O que se passa com os direitos humanos no Qatar?

20 out 2022, 22:47
Emigrantes no Qatar

Das denúncias às mortes de trabalhadores, passando pelo que foi e não foi feito ou ainda pelas manifestações de protesto, na terceira de uma série de perguntas e respostas em volta do Mundial 2022

Falta um mês para começar o Mundial no Qatar, desde há muito marcado pelas denúncias de um sistema laboral que viola direitos essenciais e levou a milhares de mortes de trabalhadores envolvidos na construção de infraestruturas, bem como por várias outras questões relacionadas com direitos humanos. O Maisfutebol prossegue a série de perguntas e respostas sobre o próximo Campeonato do Mundo com a abordagem a estes temas. Das denúncias à pressão internacional, passando pelo que foi e não foi feito, ou ainda pelas manifestações de protesto assumidas por quem anda no futebol.

Quais são os problemas com os trabalhadores nas obras do Mundial?

Muitos. Várias organizações de defesa dos direitos humanos denunciaram ao longo dos anos violações sistemáticas nas condições dos migrantes que chegam ao Qatar para a construção civil ou para vários tipos de serviços, como o trabalho doméstico. Sob o chamado sistema Kafala, instituído no Qatar como na generalidade dos países do Golfo, os trabalhadores ficam dependentes de um «patrocinador», o que implica, por exemplo, não terem autonomia para mudar de emprego ou deixar o país. Todas essas questões já vinham de trás, mas acentuaram-se com a gigantesca operação de preparação do Mundial. Num país com 2.8 milhões de habitantes,dos quais pouco mais de dez por cento têm cidadania qatari e os privilégios inerentes, a esmagadora maioria da população é composta por estrangeiros, entre eles milhares de pessoas que chegaram para trabalhar na construção dos estádios - que só por si mobilizaram 30 mil trabalhadores, segundo a organização - ou em obras como um novo aeroporto, hóteis, estradas e outras infraestruturas. Pedro Neto, diretor executivo da Amnistia Internacional em Portugal, dá ao Maisfutebol contexto adicional sobre o que está em causa: «Ao longo dos anos fomos percebendo que as condições dos trabalhadores diretamente envolvidos na construção dos estádios eram muito más», afirma, dando exemplos: «Muitos trabalhadores migrantes em que o passaporte é cassado, fica com a entidade empregadora. Mesmo que tivessem meios financeiros, eles não podiam ir visitar a família, só com autorização da entidade empregadora. Não tinham por exemplo a liberdade de mudar de empresa. Muitas vezes os salários não eram pagos. Ainda hoje há salários por pagar a trabalhadores das construções.» Ao longo dos últimos anos sucederam-se denúncias, com casos concretos, de violações de direitos de trabalhadores sujeitos a trabalhos forçados, vivendo em condições precárias e trabalhando em condições climatéricas extremas, sem limitação de horário e sem direito a descanso. Estas condições conduziram muitos à morte.

Quantos trabalhadores morreram no Qatar durante as obras para o Mundial?

Em fevereiro de 2021 o jornal Guardian estimou, com base em dados recolhidos junto dos governos da Índia, Bangladesh, Nepal, Sri Lanka e Paquistão, os países com mais emigrantes no Qatar, que teriam ocorrido pelo menos 6.500 mortes de trabalhadores em dez anos, desde que o país ganhou a organização do Mundial em dezembro de 2010. Por essa altura, as autoridades do Qatar limitavam-se a contabilizar 37 mortes de trabalhadores nos estádios, procurando refutar aqueles dados com argumentos como o de que não era possível afirmar que se referiam a trabalhadores das obras do Mundial e que muitas dessas mortes podiam dever-se a «causas naturais». Um outro estudo, da Organização Mundial do Trabalho, concluiu que só em 2020 morreram 50 trabalhadores no Qatar, registando ainda 500 feridos graves e 37.600 que sofreram ferimentos leves ou moderados.

O que foi feito em relação aos direitos dos trabalhadores?

A pressão internacional sobre a organização do Mundial levou o Qatar a comprometer-se a introduzir alterações à legislação laboral que passaram por definir salários mínimos e horários, condições de trabalho e de acomodação, liberdade de circulação e acesso a tribunais. Mas muitas dessas alterações tardam a ser consistentemente aplicadas no terreno, defendem as várias organizações que acompanham o processo. Ainda em agosto deste ano, por exemplo, foram detidos no Qatar dezenas de trabalhadores que protestavam contra salários em atraso. E nesta quinta-feira a Amnistia Internacional voltou a defender que as reformas não estão completas, citando vários casos de trabalhadores ainda com direitos limitados. «Não se pode fazer legislação e depois não garantir o seu cumprimento. Isso é deixar o trabalho a menos de meio caminho», afirma Pedro Neto. A UEFA criou em 2021 um grupo de trabalho para acompanhar as questões dos direitos humanos no Qatar, com visitas regulares ao país. O relatório da última visita, em junho, concluiu que houve «progressos significativos» quanto às condições dos trabalhadores e dava exemplos, avançando que desde a introdução das novas leis laborais em 2020 já tinha havido 242 mil trabalhadores a mudar de emprego, contra menos de 18 mil no ano anterior, bem como mais de 300 empresas encerradas por não cumprimento da regulamentação. Mas admitia que continua a ser necessária a «implementação universal» dessas mudanças e identificava ainda problemas sentidos pelos trabalhadores, como maior apoio legal. Esse grupo de trabalho, do qual faz parte a Federação Portuguesa de Futebol, defende também a criação no Qatar de um centro de apoio aos trabalhadores migrantes, que permaneça para lá do Mundial.

Quem se responsabiliza pelas mortes de trabalhadores no Qatar?

Essa é a questão que muitos querem ver respondida. «Em relação à perda de vidas de milhares de trabalhadores na construção a FIFA demite-se, dizendo que não era o empreiteiro. Mas era o dono de obra, nem que fosse indiretamente», afirma Pedro Neto. A FIFA foi argumentando ao longo dos anos que sempre trabalhou em conjunto com o Qatar nas questões relativas aos direitos humanos. O presidente do organismo voltou a reiterar essa ideia em março deste ano, num congresso em que a questão foi levantada abertamente pela presidente da Federação da Noruega. «Desde início, pressionámos as autoridades qataris, que têm sido parceiros comprometidos em alterações em termos de direitos humanos», afirmou Gianni Infantino, ainda que de caminho tenha dito que a FIFA «não pode ser responsabilizada por todos os males do mundo». Os acidentes e as mortes dos trabalhadores no Qatar não foram sequer investigados e é por aí que passa desde logo a responsabilização, como nota Pedro Neto: «Um dos pontos que defendemos é que haja investigação de facto, independente e definitiva, para perceber o que aconteceu. Porque tanto o Governo do Qatar como a FIFA estão a escudar-se no facto de não haver investigação e de não haver clareza na responsabilidade de cada uma destas entidades nos acidentes que existiram.»

O que é a campanha #PayUpFIFA?

É um movimento lançado pela Human Rights Watch, a Amnistia e várias outras entidades, que apela a que a FIFA se comprometa com um fundo de apoio às vítimas. «O futebol e a FIFA, pela força que têm, podem ser agentes de mudança para os direitos humanos em países como estes se, para que os eventos aconteçam, fizerem também exigências de cumprimento de direitos humanos. A FIFA não aproveitou a oportunidade para nenhum bem, pelo contrário. Mas acreditamos que ainda pode ir a tempo, mais não seja para indemnizar os trabalhadores e as famílias daqueles que perderam a vida», afirma Pedro Neto. A campanha pede que a FIFA se comprometa com uma verba de 433 milhões de euros para esse fundo. «É uma parte ínfima do que são as estimativas do lucro que a FIFA vai ter com este evento, que são 5.9 mil milhões de euros. Este valor de 433 milhões foi apurado com base em estimativas dos acidentes que aconteceram. Há milhares de acidentes documentados, há milhares de pessoas mortas nas construções.» A FIFA, através do vice-secretário-geral Alasdair Bell, mostrou-se recetiva para «avançar» com essa iniciativa, mas ainda não avançou. «Da FIFA só ouvimos declarações públicas em que admitem criar um fundo, mas que é preciso ver muitas coisas antes. Essa resposta é aceitável, mas é chutar a bola para a frente», diz Pedro Neto: «O ponto de situação é desanimador. Vamos notando que, com o aproximar do evento, a FIFA vai fazendo algumas declarações de abertura, mas pouco mais que isso. E não há nada ainda de concreto feito, quer por parte da FIFA, quer por parte do Qatar.» Também a UEFA deixou esta semana um apelo à FIFA para que responda até final de outubro às questões do fundo de compensação e do centro para trabalhadores migrantes.

Que outros problemas com direitos humanos se colocam no Mundial no Qatar?

A legislação do Qatar impõe a criminalização da homossexualidade, limitações aos direitos das mulheres ou restrições à liberdade de expressão. É um regime que «instrumentaliza a religião para a repressão», diz Pedro Neto, destacando a «desigualdade de género, sem que as mulheres possam viver a sua vida como quiserem e aproveitando todo o seu potencial». A questão das comunidades LGBTQI+ tem sido amplamente debatida, envolvendo também pedidos de garantias ao Qatar quanto aos adeptos que vão ao Mundial. A organização garantiu que «todos serão bem-vindos e se sentirão seguros», para citar os termos em que se referiu recentemente ao assunto Nasser Al-Khater, presidente do Comité Organizador, numa entrevista à SkySports. O dirigente disse que isso incluía adeptos homossexuais de mãos dadas em público, mas dentro do princípio de «respeito pela cultura» do Qatar. A UEFA diz também ter garantias de que os adeptos que usarem símbolos como bandeiras arco-íris serão «seguramente acolhidos». Quanto à liberdade de imprensa, foram frequentes nos últimos anos os casos de jornalistas detidos no país, durante investigações associadas às condições dos trabalhadores. Para o Mundial, o Guardian deu conta de uma série de restrições impostas no acesso e na recolha de imagens em vários locais para os media acreditados no Qatar. A organização do Mundial reagiu, negando que existam mais restrições do que as que são «prática comum em todo o mundo», e que as filmagens em determinados locais são possíveis mediante autorização prévia dos respetivos proprietários. Defende ainda que «milhares de jornalistas trabalham livremente a partir do Qatar», onde está sedeada por exemplo a estação televisiva Al Jazeera. Um dos argumentos que tem sido utilizado para relativizar a questão do Qatar é que o país tem um regime menos repressivo e fechado do que alguns dos seus vizinhos, como por exemplo a Arábia Saudita. Pedro Neto defende que não faz sentido falar deste tema em termos comparativos: «Admito que haja países mais ou menos repressivos, mas as comparações são sempre complicadas. Quem vive a repressão vive-a de forma absoluta e é nisso que temos de nos focar. Nas mulheres do Irão, nas mulheres do Qatar, nos trabalhadores do Qatar e onde haja repressão e abuso dos direitos humanos.»

Alguma seleção boicotou o Mundial no Qatar?

Não. Tem havido, isso sim, várias manifestações de protesto e iniciativas com o objetivo de alertar para a questão dos direitos humanos por parte de algumas federações, seleções, jogadores ou ex-jogadores e adeptos. Logo no arranque da qualificação para o Mundial, os jogadores da Alemanha e também da Noruega apresentaram-se em campo com camisolas em que estavam inscritas letras que escreviam as palavras Direitos Humanos. A Dinamarca assumiu uma posição através da camisola que levará ao Mundial, minimalista e com um equipamento alternativo preto, a simbolizar luto. Várias seleções, entre elas a Inglaterra, anunciaram que os seus capitães utilizarão braçadeiras arco-íris durante a competição. Estas são apenas algumas das tomadas de posição e é possível que nas semanas até ao Mundial surjam mais iniciativas. A Federação Portuguesa de Futebol ainda não anunciou uma posição sobre eventuais manifestações. Contactada pelo Maisfutebol, fonte da FPF reiterou a ideia de que o organismo está «alinhado com a UEFA» e tem um «historial de defesa da inclusão que fala por si». Pedro Neto diz que a Amnistia tem mantido contactos com a FPF e afirma acreditar que venha a haver uma tomada de posição: «Muitas vezes a proximidade à FIFA não ajuda a um trabalho mais contundente. Mas eu acredito ainda que a Federação e a nossa seleção vão também ter gestos simbólicos de comunicação, no sentido de que não podemos neste espetáculo do jogo bonito ser cúmplices deste tipo de abusos de direitos humanos.»

Este é o primeiro Mundial que levanta questões relativas a direitos humanos?

Não, de todo. A história do Mundial está repleta de exemplos de associação da competição a regimes não democráticos, da Itália de Mussolini em 1934 à Argentina sob ditadura em 1978, para mencionar os casos mais extremos. O que é comum aliás a várias competições e organizações desportivas, no passado e no presente. Para nos restringirmos ao Mundial, há ainda o exemplo bem recente da Rússia, em 2018, numa altura em que já se tinha dado a anexação da Crimeia e já se colocavam em relação ao regime de Vladmir Putin muitas questões relacionadas com direitos humanos. A Amnistia foi uma das organizações que alertou na altura para essas questões, mas as denúncias nunca tiveram impacto significativo, nota Pedro Neto: «Na altura nós pronunciámo-nos muito sobre essas questões. Tivemos até uma equipa de defensores de direitos humanos presos na Rússia. Creio que hoje em dia essa campanha seria muito melhor percebida. Na altura as pessoas não estariam tão atentas a essa questão que hoje, infelizmente, por causa da guerra e da agressão à Ucrânia, é muito visível.» Em relação ao Mundial do Qatar, todos estes temass ganharam uma notoriedade nunca antes vista. Falar sobre o assunto é o primeiro passo, como defendeu Tim Sparv, que era o capitão da Finlândia quando assumiu uma posição pública num texto no site Players Tribune em que apontava os muitos problemas do Qatar, falava sobre a sua tomada de consciência e defendia que o caminho era esse: falar, expor o que se passava. Numa entrevista à GQ portuguesa, Sparv resumia assim a questão: «A FIFA está a pôr os jogadores numa posição verdadeiramente difícil ao atribuir estas competições a países que não são respeitosos em questões de direitos humanos. Sinto que nós, jogadores, não temos realmente uma voz nestas questões, nestas decisões enormes e massivas que têm um impacto real nas nossas vidas.» Pedro Neto, por outro lado, defende que quem está ligado ao futebol pode ainda não ter essa consciência, mas tem poder para ter uma voz mais ativa: «O mundo do futebol vive muito sobre si próprio, e se calhar não percebe o poder que tem para mudar o mundo. Acho que falta muito aproveitar esse capital.»

Se todo o ruído à volta do Mundial do Qatar pode contribuir para mudanças positivas, só o futuro dirá. «Gostava de ter essa esperança, claro», diz Pedro Neto: «Isso depende de nós e também da FIFA, depende dos adeptos, depende de pressionarmos para que as mudanças venham para ficar e para que não percamos mais oportunidades como esta, como a da Rússia. Às vezes estes eventos servem para normalizar e tornar estes países mais conhecidos, mais aceites. Gostava que no futuro nenhum evento desportivo à escala global fosse feito sem ter isto em consideração.»

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