Nem todas chovem, mas todas têm água: o mundo anda a semear nuvens para combater a seca mas isso não explica o que aconteceu no Dubai

23 abr, 15:09
Chuva torrencial no Dubai (EPA)

 


 

Pedro Miranda, professor de Meteorologia, garante que o semear nuvens "não explica" os fenómenos que estão a acontecer em países que recorrem a este método, enquanto Pedro Nunes, especialista em clima, considera que as chuvas extremas no Dubai são "padrões que são típicos das alterações climáticas"

Num dia em que choveu tanto como num ano no Dubai e tudo parou, inclusive um dos aeroportos mais movimentados do mundo, levantou-se uma questão: teria o dilúvio de 16 de abril sido provocado pelo facto de os Emirados Árabes Unidos "semearem nuvens"?

Pedro Miranda, professor de Meteorologia na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, garante que "não". E a razão é simples. "Semear nuvens não aumenta a chuva que cai, altera é um bocadinho o sítio onde a chuva vai cair", explica à CNN Portugal. "Se é que altera", reformula.

Segundo o especialista, não é a "semear nuvens" que se consegue "uma grande chuvada". "O semear nuvens tem um pequeno impacto. O que vai fazer é, eventualmente, facilitar a produção de chuva num certo sítio", aponta, acrescentando que esta técnica é usada desde os anos 50.

Para Pedro Nunes, coordenador de energia, clima e mobilidade da Associação ZERO, "há vários fatores que permitem dizer com clareza que [a chuva que caiu no Dubai" não seria possível por via do processo de formação de condensação nas nuvens".

"Primeiro, porque este foi um fenómeno realmente extremo e esse processo não é assim tão eficaz para dar origem a chuvas deste tipo. No máximo poderia ter potenciado um pouco o processo. De qualquer maneira, aquilo que aconteceu é perfeitamente consentâneo com aqueles que são os padrões dos fenómenos extremos climáticas", esclarece.

"E terá sido mais ou menos isso que aconteceu" no Dubai, onde "temos mais massas de ar mais quentes e também uma maior capacidade da atmosfera reter a humidade, ou seja, reter a água". "Tivemos aqui alguns fenómenos meteorológicos que confluíram, tivemos aqui um fenómeno de baixa temperatura e baixas pressões sobre aquela região. Estas baixas pressões fizeram com que massas de água húmidas vindas do oceano confluíssem para a zona. E, por outro lado, também blindou a zona de outros fenómenos meteorológicos que pudessem existir ali à volta. Isto tudo junto causou, de facto, estas chuvas, muito atípicas. Mas os cientistas não creem que isto possa ter tido a ver diretamente com a questão da criação artificial de nuvens e de chuva", sublinha, lembrando que "nem sequer no próprio dia ou no dia anterior tinha havido voos para criar este fenómeno" - Pedro Nunes referia-se ao processo de semeadura de nuvens, que é feito através de aviões, que injetam as nuvens com químicos.

Semear nuvens não produz "água nova"

Mas, afinal, o que é isto de semear nuvens, processo adotado não só pelos Emirados Árabes Unidos, como pela China e pelos Estados Unidos, para fazer chover?

"As nuvens muitas vezes têm, ao mesmo tempo, água líquida ou gelo. Quando são muito profundas, mesmo que sejam num clima quente, elas têm gelo lá em cima. Ora, ao mesmo tempo há água. Porque é que as nuvens não chovem, muitas delas? É porque as gotas são muito pequenas e portanto estão em suspensão. Para produzir chuva eu preciso ou de produzir gotas grandes ou cristais de gelo grandes", explica Pedro Miranda.

E é aí, nessa necessidade de fazer crescer as gotas, que entra o processo de "semear de nuvens", que consiste em "introduzir certos químicos na atmosfera, em particular o iodeto de prata, que favorece a produção de cristais de gelo".

"E se eu introduzir cristais de gelo numa nuvem que tem gotas de água, esses cristais de gelo, se eles se formarem, vão crescer rapidamente e pode produzir chuva. Mas não vão produzir água nova. A água é a que lá está. O que eles facilitam é a criação de condensados de maior dimensão que possam cair", esclarece, lembrando que é tudo "uma questão de termodinâmica".

Para Pedro Miranda, a semeadura de nuvens "não explica" os fenómenos que estão a acontecer em países que recorrem a este método, até porque "semear nuvens não explica quase nada".

"Aliás, há bastante controvérsia sobre se o semear nuvens faz alguma coisa. Nem é se faz alguma coisa, é se faz de forma consistente. Portanto, é uma área que já tem muitos anos, já se faz semear nuvens para aí desde os anos 50. Só que chegou-se à conclusão nos anos 80 e 90 que aquilo tinha um impacto muito ténue e que não valia a pena. No entanto, há países em que a chuva é tão fraca, tão pouca, que a certa altura investiram nisso, porque pequenas alterações podem ser de valor", indica.

Também Pedro Nunes garante que semear nuvens "não explica" o que aconteceu no Dubai porque as chuvas extremas são "padrões que são típicos das alterações climáticas". "Esta questão dos fenómenos extremos pode ter influência de maneira a criar estes fenómenos tão aguçados. Porque, por outra via, não é explicável."

Ajudaria a combater a seca em Portugal?

Uma vez que o processo de semear nuvens pode ajudar a libertar a água que já existe nas mesmas, poderia ser útil para combater a seca em Portugal, normalmente no sul do país?

"Não, nem pensar nisso", responde de imediato o professor catedrático. "Combater a seca não é dessa maneira", garante Pedro Miranda, "para combater a seca é preciso guardar água". "Guardar água, guardar água, guardar água", argumenta.

Já Pedro Nunes não tem o mesmo entendimento. Lembrando que os países que semeiam nuvens o "fazem com esse objetivo", de combater a falta de água, o especialista da Zero diz que o método "pode ser usado em qualquer local em que dadas as condições, em termos meteorológicos, esteja sujeito a seca".

No entanto, explica que "estes processos nem sempre funcionam da mesma maneira em todos os locais".

"Depende muito das condições físicas que temos na atmosfera. No caso português, penso que seria possível. Dadas essas condições, portanto, não quer dizer que fosse sempre em todas as situações, mas sim. Penso que poderia funcionar. Embora a eficácia destes processos seja muito variável e às vezes até duvidosa, mas...  assim, de repente, também não vejo nenhum impedimento para que isto não funcionasse no nosso país", conclui.

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