Foi multado por excesso de velocidade? Foi condenado a pagar uma indemnização? Saiba se vai ser "perdoado" com a Lei da Amnistia que entra hoje em vigor

1 set 2023, 07:00
Velocidade

Depois de muita controvérsia em torno da constitucionalidade da proposta de lei do Governo, esta sexta-feira entra finalmente em vigor a Lei da Amnistia que estabelece o perdão de penas e amnistia de infrações praticadas por jovens

"Não é um direito, mas sim uma clemência do Estado" por ocasião da Jornada Mundial da Juventude (JMJ) e é assim que a Lei da Amnistia deve ser entendida, na perspetiva do advogado Paulo Saragoça da Matta, que não compreende as críticas em torno da suposta violação do princípio de igualdade.

A lei, que entra hoje em vigor, estabelece limites etários para perdoar penas e infrações cometidas até 19 de junho deste ano. Ou seja, só serão perdoadas penas e amnistiadas infrações praticadas por pessoas com idades compreendidas entre os 16 e os 30 anos à altura dos factos. E mesmo assim há exceções - há um artigo na lei que não refere qualquer limite de idade e que está a gerar algumas dúvidas de interpretação, mesmo entre advogados. Mas já lá vamos.

Afinal, quem está abrangido por esta lei?

Até ser aprovada pelo Parlamento e promulgada pelo Presidente da República, a proposta de lei do Governo foi alvo de várias críticas e sofreu algumas alterações do PS e do PSD. A proposta inicial já condicionava o perdão e amnistia aos crimes cometidos por pessoas dos 16 aos 30 anos de idade à data dos factos, o que suscitava várias dúvidas quanto à sua constitucionalidade por poder violar o princípio da igualdade.

A verdade é que a proposta de lei aprovada manteve os mesmos limites etários, com o Governo a justificar a decisão com o facto de a amnistia ter sido criada "tendo como foco a faixa etária dos destinatários centrais da JMJ, que teve como principais protagonistas os jovens". "Especificamente, foram considerados os jovens a partir da maioridade penal, e até perfazerem 30 anos, idade limite das Jornadas Mundiais da Juventude", salienta o Ministério da Justiça, numa resposta escrita enviada à CNN Portugal. 

Além dos limites etários, a Lei da Amnistia estabelece uma outra condicionante: só serão amnistiadas as infrações cometidas até ao dia 19 de junho deste ano.

Perdão de penas e amnistia de infrações - qual a diferença?

Com a entrada em vigor desta lei, todas as pessoas, com idades compreendidas entre os 16 e os 30 anos à data dos factos, e condenadas com penas de prisão até oito anos, vão ver a sua pena reduzida um ano. Isto desde que o crime tenha sido praticado até ao dia 19 de junho. Quer isto dizer que uma pessoa que já esteja a cumprir uma pena de prisão de oito anos, por exemplo, vê a sua sentença reduzida para sete anos.

Já no caso de pessoas condenadas a penas de multa até 120 dias a título principal ou em substituição de penas de prisão, ou pena de prisão subsidiária resultante da conversão da pena de multa ou por não cumprimento da pena de multa, a lei prevê um perdão total. Ou seja, nestes casos, e ao contrário do que está previsto nas penas de prisão até oito anos, "não se trata de um desconto de um ano, mas de um perdão da integridade da pena", explica à CNN Portugal a advogada Vânia Costa Ramos, especialista em Direito Penal.

Além do perdão de penas, a lei prevê ainda a amnistia de infrações de penas não superiores a um ano de prisão ou a 120 dias de multa, como é o caso do crime de injúria, geralmente punido com pena de prisão até três meses ou com pena de multa até 120 dias.

Um outro exemplo de uma infração que pode ser amnistiada nestes termos diz respeito a um caso de introdução em lugar vedado ao público, que é punido com pena de prisão até três meses ou pena de multa até 60 dias. "Se o processo estiver pendente, será arquivado", assume a advogada Vânia Costa Ramos.

A diferença entre o perdão e a amnistia tem a ver precisamente com o estado do processo criminal, como explicam os advogados à CNN Portugal.

"O perdão é diferente da amnistia pois o primeiro apenas tem impacto na pena, e a amnistia pode ter impacto no próprio processo que pode ser logo arquivado, mesmo que ainda não tenha sido decidido", esclarece a advogada. O mesmo refere Paulo Saragoça da Matta, reforçando que os processos em curso, uma vez amnistiados, deixam mesmo de ser investigados. "O processo morre por aqui", salienta.

Que crimes serão perdoados e/ou amnistiados?

O perdão e a amnistia estabelecidos nesta lei não estão definidos em função dos tipos de crime, mas sim em função da pena aplicada, podendo aplicar-se a qualquer crime - desde que não esteja incluído nas exceções previstas (que são várias).

É mais fácil, por isso, indicar a lista de crimes que não serão perdoados nem amnistiados:

  • crimes de homicídio e infanticídio;
  • crimes de violência doméstica e de maus-tratos;
  • crimes de ofensa à integridade física grave, mutilação genital feminina, tráfico de órgãos humanos, ofensa à integridade física qualificada;
  • crimes de coação, perseguição, casamento forçado, sequestro, escravidão, tráfico de pessoas, rapto, tomada de reféns;
  • crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual;
  • crimes contra o património;
  • crimes de abuso de confiança ou burla, quando cometidos através de falsificação de documentos;
  • crimes de extorsão;
  • crimes contra a identidade cultural e integridade pessoal, os condenados por crimes de discriminação e incitamento ao ódio e à violência, bem como por crimes de tortura e outros tratamentos cruéis, degradantes e desumanos;
  • crimes contra a vida em sociedade, designadamente, incêndio, explosão, incêndio florestal, danos contra a natureza e poluição;
  • condução perigosa de veículo rodoviário, condução sob o efeito de álcool ou drogas, bem como os crimes de associação criminosa;
  • crimes contra o Estado, como o branqueamento, a corrupção, o tráfico de influência, entre outros;
  • crimes de terrorismo, fraude na obtenção de subsídio, fraude na obtenção de cartão de crédito, auxílio à imigração ilegal, tráfico de droga, crimes previstos na Lei do Cibercrime, entre outros crimes;

A Lei da Amnistia deixa de fora ainda o perdão de "condenados por crimes praticados contra crianças, jovens e vítimas especialmente vulneráveis", bem como os "condenados por crimes praticados enquanto titular de cargo político ou de alto cargo público, magistrado judicial ou do Ministério Público, no exercício de funções ou por causa delas" e os reincidentes. Também não serão perdoados "os membros das forças policiais e de segurança, das forças armadas e funcionários relativamente à "prática, no exercício das suas funções, de infrações que constituam violação de direitos, liberdades e garantias pessoais dos cidadãos, independentemente da pena", e ainda os "autores das contraordenações praticadas sob influência de álcool ou de estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo".

E nos casos em que a pessoa foi condenada por vários crimes?

Imagine-se um cenário em que alguém foi condenado em cúmulo jurídico, isto é, praticou vários crimes em concurso, tendo sido condenado numa pena única por esses crimes. Nesse caso, o perdão apenas abrange a pena única aplicada, esclarece Vânia Costa Ramos.

Recebeu uma multa por excesso de velocidade? Vai mesmo ter de pagar (mas há uma boa notícia)

A proposta de lei apresentada inicialmente pelo Governo chegou a prever um regime de amnistia para contraordenações até 1.000 euros, o que incluía multas de trânsito. Mas a proposta de lei aprovada na Assembleia da República deixou cair essa possibilidade, mantendo, contudo, a amnistia a penas acessórias relativas a essas mesmas contraordenações, como a inibição de conduzir, desde que tenham sido cometidas até 19 de junho. E isto independentemente da idade.

Na prática, se tem mais de 30 anos e recebeu uma coima não superior a 1.000 euros por uma contraordenação grave ou muito grave na estrada, praticada até ao dia 19 de junho deste ano, já não vai ter de entregar a carta. Ainda assim, o pagamento da coima continua a ser obrigatório e a infração ficará sempre registada, mantendo-se igualmente o sistema de pontos.

É neste ponto que alguns advogados admitiram ter algumas dúvidas, inclusive a advogada Vânia Costa Ramos. "Porquê neste caso não limitar àqueles que tinham entre 16 e 30 anos à data da prática da infração? Porque se excluíram as sanções principais?", questiona a advogada, que lembra ainda que, tendo em conta os limites etários, "um dos campos de maior aplicação será o das contra-ordenações rodoviárias". Ora, "tendo em conta os graus de sinistralidade rodoviária em Portugal, porquê perdoar as sanções acessórias neste domínio (a inibição de conduzir, por exemplo)?", interroga-se ainda.

Foi condenado a pagar uma indemnização? Pode não ter de pagar

Nos casos em que um arguido é condenado ao pagamento de indemnização por danos causados com a prática de um crime, ou ao pagamento de reparação à vítima, a Lei da Amnistia estabelece que o perdão só é concedido se o pagamento for efetuado nos 90 dias "imediatos" à notificação do condenado para o efeito. Contudo, a mesma lei prevê que o perdão pode ser concedido "caso o titular do direito de indemnização ou reparação não declare que não foi indemnizado ou reparado".

Na opinião da advogada Vânia Costa Ramos, esta condição pressupõe que o beneficiário da indemnização será "notificado para declarar se foi ou não já indemnizado ou reparado". Ora, se a vítima que tem direito à indemnização "não se importar com o não pagamento, é porque não se opõe a que a pessoa [o condenado] beneficie do perdão", conclui o advogado Paulo Saragoça da Matta.

"Isto não significa que o beneficiário deixe de ter direito à indemnização. Quer dizer que a pessoa não se importa que o arguido/condenado daquele processo beneficie do perdão ou da amnistia, mas o beneficiário pode vir a pedir a indemnização posteriormente, num processo executivo", nota o advogado.

Quantas pessoas vão beneficiar do perdão e da amnistia previstas nesta lei?

A CNN Portugal contactou o Ministério da Justiça no sentido de perceber a quantidade de crimes perdoados e infrações amnistiadas no âmbito da Lei da Amnistia, mas a tutela, citando a Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, considerou "prematuro avançar com um número de pessoas privadas da liberdade que podem vir a beneficiar do perdão de penas e da amnistia e, no imediato, sair em liberdade".

Isto porque, justificou o Ministério, "a projeção de qualquer valor é complexa de fazer, atento o facto de as decisões judiciais que serão tomadas se balizarem num limite de idade e no cruzamento de múltiplas variáveis jurídico-penais (como, por exemplo, haver reincidência ou prática de crimes constantes".

A advogada Vânia Costa Ramos admite que "é muito difícil antever quantos casos poderão beneficiar" da Lei da Amnistia e estima mesmo que, "se forem muito residuais, o efeito da lei ficará aquém" da intenção inicial. "A motivação (pelo menos inicial) foi a de utilizar uma medida de clemência que beneficiaria sobretudo os condenados que praticaram crimes numa fase de juventude em que muitas vezes são tomadas decisões de vida erradas, redundando por vezes na prática de crimes, dando-lhes assim uma oportunidade adicional para mais rapidamente se reintegrarem na sociedade. Não sei se a lei, com a redação final que lhe foi dada, conseguirá plenamente atingir este desiderato, pois a lista de exclusões de crimes é muito alargada", problematiza a advogada.

Como vai decorrer o processo de libertação dos presos?

Quanto à forma como o processo irá decorrer, a tutela indica que "o mecanismo de libertação será o que é seguido em qualquer outra situação ou de uma pessoa que tem de ser libertada". "Ou seja, os estabelecimentos recebem dos tribunais o mandado de libertação e executam-no, sendo que para as pessoas que beneficiarão do ano de perdão na pena, mas que ainda não estão em condições temporais de saírem em liberdade, é feito o reajuste dos marcos da pena para efeitos de apresentação dos respetivos processos, atempadamente e nas novas datas", indicou o Ministério da Justiça.

A iniciativa de requerimento pode partir tanto do arguido, como do Ministério Público ou oficiosamente, consoante a fase processual, e "são os tribunais que decidirão a libertação de cada cidadão", esclareceu a tutela.

A Lei da Amnistia estabelece ainda que os tribunais têm até 60 dias após a entrada em vigor da lei para proceder ao reexame de pressupostos, isto é, para para decidir se o condenado mantém as medidas de coação da prisão preventiva e/ou de obrigação de permanência na habitação (vulgo prisão domiciliária), "ponderando-se a possibilidade de revogação face à pena previsível em consequência da aplicação da lei".

O beneficiário pode recusar o perdão ou a amnistia?

A lei refere que apenas os beneficiários de amnistias por infrações penais podem requerer, no prazo de dez dias a contar da entrada em vigor do decreto-lei, que a amnistia não lhes seja aplicada.

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