Este é o “momento Lehman Brothers” da China?

CNN , Laura He e Mengchen Zhang
25 ago 2023, 08:00
Evergrande (Associated Press)

Grande fundo de investimento deixa de fazer pagamentos

Um grande fundo de investimento chinês falhou pagamentos devidos a investidores empresariais, dando origem a um raro protesto e aumentando as preocupações de que a queda do mercado imobiliário chinês possa desencadear uma crise financeira mais vasta.

Nas últimas semanas, pelo menos três corporações chinesas - a Nacity Property Service, a KBC Corporation e a Xianheng International Science and Technology - afirmaram, em declarações separadas na bolsa de valores, que o Zhongrong Trust não tinha conseguido pagar os juros e o capital de vários produtos de investimento. O montante dos pagamentos em falta excedeu 110 milhões de yuan (cerca de 14 milhões de euros), segundo as suas declarações.

A Zhongrong Trust, que geria fundos no valor de 80 mil milhões de euros para clientes empresariais e particulares ricos no final de 2022, é uma das milhares de empresas de gestão de ativos na China que oferecem níveis relativamente elevados de retorno aos investidores.

Estas companhias são consideradas parte da “banca sombra”, sector paralelo que constitui uma importante fonte de financiamento na China. O termo refere-se geralmente à atividade de financiamento que tem lugar fora do sistema bancário formal, quer pelos bancos através de atividades extrapatrimoniais, quer por instituições financeiras não bancárias, como este tipo de fundos (trusts).

Sendo uma parte enorme e misteriosa da paisagem financeira da China, a “banca sombra” tem estado sob as luzes da ribalta à medida que investidores mundiais se preocupam com o futuro da segunda maior economia do mundo.

As preocupações com a Zhongrong aumentaram esta semana desde o aparecimento de vídeos nas redes sociais que mostram um protesto à porta do seu escritório em Pequim.

Foram registados cerca de uma dúzia de manifestantes furiosos a entoar slogans e a exigir pagamentos relacionados com produtos de investimento emitidos pela empresa, de acordo com vídeos publicados nas redes sociais Douyin e WeChat, e que foram vistos pela CNN. Os vídeos parecem ter sido carregados na quarta e na quinta-feira.

A empresa não respondeu a um pedido de comentário da CNN.

Na segunda-feira, a Zhongrong emitiu um comunicado dizendo que “criminosos” tinham enviado avisos falsos aos clientes sobre o cancelamento de produtos de investimento. A empresa avisou os investidores para estarem atentos às fraudes, mas não comentou a questão dos pagamentos em falta aos investidores.

A Zhongrong está ligada ao Grupo Zhongzhi, um dos maiores conglomerados privados da China, que opera nos sectores dos serviços financeiros, da exploração mineira e dos veículos eléctricos. As principais unidades financeiras do grupo têm mais de mil milhões de yuans (126 mil milhões de euros) de fundos sob gestão, de acordo com uma declaração publicada no seu sítio Web em dezembro.

A notícia da falta de pagamentos da Zhongrong desencadeou reações de pânico nas redes sociais, uma vez que parecia confirmar a especulação online do início do ano de que o Grupo Zhongzhi tinha sofrido uma crise de liquidez e interrompido o reembolso de alguns dos seus numerosos produtos de investimento.

Nos últimos dias, os investidores afluíram aos fóruns online das bolsas de Xangai e Shenzhen, perguntando a muitas empresas cotadas se tinham alguma exposição aos produtos da Zhongrong.

Os investidores receavam que o “contágio” se propagasse à indústria de fundos de investimento de 2,7 biliões de euros do país, escreveram os analistas do Citi num relatório de análise de quarta-feira. Isto porque o sector há muito que está exposto ao conturbado sector imobiliário chinês, atualmente mergulhado na sua pior recessão de sempre.

Mas os “riscos sistémicos” são limitados, acrescentam os analistas, e os possíveis incumprimentos dos fundos fiduciários não deverão provocar o “momento Lehman Brothers” da China, uma referência ao colapso do banco em 2008, que acelerou o grande agravamento da crise financeira mundial.

De acordo com a China Trustee Association, a exposição total de todos os fundos fiduciários ao sector imobiliário foi estimada em 1,13 biliões de yuans (142 mil milhões de euros) no final de março, representando cerca de 5% do valor total dos fundos fiduciários no país.

“É justo dizer que, tendo em conta os últimos desenvolvimentos relacionados com a Zhongzhi, as suas filiais e outras empresas de gestão de fortunas, este valor de 1,13 biliões de yuans de fundos... está agora sob grande ameaça”, afirmaram os analistas da Nomura num relatório de análise publicado na segunda-feira.

“A turbulência é suscetível de causar mais ventos contrários ao crescimento [económico]”, acrescentaram.

Zhongrong de boca fechada

Um vídeo publicado no WeChat, que foi posteriormente apagado, mostrava um homem vestido com um colete vermelho com o logótipo da Zhongrong a usar um megafone para falar com o grupo agitado no exterior dos escritórios da empresa.

“Deixem-me explicar. Neste momento, não podemos fazer qualquer anúncio público”, disse. “A principal razão é que ainda estamos a verificar os nossos ativos subjacentes e estamos a fazer o nosso melhor para recuperar os ativos para vocês. Agora, se divulgarmos os ativos subjacentes a um determinado produto, isso poderá provocar uma redução drástica dos ativos. Não o podemos fazer porque isso é ser irresponsável”.

A CNN não conseguiu confirmar a identidade do homem.

Noutros vídeos que parecem ter sido tirados do mesmo protesto, os manifestantes gritavam: “Devolvam o dinheiro”.

Os pagamentos em falta sublinham a forma como a prolongada recessão imobiliária da China pode estar a repercutir-se no seu sector financeiro de um bilião de dólares.

A Zhongrong investiu cerca de um décimo dos seus fundos, no valor de cerca de 10 mil milhões de dólares, no sector imobiliário, de acordo com o seu relatório anual de 2022. As empresas da sua carteira incluem as problemáticas empresas imobiliárias Evergrande, Kaisa Group e Sunac China.

As três têm-se debatido com uma crise de liquidez e entraram em incumprimento das suas dívidas nos últimos dois anos.

No ano passado, a Zhongrong prolongou os pagamentos de vários dos seus produtos imobiliários, alegando que as empresas não conseguiam pagar as suas dívidas.

Impacto económico, mas sem “momento Lehman”

Segundo os analistas do Nomura, a última “vaga” de incumprimentos dos fundos fiduciários deverá causar alguns “efeitos de arrastamento substanciais” na economia em geral.

Uma vez que os investidores nestes produtos de gestão de património tendem a ser, na sua esmagadora maioria, pessoas da classe média e média-alta, quaisquer incumprimentos ou mesmo preocupações causadas por atrasos nos pagamentos poderão diminuir ainda mais a confiança dos consumidores, afirmaram.

Este grupo tende a ter um poder de compra muito maior do que a média nacional, pelo que a redução das suas despesas poderá ter um impacto particularmente grave no consumo privado, acrescentaram os analistas.

Os investidores empresariais também deverão tornar-se mais "avessos ao risco" e reduzir os seus empréstimos a curto prazo ou despesas de capital, tornando-se ainda mais cautelosos com as decisões de expansão dos negócios, acrescentaram os analistas da Nomura.

Na terça-feira, os dados oficiais indicaram mais um mês de crescimento morno na China. Os gastos dos consumidores, a produção das fábricas e o investimento em ativos fixos abrandaram em julho em relação ao ano anterior, de acordo com o Gabinete Nacional de Estatísticas.

De acordo com os analistas do Citi, os possíveis incumprimentos do Zhongrong renovaram as preocupações dos investidores sobre a qualidade dos bancos chineses.

Esperamos mais incumprimentos por parte dos fundos fiduciários devido à atual recessão do sector imobiliário, mas pensamos que é improvável que isso conduza a um cenário de “momento Lehman”, afirmaram.

A maioria dos produtos fiduciários são fechados, o que significa que só podem ser reembolsados na maturidade [no final do contrato] e, por conseguinte, não são vulneráveis a vendas de pânico.

O potencial incumprimento da Zhongrong não constitui um problema novo, mas sim uma manifestação tardia de tensões anteriores no sector imobiliário, com riscos limitados para o sistema bancário em geral, afirmaram.

Além disso, graças aos novos regulamentos lançados em 2017, os bancos tradicionais reduziram as suas atividades extrapatrimoniais, incluindo os produtos fiduciários.

Os produtos fiduciários relacionados com o sector imobiliário representavam apenas 0,3% dos ativos do sistema financeiro no primeiro trimestre deste ano, de acordo com dados da Associação de Fiduciários da China e do Banco Popular da China.

“Mesmo num cenário de stress com incumprimentos generalizados de produtos fiduciários, pensamos que o risco de contágio para os bancos [chineses] continuaria a ser insignificante”, afirmam os analistas do Citi.

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