Relatório de organização sem fins lucrativos descreve o caso com algum pormenor, revelando a natureza sórdida da situação. Mulher sublinha que se sentiu completamente "desorientada". Especialista considera que evento virtual pode gerar uma "grande confusão" e "emoção" na vítima
O que começou por ser um estudo sobre o comportamento dos utilizadores no Horizon Worlds, o metaverso da dona do Facebook, depressa culminou numa violação e numa experiência emocional tão confusa quanto traumática. Uma investigadora entrou no espaço virtual da Meta, mas nem uma hora depois o seu avatar já estava a ser violado, numa situação com contornos sórdidos.
O caso foi divulgado no relatório “Metaverse: outra fossa de conteúdo tóxico”, elaborado pela organização sem fins lucrativos SumOfUs, que se dedica a abordar questões como os direitos humanos e o poder corporativo.
Mal entrou na plataforma virtual Horizon Worlds, a investigadora, que usava o sistema de realidade virtual da Oculus (tecnologia que também foi adquirida por Mark Zuckerberg) foi convidada para uma festa privada com outros utilizadores. Nesse espaço, convenceram-na a desligar uma ferramenta de segurança que, quando ativada, impede que outros avatares se aproximem - os outros utilizadores ficam sempre a uma distância superior a um metro.
Desativada essa ferramenta de segurança, a mulher foi “levada para um quarto privado” onde aconteceu a violação. O documento descreve o caso com algum pormenor, revelando a sua natureza sórdida.
“Foi levada para um quarto privado onde foi violada por um utilizador que lhe dizia para se virar de costas, de modo a que pudesse fazê-lo por trás, enquanto os outros utilizadores viam pela janela – isto tudo enquanto outro utilizador estava no quarto, assistia e passava uma garrafa de vodka.”
O relatório inclui um vídeo que mostra uma parte da cena, na perspectiva da investigadora: vê-se um avatar masculino a aproximar-se, outro fica ali perto, apenas a assistir, enquanto uma garrafa de álcool é passada entre os dois.
“O ato sexual não foi consentido”, refere a organização no documento. Apesar de ter sido uma violação no mundo virtual, a investigadora afirma no relatório que se sentiu completamente “desorientada”. Os seus dispositivos de controlo vibravam, simulando as sensações que o avatar estava a experimentar online.
“Aconteceu de forma tão rápida que fiquei num estado de dissociação. Uma parte do meu cérebro pensava ‘o que raio está a acontecer’, outra parte pensava que não era um corpo real, enquanto outra pensava que aquilo era algo importante para a investigação”, descreveu.
Violação virtual: a "vulnerabilidade" da vítima e o ecrã que "protege" o agressor
Madalena Sofia Oliveira, especialista nas áreas psicossocial e forense, com destaque para a vitimologia, considera que estamos perante um evento que, ainda que seja apenas virtual, pode ser muito “impactante” para a vítima e “gerar uma emoção muito grande”. “É algo que vai contra a integridade psicológica e moral, que vem gerar uma grande confusão e desorientação na vítima”, sublinha a professora universitária à CNN Portugal.
Este tipo de “comportamentos tóxicos” em plataformas online, vinca a especialista, são muitas vezes perpetrados por pessoas que se sentem “protegidas por um ecrã”.
“Há um sentido de proteção do próprio agressor, que acredita que isto não terá consequências, que não poderá ser identificado, enquanto a vítima é deixada numa situação de grande vulnerabilidade”.
A Meta, casa mãe do Facebook, tem apostado em força no metaverso - um ambiente virtual imersivo que procura replicar a realidade através de diversas tecnologias como a realidade virtual, a realidade aumentada e a Internet. Em dezembro lançou o Horizon Worlds para maiores de 18 anos e apenas nos Estados Unidos e Canadá, contando já com 300 mil utilizadores.
Desde então, a plataforma tem sido alvo de muitas denúncias, devido à natureza violenta dos seus conteúdos. De resto, esta não foi a primeira vez que uma mulher revelou ter sido “violada” neste espaço virtual. A psicoterapeuta Nina Jane Patel partilhou na plataforma Medium o que descreveu como o “pesadelo surreal” de ter sido vítima de uma “violação em grupo” no Horizon Worlds.
Violações, assédio sexual, insultos racistas e homofóbicos: é assim o mundo virtual do Facebook
No relatório agora divulgado pela SumOfUs, são também destacados os casos de assédio sexual não só no Horizon Worlds como noutras plataformas virtuais que pertencem à Meta. O jornal The New York Times já tinha divulgado o caso de uma utilizadora que foi “apalpada” num jogo de tiro ao alvo da empresa de Mark Zuckerberg. Insultos racistas e homofóbicos são também uma constante, de acordo com a organização.
O metaverso do Facebook é um projeto recente e que ainda nem está disponível em Portugal, mas a violência online é um problema transversal quando se fala em plataformas digitais. Madalena Sofia Oliveira considera que é preciso um "olhar redobrado" sobre estas ferramentas devido "aos perigos que estão associados a estas novas tecnologias digitais".
"O mais importante é que haja cautela no uso de generalizado destas plataformas", frisa a professora à CNN Portugal.
Quando confrontada com os conteúdos violentos do metaverso, a representante da Meta Kristina Milian tentou acalmar as polémicas, afirmando ao MIT Technology Review que os utilizadores devem ter uma "experiência positiva e que as ferramentas de segurança são fáceis de encontrar". Ainda assim, ressalvou que se o utilizador não usa essas opções "a culpa nunca é sua" e que o objetivo da empresa é continuar "a melhorar a plataforma para que os utilizadores possam denunciar abusos rapidamente". "O nosso objetivo é tornar o Horizon Worlds seguro e estamos comprometidos em consegui-lo", acrescentou.
Ainda assim, os casos de assédio e abusos nas plataformas já levaram dois grandes investidores da Meta, Arjuna Capital e Storebrand Asset Management, a demonstrar as suas preocupações com o assunto. As empresas pediram mesmo que a Meta publicasse um relatório que colocasse em evidência os perigos que os utilizadores podem enfrentar nos ambientes virtuais.
Numa reunião de acionistas recente, foi também apresentada uma proposta para que existisse uma avaliação, realizada por uma entidade externa, de "potenciais danos psicológicos, civis e de direitos humanos aos utilizadores" das plataformas e de que forma esses "danos podem ser mitigados ou evitados". A iniciativa foi, no entanto, recusada.