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Marcelo e a dissolução ‒ um reencontro

12 abr 2023, 09:28
Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa (Lusa/Pedro Sarmento Costa)

Marcelo quer um trunfo. Quer algo que valha mais do que um trambolhão nas europeias ou nas sondagens. Quer um argumento mais forte do que uma trapalhada por WhatsApp ou do que outra demissão. E o trunfo é a execução do Plano de Recuperação e Resiliência. Marcelo já não é um Presidente com uma maioria absoluta nas mãos; é um Presidente com um governo em fim de ciclo no colo.

Foi preciso pouco mais de um ano para Marcelo Rebelo de Sousa recuperar algo que a maioria absoluta de 2022 dificilmente lhe permitiria reaver: o poder de dissolução do Parlamento. A prerrogativa presidencial, frequentemente difundida de forma desconhecedora (o "regular funcionamento das instituições" é uma premissa para demitir o governo; não para dissolver a Assembleia), não tem quaisquer limites legais que não a distância de seis meses de saída do cargo. Constitucionalmente, Marcelo pode dissolver se entender, pelo que entender e quando entender; no seu caso, até ao verão de 2025. Politicamente, como é evidente, a questão não é tão simples.

Desde que dissolveu a Assembleia no final de 2021, devido à não aprovação de um Orçamento, que o Presidente da República passou a estar obviamente mais limitado do que antes na utilização da figura. E é fácil perceber porquê. Por um lado, porque nunca um Presidente a utilizou mais do que uma vez em período de normalidade democrática. Por outro, porque nunca um Presidente a utilizou para dissolver uma maioria absoluta monopartidária e chefiada por um líder eleito (ao PSD, em 2005, faltavam ambas as coisas, como Marcelo já recordou).

Se dissolver a Assembleia e os 120 mandatos conquistados pelo PS em 2022, Marcelo estará a abrir um precedente constitucional mais profundo do que o criado por Jorge Sampaio com Santana Lopes, independentemente de mais ou menos justificado pelas suas circunstâncias. Enquanto António Costa cá estiver ‒ e essa condição foi assumida por Marcelo logo à partida ‒ será sempre mais difícil encontrar razões suficientes para o Presidente convocar novamente eleições. Não só pela tão recente ida às urnas (ainda há dias a tomada de posse fez um ano), como pela aliança política que os dois homens protagonizaram desde o início da sua coexistência. A década, para o bem e para o mal, é dos dois. E Marcelo sabe que nisso não se volta atrás.

Mais difícil, sim. Mas não impossível

O primeiro ano do governo foi definitivamente um mau começo, ainda que não suficientemente mau para tentar o Presidente a repetir o chumbo ao fim de tão pouco tempo. Marcelo segurou o governo durante toda a crise da TAP, ao longo das quedas de Alexandra Reis, Pedro Nuno Santos e Christine Widener. Perante moções de censura e ânsias eleitorais, o Presidente resfriou os ânimos e mandou a oposição esperar e o governo continuar. Foi há quatro meses.

De lá para cá, o governo apresentou um questionário governamental de concretização pífia (mais alguém ouviu falar dele?), um pacote de medidas para a Habitação cujo mérito essencial é terem falado sobre ele (segundo os próprios autores) e um alívio fiscal no IVA dos produtos alimentares cuja eficácia é igualmente duvidosa.

Entretanto, a comissãio de inquérito à indemnização de Alexandra Reis transformou-se numa sucessão de perplexidades, com uma CEO demitida que continua em funções, uma administradora indevidamente indemnizada que não consegue devolver o dinheiro e deputados do PS que reúnem secretamente com quem o PS mandou auditar pela Inspeção-Geral de Finanças.

Não tem sido propriamente algo edificante e Marcelo, que viu o seu nome arrastado para o palco, não gostou de ser confundido com os circenses. A recusa em participar em mais sessões da digressão do PRR ao lado de António Costa foi um sinal idêntico ao veto preventivo com que brindou a lei do arrendamento forçado. E também é fácil perceber porquê. Quanto mais impopular é o governo junto dos portugueses menos popular será o governo junto de Marcelo.

Marcelo poderia exigir uma remodelação, mas ela não resolveria nada, como nenhuma outra resolveu no último ano. 

Mesmo assim, apesar de tudo, o Presidente permanece limitado nos seus poderes de dissolução. Poderia exigir uma remodelação, que não resolveria nada como nenhuma outra resolveu no último ano. Poderia demitir o primeiro-ministro e obrigá-lo a apresentar um executivo novo, mas a capacidade de recrutamento do PS já escasseia para meras secretarias de Estado. Poderia arriscar e dissolver a Assembleia uma segunda vez, mas a possibilidade de causar uma explosão do Chega no parlamento e/ou um regresso a um governo minoritário de António Costa ser-lhe-ia profundamente desconfortável. Era trocar o impasse no caos pelo caos do impasse. E regressar àquilo a que tentou por termo em 2021, também há muito pouco tempo.

Além disso, e talvez o que mais o preocupa, não é nada garantido que o sistema financeiro não volte a abanar fora de fronteiras, acabando por atingir economias mais frágeis como a portuguesa. Há uma longa lista de receios oriundos dos dez anos de juros baixos que a diretora-geral do FMI, o diretor-geral da Autoridade Bancária Europeia e a secretária do Tesouro norte-americano vêm verbalizando. Em entrevista à CNN Portugal sobre as consequências da inflação nos mercados financeiros, o economista Ricardo Cabral também o alertou. E nem o governo, nem o Presidente, nem o Banco de Portugal são indiferentes a isso.

Marcelo, que se autodescreve como “um instável dedicado à estabilidade”, pondera quase diariamente se o risco de rutura política ainda é ‒ ou não ‒ maior do que os riscos que a continuidade do governo vem representando. É uma ponderação solitária e só sua porque é o seu mandato, o seu lugar na nossa memória coletiva e o seu papel na história recente do país que estão em jogo. Ser o primeiro Presidente a conviver somente com um partido em nome de um projeto com resultados seria uma coisa. Ser um Presidente a não trazer nada de novo a Portugal seria outra.

Eanes trouxe a normalização democrática, Soares a Europa, Sampaio a moeda única e Cavaco lidou com duas coisas altamente desagradáveis: Sócrates e a troika.

Marcelo desejará certamente ser mais do que o Presidente dos afetos e da pandemia.

Cartas na manga

A sua ardente vigilância à execução dos fundos do PRR tem a ver com isso: encontrar um legado, “deixar obra”, incentivar o governo a conseguir resultados que ambos possam partilhar. É isso. Mas não é só isso.

Há, por trás desse mantra tantas vezes repetido, debaixo dessa insistência tão pública e notória, um objetivo do Presidente da República. Marcelo quer um trunfo. Marcelo quer algo que valha mais do que um trambolhão nas europeias ou nas sondagens. Quer um argumento mais forte do que uma trapalhada por WhatsApp ou do que outra demissão. E o trunfo é a execução do Plano de Recuperação e Resiliência. Não para usá-lo obrigatoriamente, mas para utilizá-lo eventualmente.

Marcelo já não é um Presidente com uma maioria absoluta nas mãos; é um Presidente com um governo em fim de ciclo no colo. 

Na longa jornada de reencontro com a plenitude dos seus poderes, o Presidente está limitado por uma conjuntura internacional incerta e por um governo absolutamente maioritário na Assembleia, mesmo que já não no país. As trapalhadas do governo no último ano, incluindo as mais recentes, reequilibraram a relação entre Belém e São Bento depois das eleições de 2022. Marcelo já não é um Presidente com uma maioria absoluta nas mãos; é um Presidente com um governo em fim de ciclo no colo.

Ao não dissolver já, não está a defendê-lo; está a mantê-lo. Não está a dizer “nunca”, está a sugerir que “por agora” não.

A maioria “não é um seguro de vida do governo” é a frase da semana e provavelmente do resto do ano. “Não é” um seguro de vida porque deixou de ser. E ter deixado de ser significa que Marcelo, que havia perdido o botão da bomba atómica, o recuperou. Está ali, declaração a declaração, visita a visita, sorriso a sorriso, de polegar em riste.  

Se vai ou não usá-lo, só ele sabe. A execução do PRR, os efeitos das 35 horas no Serviço Nacional de Saúde, o alheamento de vários governantes das suas próprias funções e a sucessão de “erros de perceção mútua” desde o original são as faltas transversais que, se for preciso, quando for preciso, o Presidente enumerará ao país.

Nesse dia, só o primeiro-ministro será capaz de não lhe dar razão.

Pelo caminho, deu demasiadas.

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