Médicos objetores de consciência: “estranho”, “inqualificável" e "incompreensível” não se saber quantos são

12 mai 2023, 07:00
Saúde

Em Portugal, ninguém sabe quantos médicos são objetores de consciência. Quanto aos enfermeiros, a Ordem tem “198 pedidos”. Também há farmacêuticos que usam este direito, mas não há números nacionais. Sendo a lei da eutanásia aprovada, o número “desconhecido” de médicos a alegar este direito para evitar fazê-la será certamente maior

“Estranho não haver um conhecimento da tutela sobre o número de médicos que efetivamente são objetores de consciência para as diferentes práticas”, afirma à CNN Portugal Gustavo Tato Borges, presidente da Associação de Médicos de Saúde Pública. E, por isso mesmo, não se espanta com “notícias de que alguém quer marcar uma consulta” para Interrupção Voluntária da Gravidez (IVG) “e não consegue porque o hospital não faz”, acrescenta.

Já Jorge Roque da Cunha, que preside ao Sindicato Independente dos Médicos (SIM), diz ser “perfeitamente inqualificável, incompreensível, que passados estes anos não existam por parte dos hospitais, da Direção-Geral da Saúde, do Ministério da Saúde, estes registos”. E acrescenta que, aparentemente, “o poder político só se preocupa quando existem os problemas, não os antecipa": "No nosso ponto de vista, é incompreensível este tipo de situação”.

Esta sexta-feira, a Assembleia da República prepara-se para aprovar novamente a lei da eutanásia, obrigando à promulgação do Presidente da República. Com isto, além da IVG, é provável que depois muitos mais médicos recorram à figura jurídica da objeção da consciência, evitando a realização desta prática.

“Aqui estamos a falar maioritariamente para a Interrupção Voluntária da Gravidez, mas também temos a questão da eutanásia. Porque o Ministério da Saúde tem a obrigação de perceber e planear as atividades que pode e tem para fazer para a sua população”, defende Gustavo Tato Borges.

E o problema que pode surgir não deixa os clínicos indiferentes: “A posição da Ordem dos Médicos [contra a eutanásia] e da generalidade dos médicos foi muito clara. Portanto, sabendo isso, e havendo uma lei que deverá ser aprovada no Parlamento, depois de promulgada pelo Presidente da República, compete ao Ministério da Saúde que essas circunstâncias sejam devidamente organizadas”, afirma Jorge Roque da Cunha.

A Ordem dos Médicos confirmou à CNN Portugal que já não recolhe esses dados e que os médicos nem sequer são obrigados a informá-la. Apenas devem comunicar ao serviço onde trabalham.

Os últimos dados conhecidos sobre médicos são de 2011. Na altura, os números revelados à agência Lusa pela Ordem dos Médicos indicavam a existência de 1.341 clínicos objetores de consciência, sendo 934 médicos de medicina geral e familiar e 407 ginecologistas obstetras.

A CNN Portugal contactou o Ministério da Saúde, mas não obteve resposta. Já a Entidade Reguladora da Saúde confirmou apenas não ter esses números.

Perante a ausência de números e falta de respostas, a CNN Portugal questionou quatro grandes hospitais do país sobre quantos médicos que trabalham naquelas unidades são objetores de consciência. Até ao momento, nenhum respondeu.

Número de objetores de consciência "vai aumentar" com a eutanásia

Joana Bordalo e Sá, presidente da Federação Nacional dos Médicos, concorda que o número de objetores de consciência “irá aumentar” se a eutanásia for aprovada e implementada, além de que “o expectável é que quem é objetor agora”, no caso da Interrupção Voluntária da Gravidez, “também seja" para a nova prática.

Quando a questão da morte assistida se colocar, Joana Bordalo e Sá, que também é médica, acredita que, “à semelhança do que acontece com a IVG, vão ser identificadas equipas e locais que a façam no serviço público”. Até porque não acredita que vão existir “tantos casos assim”, nem que “todas as unidades tenham que a realizar“.

Para Roque da Cunha, é mesmo "fundamental" esta identificação "para que o sistema se organize e responda o melhor possível àquilo que são as solicitações da população”. O que pode acontecer é a pessoa ir “ao seu médico de família, que a manda ao hospital, ou diz ‘ligue para este hospital para marcar’, quando naquele hospital não fazem ou nenhum profissional está disponível”. E esta é uma informação que próprio médico de família desconhece, clarifica Gustavo Tato Borges. 

O Sindicato Independente dos Médicos aconselha os seus associados a declararem a objeção de consciência também à Ordem, além da instituição onde trabalham, porque “é o garante da competência técnica, ética e deontológica”.

“Naturalmente que já se deveria estar, pelo menos, a criar as condições para que, quando a lei passasse a estar em vigor, não se andasse a correr atrás do prejuízo”, defende o médico Jorge Roque da Cunha.

Como acredita que haverá um elevado número de clínicos a não querer realizar a prática, admite que se faça um processo inverso: “Uma manifestação dos médicos que não são objetores de consciência”. "De outra forma, será com certeza uma lei, mais uma, para não ser cumprida”, alerta.

Enfermeiros e farmacêuticos também alegam objeção de consciência

Os médicos não são os únicos a poderem pedir objeção de consciência na área da saúde. A Ordem dos Enfermeiros, ao contrário da Ordem dos Médicos, tem registo destes dados. “Nesta altura, temos 198 pedidos de objeção de consciência, sendo que a maioria (127) diz respeito à Interrupção Voluntária de Gravidez”, confirmou fonte oficial.

Além do dever de informar o serviço onde trabalha, os enfermeiros também devem “comunicar, por carta, ao Presidente do Conselho Jurisdicional Regional da Secção da Ordem onde estão inscritos, no prazo de 48 horas após a apresentação da recusa”, e a essa comunicação “deverá conter a identificação, número de cédula profissional, local e circunstâncias do exercício do direito à Objeção de Consciência”. Ou seja, o profissional “justifica” a sua objeção de consciência.

A qualquer momento, este pedido pode ser revertido: “A situação de objetor de consciência cessa em consequência da vontade expressa do próprio”, lê-se nos regulamentos da Ordem dos Enfermeiros.

Além dos médicos e dos enfermeiros, também os farmacêuticos podem alegar objeção de consciência. Em declarações à CNN Portugal, fonte oficial da Ordem dos Farmacêuticos explicou que não é obrigatório informar a Ordem e que até hoje nunca receberam nenhuma queixa de utentes. Todavia, confirma que essa alegação de objeção de consciência pode acontecer, principalmente, na área dos métodos contracetivos de emergência (por exemplo, pílula do dia seguinte).

No dia 15 de maio, celebra-se o Dia Internacional da Objeção de Consciência.

Saúde

Mais Saúde

Mais Lidas

Patrocinados