"Pode chegar-se a um ponto em que já não exista tratamento. Isto não é ficção": aumento de infeções sexuais em Portugal pode gerar problema de saúde pública

7 mar, 21:11
Preservativo (Pexels)

Apesar dos esforços na sensibilização, o uso do preservativo nas relações sexuais é visto cada vez mais como "um obstáculo ao prazer". "Os rapazes não querem usar" e "há muitas raparigas que também não gostam", indica a sexóloga Vânia Beliz, que costuma trabalhar com jovens nas escolas. Uma prática que, segundo o infecciologista António Sarmento, pode vir a criar um problema de saúde pública

O alerta do Centro Europeu de Prevenção e Controlo das Doenças (ECDC) para um “aumento significativo” de infeções sexualmente transmissíveis (IST), sobretudo entre os mais jovens, não surpreende os especialistas, que todos os dias se deparam com casos de gonorreia, sífilis, clamídia, entre outros. “No meu serviço isso nota-se claramente”, indica à CNN Portugal António Sarmento, diretor do serviço de Infecciologia do Hospital de São João, que alerta que, a este ritmo, há uma IST em específico que pode deixar de ter tratamento.

Trata-se da gonorreia, que, segundo os dados do ECDC, está entre as IST que mais aumentaram em 2022, com mais de 70 mil casos notificados só nesse ano. Portugal está entre os países onde se verifica um aumento mais acentuado (superior a 50%) desta infeção. Segundo António Sarmento, enquanto as bactérias das restantes IST ainda resistem ao tratamento, o mesmo já não acontece com a gonococos, o agente da gonorreia que está a resistir cada vez mais aos antibióticos. “Quanto mais casos existem, mais antibióticos se usam e mais se selecionam as bactérias resistentes. O gonococos tem tido a capacidade de desenvolver resistência às quinolonas, à penincilina e cefalosporinas, por exemplo. Portanto, pode-se chegar a um ponto em que já não exista tratamento. Isto não é ficção”, adverte o infecciologista, que acredita que, se tal acontecer, "vai com certeza" tornar-se um problema de saúde pública.

Este alerta contraria a ideia que tem servido de argumento para quem não utiliza o preservativo nas relações sexuais - prática que, segundo os especialistas, justifica esta tendência de aumento das IST, sobretudo entre os jovens dos 20 aos 24 anos. Pelo menos, é essa a experiência da sexóloga Vânia Beliz, que costuma ir às escolas falar precisamente deste tema. “O que acontece hoje em dia - e o que eu vejo quando vou às escolas - é que há uma falsa sensação de segurança entre os jovens, como se as coisas só acontecessem aos outros. E o facto de a maioria das doenças sexualmente transmissíveis terem cura faz com que muitos pensem ‘se acontecer, eu logo trato’”, começa por contar.

“O problema é que algumas destas infeções têm consequências muito graves, até ao nível do aparelho reprodutor. Ou seja, há pessoas que podem ficar com problemas graves e dificuldades como disfunções eréteis. Isto não são coisas com que nós podemos lidar dizendo ‘se acontecer, tomo uns comprimidos e logo passa’”, vinca.

"O preservativo ainda é visto como um obstáculo ao prazer"

A sexóloga rejeita a ideia de que esta tendência esteja associada a uma “banalização” das relações sexuais, mas antes “a um descuido ao nível da proteção”. E esse descuido deve-se a vários fatores, começando desde logo pelo desinvestimento na contraceção desde os anos 90, altura em que se investiu muito em campanhas de sensibilização para a SIDA, como foco na importância da utilização do preservativo. 

“Mas acima de tudo é uma questão da falsa crença, de não se ter consciência do risco, porque se privilegia o prazer e o preservativo ainda é visto como um obstáculo ao prazer, o que é um erro”, aponta Vânia Beliz, relatando situações comuns entre os mais jovens, como os rapazes ou raparigas que “não querem usar” preservativo, confiando na pílula contracetiva como se de um método de prevenção de IST se tratasse, ou por sentirem que o preservativo lhes retira o prazer. Isto para o preservativo masculino e também para o feminino, sendo que este último "praticamente não tem adesão", diz a sexóloga, apontando que este método "tem de ser colocado dentro da vagina" e, por isso, "existe muita dificuldade na sua colocação". "A maioria das mulheres nunca experimentou e nem está disponível para usar", acrescenta.

Além disso, acrescenta, “a maior parte das pessoas, quando usam preservativo, utilizam-no para as relações penetrativas”, descurando-o dos restantes atos sexuais, como o sexo oral, em que “quase ninguém usa” esse método. “Ninguém vai cortar um preservativo na hora do sexo para fazer sexo oral”, diz a sexóloga, lembrando que o risco é igual para o feminino como para o masculino.

Apesar destas “falsas crenças” e dos constrangimentos associados ao uso do preservativo, os especialistas sublinham que “não existe nenhuma outra proteção para as infeções sexualmente transmissíveis”.

"A forma como ensinamos esta matéria é pouco apelativa para os jovens"

Mas também a educação sexual nas escolas tem de mudar, defende Vânia Beliz, argumentando que “a forma como se está a ensinar esta matéria é pouco apelativa para os jovens”. “Nós não queremos que eles cheguem ao médico e digam ‘estou com uma sífilis ou com uma gonorreia’. Queremos, isso sim, que eles percebam que, se detetarem alguma alteração nos órgãos genitais depois de uma relação sexual desprotegida, se desloquem ao médico”, vinca. Na perspetiva da sexóloga, é importante, por isso, “mudar a forma de comunicar com os jovens sobre estes temas, de modo a que eles percebam a importância da proteção para a saúde sexual e reprodutiva” e deixar claro que “o facto de as IST terem tratamento não quer dizer que deixem de ter consequências”. 

Os especialistas alargam este alerta à população adulta e aos seniores, lembrando que todos correm risco no que diz respeito às relações sexuais desprotegidas. “Existem infeções que causam feridas, outras que causam corrimentos, alterações da genitália, comichão, ardor, existem várias sintomatologias”, enumera a sexóloga. “O que é importante é que, perante uma situação destas e em que a pessoa sabe que teve uma relação sexual desprotegida, tem de procurar um médico”, seja através da linha SNS24, seja numa Unidade de Saúde Local, onde pode fazer testes específicos para detetar a infeção. 

A especialista apela também à realização de rastreios das IST com alguma regularidade, lembrando o exemplo de outros países, como a Alemanha, onde estes rastreios são bastante comuns, havendo quem os faça mensalmente. Também em Portugal temos esta hipótese, lembra a sexóloga, lembrando que nas farmácias é possível comprar “rastreios rápidos” que detetam os anticorpos do Vírus da Imunodeficiência Humana (VIH) e dos Vírus da Hepatite B e C, através de algumas gotas de sangue após uma picada num dedo

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