"O IMI é o imposto mais estúpido do mundo". André Ventura, fevereiro de 2024

"O IMI é provavelmente um dos impostos mais estúpidos do mundo". Rui Rocha, abril de 2022

"A Sisa [antecessora do IMI] é o imposto mais estúpido do mundo". António Guterres, 1995

 

Por hoje não é tudo

Obrigado pela sua leitura. Hoje há debate entre Rui Rocha e Rui Tavares às 18 horas na CNN Portugal. Até lá. Ou até amanhã - vemo-nos por aqui.

 

 

 

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Newsletter diária de Pedro Santos Guerreiro sobre a campanha eleitoral das legislativas de 2024

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