São muitas as questões levantadas pela aprovação, no Parlamento, de uma lei para permitir guardar dados pessoais de cada um de nós, dados pessoais que permitem identificar com quem comunicamos, a que horas e durante quanto tempo, que tipo de aparelho utilizamos para comunicar, e onde estão todos os envolvidos.
Na passada sexta-feira, 13 de outubro, foi aprovado no Parlamento, com votos de deputados do PS, PSD e Chega, um novo regime jurídico da “conservação de dados gerados ou tratados no contexto da oferta de serviços de comunicações eletrónicas publicamente disponíveis ou de redes públicas de comunicações, conformando-a com o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 268/2022”. Apenas o conteúdo da comunicação fica de fora desta lei. E por isso mesmo se têm designado estes dados pessoais como metadados pessoais, o que apenas faz sentido se com isto se pretender significar que são os dados que estão para além do conteúdo da comunicação, mas que na verdade lhe subjazem, a condicionam e enquadram.
Como se pode perceber, dada a importância destes dados pessoais para a garantia dos direitos fundamentais à privacidade e à autodeterminação informativa, qualquer restrição tem de ter um fundamento igualmente importante e respeitar o princípio da proporcionalidade. E, com efeito, como se poder ler no n.º 1 do artigo 3.º do diploma aprovado, a conservação é feita tendo como “finalidade exclusiva a investigação, deteção e repressão de crimes graves por parte das autoridades competentes”. Por isso, estamos perante o legislador a tentar encontrar o justo equilíbrio entre dois interesses fundamentais. Sucede que, independentemente da posição pessoal que tenhamos sobre onde se encontra esse ponto de equilíbrio, no âmbito do nosso sistema jurídico a questão parece estar resolvida quanto à possibilidade de haver conservação generalizada e indiferenciada, ou seja, um regime de conservação dos metadados pessoais de todas as pessoas e independentemente da existência de qualquer suspeita sobre elas.
Com efeito, o TC decidiu pela inconstitucionalidade deste tipo de conservação de metadados no passado dia 19 de abril de 2022, acompanhando decisões reiteradas do Tribunal de Justiça da União Europeia, a última das quais de 15 de abril de 2022, que têm considerado violador da Carta de Direitos Fundamentais da UE qualquer regime de conservação de metadados pessoais que seja generalizado e indiferenciado (Acórdãos Digital Rights, Ireland, Tele2, La Quadrature du Net, e G.D.), com a exceção dos endereços de IP utilizados em comunicações eletrónicas.
Ainda assim, o legislador português insiste. E é difícil perceber a razão da insistência sem se ter verificado qualquer situação que justificasse uma mudança na ponderação realizada pelo Tribunal de Justiça da União Europeia, que, a 15 de abril de 2022, recordava que “uma legislação nacional que prevê a conservação generalizada e indiferenciada de dados de tráfego e de dados de localização abrange as comunicações eletrónicas de quase toda a população sem que seja estabelecida nenhuma diferenciação, limitação ou exceção em função do objetivo prosseguido. Tal legislação afeta, globalmente, todas as pessoas que utilizam serviços de comunicações eletrónicas, sem que essas pessoas se encontrem, mesmo indiretamente, numa situação suscetível de justificar um procedimento penal. Por conseguinte, aplica-se inclusivamente a pessoas em relação às quais não haja indícios que levem a acreditar que o seu comportamento possa ter um nexo, ainda que indireto ou longínquo, com este objetivo de luta contra os atos de criminalidade grave e, em particular, sem que se estabeleça uma relação entre os dados cuja conservação está prevista e uma ameaça para a segurança pública”.
Ainda assim, o legislador português, insistiu. Instala-se a dúvida sobre se o legislador entende que há novas razões que devem levar a uma ponderação distinta por parte dos tribunais ou se pura e simplesmente entendeu insistir na sua ponderação como uma proclamação de moral e política. Em qualquer caso, é difícil acreditar que não voltemos a ter uma decisão de inconstitucionalidade por parte do TC.