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A ilha e o deserto

7 abr 2022, 19:38
O primeiro-ministro, António Costa, acompanhado da ministra Adjunta e dos Assuntos Parlamentares, Ana Catarina Mendes  (Lusa)

Notavelmente, a grande novidade do debate do programa do governo não foi o programa do governo

António Costa abriu a sessão com medidas que não constam no documento nem tão-pouco se inserem no seu horizonte de quatro anos, mas antes no que o primeiro-ministro considerou um período “conjuntural” de inflação. O anúncio da apresentação do Orçamento do Estado para a próxima semana e de uma resposta ao aumento de preços dos combustíveis substituíram, logo de início, o propósito original da ida ao plenário. A partir daí, caso o espectador houvesse caído do céu, rapidamente se interrogaria se os intervenientes falavam em 2016, 2019 ou 2021. Costa, quanto às prioridades nacionais, mantém-se inseparável dos pilares de um semestre europeu que já passou. A transição energética, a transição digital e respetivos alicerces do seu governo anterior e da sua presidência europeia. O problema da abordagem é duplo: por um lado, os focos referidos, evidentemente necessários, estão longe de ser prioritários na consciência dos cidadãos portugueses; por outro, são também focos que já nem Bruxelas, que os definiu, mantém como prioritários. Costa continua a falar da transição verde de 2019, quando a Europa está na autonomia energética de 2022, sendo ambas de convivência problemática, por mais excecional que a independência da península ibérica seja face a Moscovo. Talvez por isso, Costa seja o único chefe de governo na Europa de 2022 que se pode dar ao luxo (ou à alienação) de abrir um ciclo de governação sem uma palavra para um SNS que aguenta uma pandemia há dois anos ou para umas Forças Armadas que integram um continente sob ataque pela primeira vez em 80 anos. Na sua intervenção aquando da tomada de posse deste governo, Marcelo Rebelo de Sousa recomendou que não se olhasse o país como um oásis ou uma ilha. Costa, e a larga maioria, parecem ter ignorado essa parte da missiva presidencial. O primeiro-ministro não vive noutro planeta mas quer convencer-nos que não estamos neste. O governo continua a considerar a guerra como algo episódico, quando a resposta europeia e atlântica ao conflito – que Portugal obviamente integra – inclui metas para os próximos cinco anos, tendo modificado todas as perspectivas para a década da UE e da NATO.

Já a oposição, munida da sua crescente originalidade, viu Rui Rio comportar-se como se estivesse num debate quinzenal (que ele, ironicamente, aboliu), lançando questões ao primeiro-ministro sobre a TAP, o Porto e promessas da campanha que acabou de perder. Sobre Defesa Nacional, em plena guerra na Europa, nada. Sobre Saúde, em plena pandemia no mundo, idem. Uma visão de país, bem, não se pode propriamente pedi-la a quem nunca a teve. A Iniciativa Liberal, ainda a acostumar-se ao peso de uma bancada sua, caiu na esparrela do primeiro-ministro (“O futuro é Estado Social, não é liberal) e respondeu ao galhardete ideológico com equivalente simplismo. Mais realidade e menos slogan era algo que ficava bem – a todos. Já o Chega, numa performance propositadamente televisiva, perde na forma populista mas ganha no conteúdo que os demais esquecem. Enquanto o PSD não retomar a normalidade, os doze cheguistas prosseguirão insuflados por incompetência alheia. 

Longe das transições energéticas, digitais e que mais do PS, das obsessões de Rio e dos soundbites da IL, Ventura aproveitou o clima de incerteza para explorar o receio dos portugueses e responsabilizar o governo pela ausência de soluções no seu programa. Caso Costa não houvesse anunciado o conjunto de medidas de resposta ao aumento de preços, o Chega teria feito mossa maior. Desta vez, não foi assim.

Entre a ilha de Costa e o deserto da direita, mora a esquerda. De um lado, um PCP com a liderança por renovar; do outro, um Bloco que promete não oferecer o monopólio do ruído aos novos grupos parlamentares. Será uma legislatura dura para todos. E quatro anos ainda mais duros para nós.

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