No plano desportivo, o que muda no Mundial do Qatar?

14 out 2022, 09:07
Al Janoub, Al Wakrah, Qatar. Um dos recintos para o Mundial 2022 de futebol tem sistema de ar condicionado com saída debaixo dos assentos e a cobertura do recinto também permite regular a entrada de ar quente vindo do exterior.

As alterações no calendário internacional, a concentração de jogos ou o curto tempo de preparação, na segunda de uma série de perguntas e respostas em volta do campeonato que aí vem

O Mundial no Qatar trouxe uma série de novas questões, começando desde logo pela altura em que acontece, em novembro e dezembro. Vai por isso interromper a época desportiva, com maior impacto na Europa, o que levou a alterações significativas no calendário internacional, condensou as competições e apertou muito o tempo de preparação das seleções. Depois da abordagem em volta da atribuição da competição ao Qatar, o Maisfutebol prossegue a série de perguntas e respostas sobre o próximo Campeonato do Mundo olhando para as mudanças que ele implica do ponto de vista desportivo.

Porque é que este Mundial vai decorrer em novembro e dezembro?

Por causa do clima do Qatar. Quando foi decidida a atribuição do Mundial ao pequeno país do Médio Oriente, ainda estava previsto que a competição se realizasse, como habitualmente, em junho e julho. Mas entre as muitas controvérsias em relação à decisão sobre a sede do Mundial havia uma que se impunha: o risco para a saúde e para a qualidade da competição que implicava jogar num país de clima desértico, onde junho e julho são meses particularmente secos e quentes, com temperatura média superior a 40 graus. Depois de muita pressão, estudos e análises, a FIFA formalizou em 2015 a decisão de realizar o Mundial numa data inédita, entre novembro e dezembro. Nesses meses, será expectável que a temperatura seja mais amena. Os valores médios estimados são de 26 graus em novembro (mínimas de 19 e máximas de 29) e 21 em dezembro (15-24), altura em que é previsível que aconteçam também períodos de chuvas fortes.

Então o calor não vai ser um problema para as equipas?

Vamos ver. Os estádios, todos construídos de raiz ou profundamente remodelados, foram concebidos, em termos de orientação, para minimizar o impacto do sol. Além disso a organização aplicou grandes esforços para garantir que os jogos decorrerão sob um ambiente controlado, com gigantes e inovadores sistemas de climatização. Também estão previstas pausas para hidratação durante os jogos. Deverá ser diferente no que diz respeito aos treinos, que todas as equipas farão no centro de treinos que têm como referência, próximos dos seus hotéis, e nunca nos estádios onde vão jogar. Essa é outra singularidade deste Mundial. As circunstâncias implicam foco especial em aspetos como hidratação e recuperação dos jogadores, bem como nas condições de treino, como observa Jorge Castelo, treinador e professor com larga experiência e várias passagens pelo Qatar como formador, que analisa para o Maisfutebol algumas destas questões. «O mais importante é criar ambientes que reproduzam o máximo possível o ambiente em que vão jogar», diz, dando um exemplo: «No Mundial do Brasil, a Alemanha tinha um campo fechado em que procurava reproduzir as diferentes condições das cidades onde ia jogar.»

Há alguma alteração em relação ao número de participantes?

Não. A FIFA chegou a ponderar o alargamento do Campeonato do Mundo já para 2022, colocando de caminho a hipótese de o Qatar dividir jogos com países vizinhos. Essa ideia só foi abandonada em maio de 2019. Não avançou o Mundial dividido por nações árabes, nem o alargamento imediato. Mas ele acontecerá já no próximo Mundial. Em 2026, a competição que vai decorrer nos Estados Unidos, México e Canadá terá 48 seleções participantes.

Quais são então as datas e horários do Mundial 2022?

Foram definidas as datas de 21 de novembro a 18 de dezembro. Mas a poucos meses do Mundial houve ainda uma nova alteração, antecipando a abertura em um dia. Originalmente não estava previsto que o Mundial começasse com o anfitrião em campo, mas afinal vai acontecer. O jogo inaugural será Qatar-Equador, a 20 de novembro, um domingo. Ainda assim, o Mundial será mais concentrado do que as anteriores competições que tiveram 32 seleções participantes, com menos três dias no total. Logo, com menos intervalo entre jogos, nomeadamente na primeira fase. Serão oito dias entre o primeiro e o último jogo da fase de grupos, contra dez há quatro anos, na Rússia. Quanto aos horários, num Mundial que se jogará em apenas oito estádios, serão quatro diferentes na primeira fase, desde a hora do almoço até perto da meia-noite no Qatar. São três horas de diferença em relação a Portugal continental, onde os jogos poderão ser vistos às 10h, 13h, 16h e 19h. Na segunda fase haverá apenas dois horários, correspondentes em Portugal às 15h – hora a que se joga a final, a 18 de dezembro - e 19h.

O calendário completo do Mundial 2022

Em que é que as datas do Mundial alteraram o calendário internacional?

A principal consequência é uma enorme concentração de jogos, nomeadamente no futebol europeu, que terá uma época 2022/23 dividida ao meio. Não tanto nos países que têm competições alinhadas com o ano civil, como acontece no continente americano: os campeonatos brasileiro e argentino, por exemplo, terminam antes do Mundial, tal como a MLS ou a decisão da Taça Libertadores. Na Europa, a temporada começou uma semana mais cedo do que o habitual, terá uma interrupção de mês e meio e também terminará mais tarde, entre o final de maio e o início de junho. O melhor exemplo da concentração de jogos é a Liga dos Campeões. A fase de grupos da mais importante competição de clubes, que habitualmente decorre ao longo de três meses entre setembro e dezembro, foi condensada em oito semanas, entre o início de setembro e o início de novembro. Será retomada depois em fevereiro. Mas há muitas mais implicações. Desde logo para as seleções. Na Europa, a fase de grupos da Liga das Nações deste ano foi concentrada em apenas duas janelas temporais. Em junho, as seleções europeias fizeram nada menos que quatro jogos num período de dez dias. Depois tiveram mais dois jogos em setembro.

O que implica para as seleções que vão estar no Mundial?

Antes de mais, muito pouco tempo de preparação. A nível de clubes há competições agendadas até 13 de novembro. É essa, por exemplo, a data para que está marcada a jornada 13 da Liga portuguesa. Ou seja, uma semana antes do arranque do Mundial. Só a partir daí as seleções terão os jogadores disponíveis: a data em que os clubes são obrigados a libertar os jogadores é 14 de novembro. O tempo de treino é particularmente reduzido pelo que, na análise de Jorge Castelo, o trabalho que as seleções farão antes da competição e entre os jogos será fundamentalmente «estratégico». «Os jogadores, do ponto de vista físico, já vêm mais que preparados. É preciso é gerir», considera: «Os treinos deverão ser sempre a uma intensidade média-baixa. Com distinção, claro, para os jogadores que jogam e os que não jogam.»

As equipas vão ter de fazer grandes viagens?

Não. Se para as seleções pode haver um benefício imediato por disporem dos jogadores quando estes estão com pleno ritmo competitivo, ao contrário do que acontece numa grande competição no final da época, a concentração geográfica no Qatar pode ser vista como outro ponto favorável, este do ponto de vista do desgaste durante a competição. Os estádios situam-se todos num raio de 50km de distância de Doha e as várias seleções estarão hospedadas nas proximidades da capital do Qatar. Das 32 seleções, 24 ficarão sedeadas num raio de 10km de distância de Doha. A seleção portuguesa ficará hospedada e treinará a cerca de 20km do centro da cidade e, tal como para as outras equipas, as viagens até aos estádios serão curtas.

As seleções vão poder usar mais jogadores do que o habitual?

Sim. Para o Qatar, a FIFA adotou algumas alterações que tinham começado a ser introduzidas no futebol por causa da pandemia de covid-19. Tal como aconteceu no Euro 2020, as seleções podem convocar até 26 jogadores, mais três do que nas competições anteriores. Também podem optar por levar menos jogadores, sendo 23 o mínimo. Além disso, podem fazer cinco substituições durante o jogo. O que representa uma grande mais-valia, na opinião de Jorge Castelo. «Dá muita folga. É metade de uma equipa», diz, defendendo que os treinadores deviam tirar melhor partido desse recurso: «Alguns ainda não andam a conseguir tirar proveito do facto de poderem fazer cinco substituições. Este instrumento de trabalho para os treinadores ainda não está otimizado.» As seleções têm até 21 de outubro para entregar à FIFA uma pré-convocatória alargada, que pode ter até 55 jogadores e não será oficialmente divulgada. O prazo final para a formalização dos 26 convocados é 14 de novembro.

Qual o impacto que o Mundial terá nos clubes e no resto da época?

Haverá uma série de aspetos a gerir, desde logo a forma como os clubes europeus vão lidar com um intervalo tão grande nos campeonatos nacionais, que na prática representa o equivalente a uma pré-época de paragem, mas para prosseguir na mesma competição. A questão começa logo na fase que antecede o Mundial e prossegue no resto da época, como nota Jorge Castelo. «Os treinadores nos clubes não têm como função preparar os jogadores para as seleções, mas fazer com que os jogadores deem o máximo da sua capacidade em direção ao que são os objetivos do clube. É sempre complexa a gestão, com os treinadores a quererem tirar o máximo proveito dos jogadores e estes a quererem corresponder e a pensarem também na seleção. Mas este ano acontece com mais força, porque o Campeonato do Mundo vai ser a meio do projeto de um clube.» Depois, além do risco de eventuais lesões, há também o pouco tempo de descanso que os jogadores terão entre o fim do Mundial e o regresso aos clubes. Mais significativo, naturalmente, quanto mais longe for uma seleção em prova. Jorge Castelo nota que os treinadores «vão ter de fazer reajustamentos» em função das condições de cada jogador. Não só físicas, mas também anímicas, dependendo da forma como decorrer o Mundial para cada jogador: «Vai ser um momento de exaltação para uns e de alguma tristeza para outros. O treinador vai ter que lidar com esses aspetos todos.» Mas Jorge Castelo considera que essa gestão passa também pelo resto do plantel: «Os clubes não têm onze jogadores e nem todos foram para as seleções.» Aqui entra outra questão. Ao longo de seis semanas, os clubes terão de gerir uma fase de não competição a meio da época para os jogadores que não foram ao Mundial. Em Portugal, parte desse intervalo será preenchido com a fase de grupos da Taça da Liga, alterada este ano precisamente por causa do Mundial. O Mundial no Qatar intensificou uma série de questões que já vinham de trás, desde logo um assunto que é há muito motivo de debate, a sobrecarga de jogos e os seus efeitos sobre os jogadores. Jorge Castelo não acredita que essa tendência venha a ser atenuada no futuro, pelo contrário. «O aumento da densidade competitiva é um dos pressupostos fundamentais do futebol no futuro. Na Europa vamos ter que nos preparar para essa situação», diz: «Como? Se calhar tendo plantéis um pouco mais largos, em que um treinador poderá fazer essa gestão. E com o pressuposto importante de passarem a poder ser feitas cinco substituições, que é fundamental perante esta densidade competitiva.» Apesar disso, o treinador acredita que, passado o Mundial, haverá desde logo uma conclusão a tirar. «Não sei se voltará a haver no futuro um Campeonato do Mundo que divida a época a meio na Europa. Mas vamos tirar conclusões importantes para o futuro e ver que é uma fórmula que eventualmente não deve repetir-se.»

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