O cruzeiro que era suposto "nunca acabar" foi cancelado. E muitos venderam a casa para viver nele

CNN , Julia Buckley
1 dez 2023, 12:00
O cruzeiro de três anos da Life at Sea foi cancelado. Life At Sea Cruises

Alguns dos passageiros que reservaram os 111 camarotes ainda se encontram em Istambul, tendo chegado antes da data de partida inicial. Outros dizem que não têm para onde voltar, venderam ou arrendaram as suas casas antes da viagem à volta ao mundo, e desfizeram-se dos seus bens

Tinham-se inscrito para a experiência de uma vida: três anos a viajar pelo mundo no conforto de um navio de cruzeiro, a preços que rivalizavam com os custos de vida normais.

Mas agora o sonho acabou para os passageiros que se inscreveram na viagem inaugural de três anos da Life at Sea Cruises. Após semanas de silêncio, a empresa admitiu aos passageiros que não tem navio e cancelou a partida, prometendo reembolsar os passageiros que se inscreveram no cruzeiro que custava centenas de milhares de dólares.

O cruzeiro deveria ter partido de Istambul, na Turquia, a 1 de novembro, mas pouco antes dessa data, a partida foi adiada para 11 de novembro e transferida para Amesterdão, nos Países Baixos, e depois para 30 de novembro, novamente de Amesterdão. Mas a 17 de novembro, menos de duas semanas antes da terceira data de partida, os passageiros foram informados de que o cruzeiro tinha sido cancelado.

Alguns dos passageiros que reservaram os 111 camarotes ainda se encontram em Istambul, tendo chegado antes da data de partida inicial. Outros dizem que não têm para onde voltar, venderam ou arrendaram as suas casas antes da viagem à volta ao mundo, e desfizeram-se dos seus bens.

A maioria gastou dezenas de milhares de dólares naquilo que era suposto ser a experiência de uma vida, e agora enfrenta uma espera de, pelo menos, vários meses para receber o seu dinheiro de volta. A empresa afirmou que irá efetuar os reembolsos em prestações mensais, a partir de meados de dezembro e até ao final de fevereiro. Ofereceu-se também para pagar o alojamento até dia 1 de dezembro e os voos de regresso a casa para todos os que ficaram retidos em Istambul. Mas há quem diga que não tem casa para onde regressar.

"Muitas pessoas não têm para onde ir, e algumas precisam do reembolso para definir um lugar para onde ir - a situação não é boa neste momento", disse um passageiro, que quis manter o anonimato até receber o reembolso prometido.

Às voltas

A Life at Sea Cruises tinha planeado comprar o AIDAaura, um navio dispensado este verão pela AIDA Cruises, uma subsidiária alemã da Carnival Corp. O navio passaria a chamar-se MV Lara. A empresa tinha inicialmente previsto que a venda se concretizasse no final de setembro, para começar a trabalhar no navio em doca seca na Alemanha e remodelá-lo antes de zarpar para Istambul para iniciar o cruzeiro.

Mas a 16 de novembro, após seis semanas de incerteza, durante as quais a Life at Sea informou repetidamente os seus clientes de que a venda estava a demorar mais tempo do que o previsto, a Celestyal Cruises anunciou que tinha comprado o AIDAaura.

Um dia mais tarde, a ex-CEO da Life at Sea, Kendra Holmes, que se tinha demitido dias antes e que afirmou não estar a falar em nome da empresa-mãe Miray Cruises, gravou um vídeo de 15 minutos para os passageiros, no qual admitia que o cruzeiro não se iria realizar. Não se sabe ao certo por que razão Holmes foi escolhida para fazer o anúncio, ao qual a CNN teve acesso. Holmes não quis fazer comentários.

Quarenta e oito horas depois do vídeo de Holmes, os passageiros receberam uma mensagem de Vedat Ugurlu, proprietário da Miray Cruises, que detém a Life at Sea. Declarando-se "extremamente arrependido pelo incómodo", confirmou que o cruzeiro não iria partir como planeado. A razão: não tinham dinheiro para comprar o navio.

Na sua mensagem, Ugurlu afirmava que "a Miray não é uma empresa suficientemente grande para pagar 40-50 milhões por um navio", mas que tinha "apresentado o projeto a investidores e obtido a aprovação oficial de alguns para comprar o navio".

Ele disse que, embora a empresa tivesse feito o pagamento inicial do navio, os investidores "recusaram-se a continuar a apoiar devido à instabilidade no Médio Oriente".

O Hamas atacou Israel a 7 de outubro, uma semana após a data prevista para a conclusão da venda do navio. A Life at Sea não respondeu à questão sobre a que perturbações anteriores se referia e que poderiam ter impedido a conclusão da transação.

No mesmo dia, Ugurlu também disse aos passageiros que a empresa tentou comprar outro navio, mas não conseguiu, e estava a negociar um terceiro.

"Se não pudermos navegar a 1 de dezembro, indicaremos outra data de partida ou devolveremos o valor pago num curto espaço de tempo", escreveu. "Tentámos tudo para tornar os vossos sonhos realidade e continuaremos a fazê-lo."

Acrescentou que, teoricamente, a empresa poderia lançar o cruzeiro no MV Gemini, o navio mais pequeno da Miray, no qual tinha inicialmente planeado a viagem, antes de decidir que era demasiado pequeno.

"Optámos por não o fazer porque vos prometemos um navio maior e mais recente", justificou. O Gemini está no centro de um processo de difamação movido pela Miray contra o antigo CEO da Life at Sea Cruises, Mikael Petterson, que foi um dos vários funcionários que se separaram da equipa em maio. A ação judicial alega que Petterson chamou ao navio "não navegável", uma afirmação que a Miray negou veementemente.

Altos e baixos

A Miray Cruises tinha-se comprometido a renovar o navio AIDAaura. Life At Sea Cruises

Apenas um dia depois do vislumbre de esperança de Ugurlu, outro membro da equipa da Life at Sea, o diretor de operações Ethem Bayramoglu, enviou uma mensagem aos passageiros a confirmar que o cruzeiro tinha sido cancelado. "Caso não tenha ficado claro, o cruzeiro Life at Sea foi cancelado", escreveu Bayramoglu, dando instruções sobre o processo de reembolso e como os passageiros podem recuperar os seus pertences conforme a prova de entrega [Proof of delivery], que tinham enviado antes da data de início do cruzeiro.

Ao mesmo tempo acrescentou que a empresa "tenciona honrar os seus compromissos".

"Apesar de estarmos todos desapontados e frustrados por não termos podido navegar desta vez, é importante para nós que fiquem satisfeitos com a experiência connosco", lê-se na mensagem. "A Vedat, em particular, continua a ter esperança de que o Miray venha a ter, em breve, uma opção a considerar."

Bayramoglu encontrou-se depois com os passageiros retidos em Istambul para os ajudar a planear o regresso a casa.

Águas tempestuosas

Os passageiros, que preferem manter o anonimato até receberem o reembolso, contaram à CNN o choque e consternação que sentiram ao saberem que a viagem tinha sido cancelada. Alguns venderam as suas casas ou fecharam negócios para se juntarem ao cruzeiro.

"Estou muito triste, zangado e perdido", assumiu um deles. "Tinha planeado os próximos três anos para viver uma vida extraordinária e agora [não tenho] nada. É muito difícil seguir em frente. Sentia-me orgulhoso e corajoso, mas agora não confio em nada nem em ninguém. Sei que tudo se vai resolver e que a vida vai continuar, mas não sei bem em que direção."

Outro afirmou sentir-se "incrivelmente triste e traído".

"A empresa parece não ter qualquer consideração pelo que fez com as nossas vidas", afirmaram. "Nunca imaginei que me encontraria nesta situação enquanto pessoa idosa".

Lamentaram também a perda da comunidade que tinha sido criada no período que antecedeu o cruzeiro: "Estava mesmo ansioso por fazer amigos, era isso que o tornava diferente de um cruzeiro normal. Tínhamos todos a mesma mentalidade e muitas coisas em comum."

Outro passageiro, que falou pouco antes da confirmação do cancelamento do cruzeiro, disse sentir-se "desiludido, enganado e traído".

Abandonar o barco

O cruzeiro prometia levar os passageiros à volta do mundo durante três anos. Life At Sea Cruises

Entretanto, a ex-CEO da Life at Sea, Kendra Holmes, que se demitiu a semana passada, afirma que está a planear oferecer um novo cruzeiro com outra empresa.

Num vídeo de 15 minutos dirigido aos passageiros da Life at Sea, na sexta-feira, apesar de já se ter demitido da empresa, Holmes deu a entender que irá oferecer um cruzeiro de longo curso à volta do mundo, através de uma nova empresa com a qual irá trabalhar, a que chamou HLC Cruises.

Holmes não respondeu às perguntas da CNN, mas um porta-voz da HLC Cruises, que afirmou fazer parte do conselho de administração da empresa, confirmou que Holmes era a nova CEO da empresa e disse à CNN: "Não temos nada a ver com a Life at Sea, não queremos que o nosso nome seja associado a eles, e estamos a trabalhar em algo e a tentar ajudar as pessoas que ficaram sem casa, se pudermos." O site da HLC Cruises anuncia "navios de cruzeiro de luxo" que vendem a bordo barras de ouro, diamantes e pedras preciosas isentas de impostos.

Holmes disse aos passageiros retidos da Life at Sea que, se 60 ou 70 deles se "transferissem" para a nova empresa, conseguiriam "meter alguma coisa a funcionar" até à primeira semana de dezembro, e que já tinham a aprovação da direção da HLC para o fazer.

A empresa arranjaria um navio temporário para navegar durante três ou quatro meses, disse, enquanto comprava um navio permanente para uma viagem mais longa a começar no próximo ano. Se os passageiros da Life at Sea não aceitarem a oferta, a empresa irá considerar a possibilidade de lançar um cruzeiro de longo curso em outubro de 2024.

"Há muitos navios por aí, por isso vamos conseguir algum, provavelmente no início da próxima semana, e depois começaremos a procurar um navio permanente", disse a 17 de novembro - antes de os atualizar através das redes sociais, 72 horas depois, informando que a oferta de um cruzeiro temporário estava, na verdade, cancelada, e que a HLC estava "a apontar para uma data oficial de início algures em março".

"Mais uma vez, as pessoas voltaram a ter esperanças, que se desvaneceram alguns dias mais tarde. Surpreende-me que ninguém do grupo tenha tido um ataque cardíaco", comentou um passageiro.

Entretanto, a Villa Vie Residences, a empresa criada por Petterson e pelos outros antigos funcionários da Life at Sea, que saíram em maio para criar a sua própria empresa concorrente, promete depósitos baixos e taxas introdutórias garantidas a quem se quiser juntar a eles. Ainda não têm um navio nem data de lançamento.

A Life at Sea Cruises e a Miray Cruises não responderam a algumas perguntas da CNN, mas enviaram uma declaração de Ugurlu dirigida aos passageiros, citando a "retirada dos investidores" que está a provocar "dificuldades" ao projeto. A carta foi enviada à CNN a 21 de novembro e falava de uma possível próxima data para o cruzeiro - apesar de o cruzeiro já ter sido cancelado.

"Enquanto estamos a discutir a aquisição de um navio semelhante, se a partida de 1 de dezembro estiver comprometida, oferecemos datas de partida alternativas ou reembolsos rápidos", lê-se no comunicado, que descreve o processo de reembolso.

"À medida que enfrentamos estes desafios, estamos a trabalhar ativamente na criação de planos alternativos, garantindo uma experiência inesquecível para a nossa valiosa comunidade", conclui o comunicado.

"Lamento qualquer inconveniente e garanto-vos o nosso compromisso."

No entanto, um dos passageiros do cruzeiro sente-se mais do que incomodado.

"Estou incrédulo por nos terem feito isto", desabafou, acrescentando que toda a gente começou "entusiasmada e confiante e, nos últimos meses, desapareceu tudo lentamente".

"Não consigo sequer perceber a magnitude da desilusão por perder esta oportunidade. Acho que eles nunca vão perceber os danos que nos causaram."

 

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