A noite de Wembley em que Damas foi gigante e os ingleses «estúpidos»

20 nov 2014, 10:48
Estádio de Wembley (Reuters)

40 anos depois do mítico empate a zero com a Inglaterra, o Maisfutebol recorda a grande noite do guarda-redes leonino, num tempo em que o futebol luso era pequeno

Por Francisco Sousa


1974 foi um ano de rebuliço permanente em Portugal, quase nunca por culpa do futebol. No ano da Revolução que transformou por completo o país, o futebol foi quase sempre relegado para segundo plano. O Sporting sagrou-se campeão, esteve às portas da final da Taça dos Vencedores das Taças e na Taça de Portugal, o Benfica bateu o FC Porto por uns inapeláveis 3-0. Mais para lá das equipas, tínhamos uma Seleção Nacional em reconstrução, muito diferente da equipa que, oito anos antes, havia tocado o Céu (ou quase…) no Mundial de Inglaterra.

Nesse ano, Portugal iniciou mais uma campanha de apuramento para uma grande competição, no caso o Euro 1976. A Seleção passava por um processo de renovação geracional em alguns sectores, revolução essa implementada pelo treinador José Maria Pedroto. A equipa inicial ficou incorporada num grupo com as poderosas Inglaterra e Checoslováquia e com o modesto Chipre. A estreia deu-se a 20 de novembro de 1974, no majestoso estádio de Wembley, onde oito anos antes Portugal tinha perdido uma meia-final épica com essa mesma Inglaterra.

Portugal chegou a solo britânico procurando sobreviver ao que se esperava vir a ser uma tormenta de golos dos ingleses. Uma semana antes, o selecionador inglês Don Revie havia assistido à debacle portuguesa na Suíça (3-0), num jogo particular frente a uma seleção helvética que estava longe de poder ser considerada uma potência. Pedroto gabou os seus jogadores e disse que estes, apesar da derrota, «até estavam de parabéns». Revie e a imprensa britânica estavam convencidos que a tarefa seria acessível, tanto mais que o diário Daily Mail decidiu distribuir um pedaço de papel para que os adeptos pudessem apontar os golos marcados a Portugal. João Alves, ex-internacional português e treinador, recordou-nos a arrogância inglesa em vésperas de um encontro, no qual ele realizou a estreia oficial pela Seleção das Quinas.

«Os ingleses tinham uma das grandes equipas daquela época, eram muito melhores do que na atualidade. A comunicação social inglesa pediu inclusive que os adeptos levassem uma caneta e um papel para irem apontando o avolumar do resultado», recorda ao Maisfutebol
aquele que enquanto jogador era conhecido como o Luvas Pretas. João Alves lembra a atmosfera que envolveu o jogo, com mais de 85.000 adeptos num «Wembley cheio» e a «desconfiança» dos portugueses face às suas possibilidades para esse jogo: «Tínhamos uma equipa fisicamente inferior, com um meio-campo de estatura mediana. Entrámos no jogo num clima de desconfiança mas motivados por Pedroto e pelas afirmações do selecionador inglês».

De facto, as diferentes atitudes de Revie e Pedroto na abordagem ao jogo acabaram por ter um papel preponderante neste encontro: «Pedroto, como grande mestre da tática que era, preparou-nos muito bem taticamente para este jogo. Trabalhámos os lances de bola parada, procurámos aproveitar a qualidade técnica do nosso meio-campo e impedir os ingleses de aproveitar as suas condições físicas, sobretudo nas segundas bolas», lembra Alves. Além de toda uma preparação tática, também a parte psicológica foi trabalhada pelo selecionador nacional: «Pedroto acicatou os jogadores, aproveitando o desprezo dado pela imprensa inglesa à nossa seleção.»

A verdade é que os ingleses dominaram aquele jogo e estiveram quase sempre por cima, criando mais ocasiões e obrigando uma equipa de Portugal consideravelmente mais frágil a dar tudo o que tinha em campo. O início de jogo, recorda João Alves, foi a pior parte: «Procurámos ter bola no meio-campo, onde tínhamos jogadores de boa técnica. O objetivo passava por roubar a posse aos ingleses, mas no começo sofremos bastante, dado que eles nos pressionaram muito. Com o passar do tempo, fomo-nos soltando e até lhes conseguimos meter medo. Ainda assim, foi um empate conquistado com uma grande dose de sorte». Sorte mas não só.

«O jogo ficou marcado por aquelas duas intervenções fantásticas do Damas», afirma João Alves. O guarda-redes mais mítico da história do Sporting foi, sem margem para dúvidas, o jogador português mais importante naquela noite. Foram várias as intervenções mas João Alves decide destacar duas, uma em cada parte, sobretudo aquela do primeiro tempo, quando tirou um golo certo a Thomas, avançado inglês, com um «golpe de rins» do outro mundo: «Foi um momento inesquecível», alude o antigo médio, à altura jogador do Boavista.




No final do jogo, o empate a zero bolas foi festejado por Portugal como se de um título se tratasse. Para a memória coletiva, fica o salto de Damas, agarrando a bola que se preparava para pontapear no momento em que o árbitro suíço Anton Bucheli decidiu apitar pela derradeira vez naquele encontro. De seguida, vários companheiros se lhe uniram num abraço prolongado, digno dos grandes guerreiros que acabam de triunfar (ou perto disso…) numa batalha que todos davam por perdida antes do começo. «No fim do jogo, foi uma grande alegria coletiva, um orgulho enorme em ser português», conta João Alves.

À imprensa, no final daquela partida épica, Pedroto decifrou qual o segredo para a conquista de um impensável empate: «Contámos com a estupidez do futebol britânico para alcançarmos aquilo que é verdadeiramente importante neste torneio: ou seja, a conquista de um ponto em jogo efetuado fora de casa.»



40 anos depois, a mentalidade portuguesa terá certamente mudado para melhor. Hoje em dia, talvez um empate a zero em Wembley, com Rui Patrício em grande, não fosse visto como um grande feito para as cores lusas. Mas aqueles eram outros tempos, de uma certa pequenez (ou timidez, para ser mais brando) do nosso futebol. No fundo, este é um jogo que serve para ilustrar perfeitamente às gerações mais jovens que já vivemos tempos consideravelmente mais modestos. Apesar de tudo, são estes momentos que ajudam a construir o histórico de momentos épicos do futebol de um país…

 

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