"Trabalho arranjam, o problema é arranjar casa". Gaurab tem contrato, visto e uma casa partilhada por seis pessoas cuja renda já subiu três vezes em ano e meio

30 jan, 13:00
Manifestação "Casa para Viver"
(LUSA/MIGUEL A. LOPES)

Do total de residentes em Portugal em 2022, 7,5% eram estrangeiros e, desses, 19,1% viviam em alojamentos sobrelotados, contra 7,9% de residentes nacionais a viver na mesma situação. Este é o segundo de uma série de trabalhos sobre o impacto da imigração em diferentes setores da sociedade portuguesa

Gaurab Mahartan tem 37 anos e vive em Lisboa desde junho de 2021. Tem visto de residência até meados de 2025, obtido graças a um contrato de trabalho renovável num café no bairro de Arroios. Oriundo de Katmandu, no Nepal – onde cresceu, tirou uma licenciatura em Gestão e casou – decidiu, com a mulher, tentar a sorte na Europa face à escassez de emprego e condições de vida no seu país-natal. “O Nepal é um país muito pobre, não tem salários decentes, não tem boas infraestruturas… As pessoas tiram cursos superiores, mas depois não conseguem arranjar empregos qualificados e tudo lá é pago, da educação à saúde. Viemos em busca de melhores condições.”

Depois de cinco anos e meio a viver e a trabalhar em Copenhaga como cozinheiro numa cantina, enquanto a mulher tirava um mestrado em Finanças e trabalhava numa fábrica de embalamento de comida, não conseguiram renovar o visto. A pandemia impediu a mulher de continuar a estudar e ambos perderam o emprego. Sem contratos de trabalho, receberam um aviso prévio de 15 dias para abandonar a Dinamarca. Ainda pensaram em voltar para o Nepal, mas o coronavírus mantinha as fronteiras do país encerradas. Acabaram por vir para Portugal a conselho de família e amigos, “porque na altura ainda havia circulação no [Espaço] Schengen”.

Hoje, Gaurab e a mulher vivem num apartamento nas imediações do Mercado de Sapadores, na freguesia da Penha de França. Quando começa a explicar as condições em que vive, num inglês com sotaque, faz uso de uma das palavras que já aprendeu em português, agora que acaba de concluir o nível A2 do Quadro Europeu Comum de Referência para Línguas: “The house has three bedrooms but no sala” – é uma casa onde o espaço de convivência desapareceu para dar lugar a um terceiro quarto e que o casal partilha com outras quatro pessoas. 

Entre a renda e as despesas, pagam cerca de 400 euros por mês. “Conseguimos um quarto porque liguei a um amigo do Nepal que conheci em Copenhaga, que tinha vindo para Lisboa antes de nós e que tem o nome neste contrato de arrendamento. Tivemos sorte. A convivência é tranquila e eles pagam mais do que nós pelos quartos. Nós começámos por pagar 250 euros, depois subiu para 310, agora 350, estamos sempre à espera de quando vai subir outra vez…”

"Particularmente vulneráveis"

A situação de Gaurab está longe de ser única. Com a profunda crise da habitação que afeta hoje todo o país, e que se faz sentir sobretudo nos grandes centros urbanos mas não só, são cada vez mais os imigrantes que se veem forçados a partilhar casa com várias pessoas. Muitas vezes com gente que não conhecem, em muitos casos em casas sem condições de habitabilidade e pelas quais lhes são cobradas rendas demasiado altas para os seus rendimentos. Apesar de tudo, também nisso Gaurab teve sorte.

A exorbitância dos preços pesa nas carteiras de uma larga faixa da população residente em Portugal, quer nacionais, quer estrangeiros. Mas entre os imigrantes, esta crise tende a ser ainda mais dramática. Vários estudos recentes sobre a relação entre migrantes e habitação nas sociedades de acolhimento em toda a União Europeia (UE) têm concluído que a situação de desvantagem para os não-nacionais é comum a todo o bloco. “É evidente a maior associação dos imigrantes a alojamentos precários, sobrelotados, sem infraestruturas básicas e localizados em bairros degradados e estigmatizados”, revela o último relatório anual do Observatório das Migrações, com indicadores sobre a integração de imigrantes em Portugal e no contexto europeu. 

De acordo com dados da OCDE citados no relatório, um em cada quatro residentes nascidos no estrangeiro e a viver na UE enfrenta condições de habitação abaixo da média, em alojamento precário, por comparação com um em cada cinco no caso dos nativos de cada Estado-membro. As diferenças são “mais sentidas nos países da Europa do Sul e em alguns países de destino mais antigo da imigração no contexto europeu”, como a Bélgica, Países Baixos, Reino Unido e Áustria. 

Apesar de ser comumente associado ao primeiro grupo, Portugal surge a par da Europa de Leste e de países do centro da Europa, como a Alemanha, em que a distância entre os dois grupos de residentes é menor. Ainda assim, dados do Eurostat relativos a 2021 e 2022 mostram que as desvantagens habitacionais dos estrangeiros residentes continuam a ser uma realidade em comparação com a população autóctone. No caso português, em 2022, os residentes estrangeiros a viver em alojamentos sobrelotados representavam 19,1% do total de residentes, contra 7,9% de residentes de nacionalidade portuguesa.

Em parte, como explica o mais recente relatório sobre integração de imigrantes compilado pela OCDE em parceria com a Comissão Europeia, “os imigrantes estão particularmente vulneráveis a custos elevados com habitação nas sociedades de acolhimento, uma vez que na maioria dos destinos estão concentrados em centros urbanos onde há mais dificuldades em identificar alojamentos acessíveis e/ou compatíveis com os seus rendimentos tendencialmente baixos”. Essa discrepância entre rendimentos e despesas com habitação acaba por fazer aumentar também a sua desvantagem económica, criando um efeito bola de neve.

Gaurab com os patrões e colegas de trabalho, Nuno e Inês, no café Brick em Arroios

É o que a experiência tem mostrado a Gaurab. Para os que, como ele, decidem procurar uma vida melhor na capital portuguesa, mas que só estão a chegar no pós-pandemia, o problema da habitação está ainda pior, assegura o nepalês. “Agora está mais difícil para quem vem e precisa de casa. Vemos muitos imigrantes ali [ao relento] no Martim Moniz. Eu agora estou legal, mas deve haver milhares de pessoas em situação ilegal, e estou só a falar de nepaleses como eu. Tenho amigos que vieram e como não conseguiam ficar em Lisboa, foram trabalhar na agricultura, em zonas remotas longe daqui, não sei bem onde.” Provavelmente vivem e trabalham em Odemira, o município do Alentejo que hoje concentra o maior número de imigrantes para lá do Algarve e das zonas urbanas do litoral, muito graças ao setor agrícola, que explora estas pessoas como mão-de-obra barata – uma tendência também em setores como o da construção civil e dos serviços. 

“Os imigrantes estão sobre representados nas atividades mais exigentes, mais mal pagas, mais arriscadas, não-qualificadas, com contratos mais instáveis, respondendo a necessidades do mercado de trabalho e mais expostos ao desemprego”, indica Catarina Reis Oliveira, diretora do Observatório das Migrações e professora auxiliar do ISCSP-ULisboa. E foi sob estas condições que, em 2022, contribuíram sete vezes mais do que receberam da Segurança Social. “Deram um saldo positivo de 1.604 milhões de euros, o mais elevado de sempre”, destaca Reis Oliveira, cujo relatório indica que houve 87 contribuintes estrangeiros por cada 100 residentes estrangeiros no mesmo ano, contra 48 contribuintes nacionais por cada 100.

De 1,8% a 16,5%

Naquele que é o segundo país mais envelhecido da UE, Gaurab é um de milhares de estrangeiros que, há dois anos, representavam 7,5% do total de residentes. E o visto de residência conseguiu-o graças a um contrato de trabalho numa empresa de restauração em Arroios. 

Depois de alguns meses a trabalhar "sem condições" nos armazéns lisboetas de uma grande cadeia espanhola, despediu-se e passou alguns meses à procura de novo emprego nas redes sociais, onde acabou por se cruzar com um anúncio para trabalhar na cozinha do café Brick. “Mandei o meu CV, vim a uma entrevista e fiquei. Trabalho 40 horas por semana, das oito às quatro. Gosto de trabalhar aqui, porque o Nuno e a Inês são pessoas muito boas”, diz sobre o casal que é proprietário do espaço e com quem trabalha diariamente. (Questionados sobre se o contrato vai ser renovado, Inês e Nuno hão-de garantir posteriormente: “Vamos continuar, gostamos muito dele. Temos muita sorte com a equipa que temos.”)

Com a situação regularizada, e a mulher também a contrato como cozinheira noutro estabelecimento, o desejo agora é o de constituir família. Mas aí a sorte ainda não lhes sorriu. “É muito triste, ainda não temos filhos, a minha mulher esteve grávida duas vezes e das duas vezes teve abortos espontâneos.” As perdas gestacionais ocorreram já em Portugal e, no centro de saúde e hospital, as barreiras de linguagem frustraram Gaurab, que acabou por arranjar maneira de levar a mulher ao Nepal, onde lhe fizeram uma colposcopia. “Voltámos há umas semanas. Viram que pode ter uma pequena infeção no útero, está em tratamento e dizem que podemos voltar a tentar daqui a uns meses.”

Com esse sonho em vista, e mesmo com contrato de trabalho, NIF, números de utente e de Segurança Social, Gaurab vive com o receio de ficar sem sítio para viver. “Gostava de viver só com a minha mulher, ando à procura de casa na Internet e só encontro T1 e T2 acima dos mil euros. Se arranjar um T2 vou ter de dividir casa à mesma, e pagar pelo menos 600 euros, quando agora pago 400.” Entre os imigrantes legais ou irregulares, o cenário de escassez de habitação e a forçosa partilha de casas sobrelotadas é cada vez mais recorrente, confirma à CNN Portugal a direção de uma IPSS escolar da Almirante Reis.

É um medo que assola muitos em Portugal, portugueses e estrangeiros, e que tem mobilizado milhares de pessoas em protestos por mais e melhor habitação em várias cidades do país no último ano. Em Lisboa, as manifestações têm seguido sempre o mesmo percurso, Avenida Almirante Reis abaixo, da Alameda até à Baixa, cruzando hotéis lado a lado com pensões e prédios de habitação onde seis, sete, oito pessoas partilham casas sobrelotadas, quando não apenas um quarto – algumas delas sempre à janela, a filmar as manifestações que decorrem lá em baixo. 

Alguns acabam por desistir do pretenso sonho português. Em 2022, no âmbito do Programa ARVoRe, que apoia o retorno voluntário de imigrantes de países terceiros que não reúnem as condições para ficar em Portugal, a questão encabeçou a lista de razões que os levaram a partir – foi a resposta de 16,5% (empatada no primeiro lugar com “dificuldades económicas”) quando apenas 1,8% dos beneficiários tinha invocado o mesmo motivo no ano anterior. 

Gaurab não quer desistir e tudo parece estar bem encaminhado. “Quando falo com a minha família no Nepal, eles insistem que devemos ficar. E nós queremos fazer a nossa vida em Portugal. Tenho visto há seis meses, vai expirar quando completar dois anos, depois podemos candidatar-nos a um novo de três anos. A renovação parece fácil, explicaram-me tudo e dá para fazer online.” Contudo, a realidade da habitação assusta-o, sobretudo olhando para a quantidade de conterrâneos que têm de abandonar Lisboa por falta de condições. Condições de trabalho, para tentarem fugir à precariedade, perguntamos. “Não”, responde perentório. “Trabalho arranjam. O problema é arranjar casa."

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