"Em terapia de casal, fazemos muitos divórcios"

3 jun 2023, 18:00
Luana Cunha Ferreira

Luana Cunha Pereira, psicóloga e terapeuta, orientou mais de 250 casais nos últimos 15 anos. Acaba de lançar o primeiro livro, "Sete Casais em Terapia" - ficção baseada em factos reais

Para uns, ela é a terapeuta. Para outros, a professora da Faculdade de Psicologia de Lisboa, onde também se licenciou. A alguns pode soar familiar da televisão - participou no programa “Casados à Primeira Vista”. Agora é a autora. Luana Cunha Ferreira, 42 anos, 15 deles dedicado a casais e famílias, acaba de lançar o primeiro livro - Sete Casais em Terapia (Ego Editora). Faz terapia familiar, fundou a Casa Estrela do Mar, em Lisboa, que oferece serviços de psicologia a preços justos, e é mãe de dois filhos pequenos. 

Fala da psicologia com entusiasmo e diz que "tudo é relação". A sua ‘família’ é a do construtivismo. Para quem ver nisto um palavrão, Luana Cunha Ferreira, feminista e antirracista, explica: “Toda a terapia é política. Não vemos como algo individual, mas como ligado às estruturas de opressão.” Dá um exemplo: “Se tiver uma pessoa racializada a sofrer com ataques de pânico, não estou a fazer um bom trabalho se não perguntar por opressões racistas. Se estiver a cuidar de mães de recém-nascidos, não posso separar isso dos cuidados desiguais. O meu modelo é sistémico, ver o indivíduo como parte de um sistema.” Numa frase: “Nós, os sistémicos, trabalhamos uma abordagem atenta aos fenómenos económicos e sociais onde o casal está inserido.”

Quem é a Luana Cunha Ferreira?
Sou psicóloga clínica, essa é a base da base, sou terapeuta familiar, sempre me preocupei muito com casais e famílias e fiz a minha formação na Faculdade de Psicologia de Lisboa. Depois tive a sorte de ter encontrado a Esther Perel, que é hoje uma superstar. Foi numa conferência dela, no Porto, que desenhei o meu doutoramento. Ela falava sobre como manter o desejo em casais de longa duração, algo que todos querem, mas sobre o qual tinha pouca evidência científica, e tinha muito que ver com o que ela [Esther Perel] falava, a busca da autonomia. 

Por que decidiu escrever este livro, “Sete Casais em Terapia”?
Eu tinha arriscado fazer um programa de televisão - "Casados à Primeira Vista" - e logo a seguir a editora Ego entrou em contacto comigo. Não tinha pensado escrever nada sem ser artigos científicos. O livro não nasce de uma necessidade minha, não tive de contar uma história, mas podia escrever porque tinha este convite e achava que o devia fazer para falar de uma audiência diferente do habitual, que é a académica. Como falar para uma audiência mais vasta? 

Trabalhou com 250 casais em 15 anos. Isso é muito ou é pouco?
É imenso! Comecei a trabalhar logo quando terminei o mestrado. A princípio com famílias de risco e depois na prática de consultório com pessoas com uma condição socioeconómica mais elevada. Comecei a dar consultas em plena troika, não havia um mercado de psicologia para os mais novos, não era considerada uma necessidade tão primária como depois da pandemia. Tenho a sorte, ao longo dos anos, talvez pelo doutoramento [Tempo, intimidade e desejo sexual nas relações de casal: A diferenciação conjugal como paradoxo, 2013], de ter muita procura e lista de espera. 

Na altura da troika procuravam-nos casais no limite, em pré-divórcio, em alto conflito. O [psicólogo norte-americano] John Gottman diz que os casais sofrem seis anos a fio até pedirem ajuda. Não ficamos seis anos com um pé torcido. À medida que a psicologia e a saúde mental ficam mais em evidência, as pessoas pedem ajuda mais cedo. É uma ajuda que já não visa o remendo, mas a prevenção. Por exemplo, os casais que querem terapia antes de entrar na parentalidade ou casais que acham que há um assunto que não conseguem resolver. Para nós, é muito melhor trabalhar com alguma coisa que está unida, ainda que com fissuras. Trabalhamos melhor se houver melhores condições para trabalhar. 

Quando é que os casais sabem que precisam de terapia?
Não digo que ao mínimo problema se vá a correr para a terapia. Não sou partidária dessa ideia de que toda a gente precisa de terapia. Toda a gente precisa de investir no seu desenvolvimento pessoal, mas a terapia é um recurso escasso e energético relevante. Os casais têm de se conhecer. Se estiverem sempre bem não se vão conhecer, só vai acontecer no conflito, dissonância e distância. É bom que tentem resolver antes. A primeira coisa que o terapeuta vai perguntar é: o que têm feito para resolver esses problemas. Trabalhamos com as competências do casal. Devem vir para terapia quando já tentaram várias coisas. Devem vir quando há distância emocional, quando estão muito reativos, quantos nos sentimos sistematicamente pouco amados e ouvidos. Na prevenção da infidelidade, quando começamos a sentir atração por outras pessoas, se começam a sentir mais apoio emocional fora do casal, se não conseguem discutir, e não vou falar de violência, em que a terapia pode nem ser o mais indicado, e, principalmente nos casais heterossexuais, nas dificuldades na gestão doméstica. 

Em 60% dos meus casais há desigualdade entre o trabalho pago e o não pago. As mulheres têm muito mais trabalho não pago - a lista do supermercado, os filhos, a vida social e até as tarefas logísticas são da mulher. Em casais heterossexuais, as mulheres dizem muitas vezes que nunca mais querem viver com um homem. Têm a perceção de que perdem em estar numa relação coabitante com um homem, que ganha. 

O que mais leva os casais à terapia?
A desigualdade entre trabalho pago e não pago, o desejo sexual e satisfação, questões de comunicação são as razões mais frequentes para fazer terapia de casal. Isto tem que ver com o nosso sistema que nos faz sentir muito culpadas. As pessoas sentem-se mesmo muito culpadas.

A terapia familiar também também pode ser importante em questões que achamos que são individuais, como a depressão, ideação suicida ou perturbações do foro alimentar, que pode afetar um dos membros do casal. Em termos de intimidade e apoio, se as pessoas estiverem dispostas e tiverem recursos, podem beneficiar de terapia. Também pode haver um luto muito complicado - de um filho ou de alguém muito próximo. Ou stress pós-traumático, por exemplo, em homens que estiveram em guerras. Em Portugal, é uma coisa que se fala pouco, numa geração que está a envelhecer, mas os sintomas têm um efeito na vida familiar e devem ser endereçados na terapia familiar e individual. 

Qual é a sua abordagem como terapeuta?
Faz parte do nosso trabalho saber identificar o que pode contribuir para o aumento de sintomas, como questões de género, misoginia, racismo. Estas não são coisas que as pessoas aprendem na escola primária se sofrem disso. A maioria das mulheres que recebo acham que não. Mas depois começamos a avaliar e se calhar isso é uma herança do patriarcado. Estudamos conceitos de homofobia internalizada. Se cresço numa sociedade misógina é impossível eu não ser um bocadinho. Não pode não haver uma abordagem sistémica, atenta a influências negativas que possa ter nos nossos clientes, se identificarmos que isso está a acontecer. 

Quais são os sinais de alerta a que devemos estar atentos? 
Os limites são uma coisa muito importante. As famílias gostam de ter bons limites, são permeáveis, mas limitam a intrusividade. Os casais e famílias com visões muito rígidas, e um grande afastamento emocional entre as pessoas, se calhar, é melhor fazer terapia. Ou onde os limites são muito difusos: onde os pais são muito intrusivos na vida dos filhos, onde não há hierarquias, ou os pais que são os melhores amigos, ou casais que têm os mesmos amigos, trabalham juntos, têm a mesma rede social, onde não há sensação de autonomia. Muita proximidade destrói os casais. Tornam-se os melhores amigos e depois perde-se o desejo. Tudo o que esteja nos extremos [pode ser um sinal de alerta]. Não porque esteja certo ou errado mas porque pode criar angústia, ansiedade.  

Outro sinal de alerta: conflitos e discussões. E a frequência, intensidade e impacto das discussões. É diferente discutir com o namorado por um ciuminho ou ficar semanas a carburar numa discussão. E questões de sexualidade. 

O seu livro tem histórias de sete casais fictícios. Quais são os traços comuns aos 250 casais com quem fez terapia?
Não tinha um número fixo, quando comecei a escrever, estes sete casais são uma síntese desses 250. Claro que há grandes temas. Também já tratei coisas que só vi num casal específico. Casais de adultos muito mais velhos, com 80 ou 90, com grandes zangas familiares não se apanham muito. São mesmo muito específicos.

As sete histórias de casais são as que tive tempo de escrever. Tomaram uma vida própria e comecei a vê-los com muita clareza. Estão ali os principais temas.

Organizei de uma forma etária: adolescentes com uma grande precariedade económica. Uma mulher afrodescendente criada numa família branca que se começa a questionar sobre uma data de coisas do Portugal descobridor, e em que o casal começa a confrontar-se com isso. Aí tem também uma questão de depressão. Outros são Diana e David, um casal muito comum. São todos muito organizadinhos. Nasce um bebé e não é nada assim. A deceção dela é life changing [muda a vida]. Eles [homens] sentem-se muito incompetentes e há até uma incompetência estratégica. Há um casal de famílias reconstituídas - os meus, os teus e os nossos filhos, como é chegar a uma relação nova? Temos a Anita e o Alex, que estão em monogamias consensuais, em que as pessoas acordam estar juntas. Um casal de homens que não consegue discutir bem, perdem logo a cabeça, é do mais comum que há. Aqui, há uma questão com o VIH. As pessoas com VIH têm uma esperança de vida igual a outras, mas o estigma não desapareceu. 

E o livro acaba mal, no caso da Nazaré e do Nicolau, em que há uma grande traição. Infidelidade e traições são muito comuns, e dependem de casal para casal, de como negoceiam o que é infidelidade. Neste caso, é o envolvimento com várias pessoas ao longo de vários meses. As pessoas podem não ter essa ideia, mas em terapia de casal fazemos muitos divórcios. Ajudamos a fazer muitos divórcios.

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