"A minoria é tão importante quanto a massa". Como uma IPSS da Almirante Reis se adapta há décadas às transformações em Arroios

29 jan, 13:09
Crianças (Foto: Christopher Furlong/Getty Images)

Na APISAL, há crianças de 26 nacionalidades e ascendências, sobretudo portuguesas, chinesas e nepalesas, e uma preocupação constante em responder às necessidades de cada uma delas, venham de onde vierem. Este é o primeiro de uma série de trabalhos sobre o impacto da imigração em diferentes setores da sociedade portuguesa

Quando Sílvia Lopes chegou à Associação Pró-Infância Santo António de Lisboa (APISAL), há 15 anos, eram relativamente poucas as crianças de outras nacionalidades na instituição. “Tínhamos algumas crianças chinesas, um número que depois foi aumentando como reflexo das mudanças na freguesia”, explica a diretora técnica do projeto educativo em Arroios. “E como começaram a ganhar alguma dimensão na APISAL, houve uma perceção errada por parte de algumas famílias [portuguesas] de que dávamos prioridade às famílias chinesas. Mas porquê?” Pergunta retórica, a resposta vem logo atrás. “Porque efetivamente, na altura, sobretudo no Martim Moniz, havia muitas famílias chinesas que, ao longo dos anos, até acabaram depois por se mudar para a periferia. Foi simplesmente um reflexo das mudanças na freguesia e não podia ser de outra forma.”

Sara Calisto, que trabalha na APISAL há 22 anos, ainda se lembra de ter apenas uma criança chinesa na sala, à qual se juntou depois uma criança de um país africano de língua oficial portuguesa (PALOP), já nascida em Portugal mas de ascendência africana. “Por acaso aqui nunca tivemos tantas crianças dos PALOPs”, explica a coordenadora pedagógica da creche e do pré-escolar. “As que temos acabam por ser as que vêm ser tratadas aqui ao lado, na Estefânia, ao abrigo de acordos de Portugal com esses países, e nós depois fazemos o acompanhamento dessas crianças.”

Hoje, bebés e crianças de 26 nacionalidades e ascendências convivem diariamente na creche, jardim de infância e 1.º ciclo do ensino básico da APISAL, uma instituição particular de solidariedade social (IPSS), originalmente fundada em 1891 como asilo e instalada na Avenida Almirante Reis há quase 130 anos. No arranque do século XX, a escola acolhia cerca de 120 crianças para atividades como ourivesaria, modismo e arranjos de flores. Com o 25 de abril, e face à escassez de educandas, o espaço foi cedido à Cáritas para realojar retornados das ex-colónias, até 1979, quando foi reaberta como jardim de infância por iniciativa de um grupo de residentes locais.

Em cerca de 40 anos, o retrato de Arroios foi mudando várias vezes e, com ele, também a APISAL. Aos alunos portugueses e chineses juntaram-se, na última década, mais crianças da Índia, do Paquistão, do Nepal, do Bangladesh. Hoje, as nacionalidades mais representadas na APISAL a seguir à portuguesa são a chinesa e a nepalesa. “Nós não preenchemos quotas, não temos isso em conta, estas crianças vivem na freguesia e, cumprindo os critérios de admissão da Segurança Social, são integradas”, explica Sílvia. “A única diferenciação que fazemos é positiva, no sentido de criarmos as condições para a integração de todas.”

Por força das circunstâncias, a forma como as famílias olham umas para as outras também foi mudando ao longo do tempo. “Acho que havia uma perceção diferente em relação às famílias chinesas do que agora com estas famílias do Hindustão, no caso das famílias chinesas havia esta ideia de uma certa riqueza camuflada, assistimos muito a comparações negativas entre as famílias chinesas e as portuguesas sobre uns ganharem mais e outros menos. Mas de uma forma geral isso esmoreceu. Acho que são raras as famílias hoje que não veem com bons olhos esta multiculturalidade.”

Em parte, isso é também reflexo do que Sara Calisto classifica de “filtro natural” durante o processo de admissão. “Quando falamos com as famílias nas entrevistas, quando vêm visitar a instituição, nós pela conversa percebemos logo se se identificam ou não com este projeto educativo de inclusão. Há uns três ou quatro anos tive famílias a perguntar se estas crianças [imigrantes] iam estar na sala com as suas, como seria a convivência… Mas são muito poucas, de facto isto tem vindo a diminuir e hoje, pelo contrário, quando nos procuram também já procuram dar aos filhos essa riqueza natural que é a interculturalidade. Porque esta é, de facto, a nossa realidade, dentro e fora da escola.”

Sara Calisto e Sílvia Lopes integram a equipa técnico-pedagógica da APISAL; Carolina Costa é assistente social na escola desde 2022

Todos, todos, todos

Mais jovem, Carolina Costa está na APISAL há apenas dois anos, onde trabalha como assistente social. “Todos os dias, atualizamos a lista de espera e, à data, temos 343 crianças em espera para este ano letivo, para quando houver vagas, em todas as idades, contemplando inscrições desde 2021, e nós não conseguimos dar resposta a todas. Só em creche temos 98 vagas para quase 200 inscrições neste momento.” 

Ao todo, no último ano letivo, a instituição acolhia 289 crianças dos 0 aos 10 anos, para um número muito superior de candidaturas, “um problema que não é específico da APISAL”, aponta Carolina, invocando dificuldades no acesso à saúde e à habitação, que não olham a nacionalidades. “A verdade é que os problemas estão a aumentar mas é para todas as famílias, portuguesas e estrangeiras. Uma renda para uma família portuguesa ou imigrante custa o mesmo e é muito alta para a maioria. Mas se calhar uma família portuguesa consegue estar sozinha num T1 com um filho e uma família migrante tem de partilhar casa com outras pessoas para conseguir pagar a renda. E isso torna essas famílias e essas crianças mais vulneráveis.”

Conseguindo vaga na APISAL, é possível responder a algumas dessas vulnerabilidades, sublinha Sílvia. “Sendo apenas inscritas no pré-escolar, temos muitas crianças que passam os primeiros três anos de vida com pouco acompanhamento, por exemplo, ao nível da saúde, são crianças que talvez sejam vistas na altura da vacinação ou numa situação de urgência, mas não têm médico que as acompanhe.” O sistema, reforça Sara, “não dá resposta, e não é só às famílias estrangeiras, é às portuguesas também, as famílias vulneráveis são de todas as nacionalidades, só que as estrangeiras também estão culturalmente deslocadas, não têm rede de apoio, muitas vivem a partilhar casa com mais famílias…” 

Sílvia recorda o caso de uma família migrante em que apenas um dos pais trabalhava, declarando o salário mínimo e com uma renda de 1.500€. Sendo a APISAL uma IPSS, o processo de cada criança envolve muita documentação para cruzar todos os dados e calcular a mensalidade que cada família tem a pagar. E a discrepância de valores fez disparar os alarmes. “Temos aqui um trabalho de auscultação informal com as famílias, até mesmo instigado pela Segurança Social, em que às vezes até nos sentimos inspetores das Finanças”, diz com um sorriso. Naquele caso, perceberam que a família dividia uma casa "num prédio a cair, na rua do Benformoso", com outras duas famílias. “Estamos a viver aqui uma fase em que percebemos que muitas famílias [migrantes] estão a dividir casas com outras pessoas para conseguirem ter um teto para viver.”

Este dito trabalho de auscultação não acontece apenas na vistoria da papelada, é um trabalho contínuo que guia e informa todo o projeto educativo da APISAL, que no triénio 2021-2025 foi apropriadamente batizado “A Metamorfose da Escola” – justificado com a “acelerada transformação da sociedade nas últimas décadas” que “tornou evidente” a necessidade de também as escolas mudarem. E essa mudança, como mostram a história e a experiência, tem forçosamente de envolver todos, no caso todos os que integram a comunidade – professores, alunos, famílias e população local.

O trabalho não é de agora, e vem dando frutos. As pedagogas dão como exemplo o facto de tendencialmente serem mais as famílias portuguesas a porem os filhos no berçário e creche, porque se tornou a norma culturalmente aceite, para ambos os pais poderem trabalhar, por oposição a famílias migrantes que, também por questões culturais, tendem a ficar com os filhos em casa até mais tarde. Mas vão sendo cada vez mais as que põem os filhos na APISAL logo nos primeiros anos de vida. “Continuo a achar que só temos mais porque já têm irmãos mais velhos na APISAL”, diz Sara, que ainda assim assume notar uma mudança. “A primeira experiência em que não foi assim foi há uns anos com o pai de um bebé que me disse mesmo na entrevista ‘Eu quero que o meu filho entre agora para começar já a socializar, porque vejo filhos de amigos meus, mais velhos, que não falam’. Acho que isso já reflete também uma certa perspetiva de integração das próprias famílias.”

Na base deste aumento de inscrições, destaca Carolina, está também o programa creche gratuita, que o governo de António Costa implementou no último mandato, abrangendo todas as crianças até aos 3 anos no limite das (poucas) vagas existentes. “Também contribui para famílias de todas as nacionalidades, em que temos o pai e a mãe a trabalhar, sem rede de suporte, e a creche dá essa resposta, acaba por ser o recurso necessário. Como também há pouco acolhimento às famílias migrantes quando chegam a Portugal nesta área da proteção social... Elas nem fazem ideia que existem licenças de parentalidade, de que tanto o pai como a mãe podem beneficiar durante alguns meses.”

"Na Minha Escola Cabe o Mundo", livro produzido pela APISAL e a Junta de Freguesia de Arroios, conta a história de Akira, uma criança que imigrou para Portugal do Japão, com desenhos de crianças da escola e traduzido para inglês, mandarim e nepali

“Aprendendo e adaptando”

“Todos os dias estou a autorizar novas turmas de pré-escolar e 1.º ciclo, é uma boa notícia para o país”, proclamava o secretário de Estado da Educação, António Leite, em julho de 2023, ano em que a imigração para Portugal atingiu o valor mais alto de sempre. Com ela, começou a inverter-se a tendência de diminuição de inscrições de alunos no ensino público e privado registada nos últimos anos, natural num país que, no ano passado, era o segundo mais envelhecido da União Europeia (UE). 

De acordo com o Observatório das Migrações, no ano letivo 2021/2022 estavam matriculados no ensino básico e secundário 86.436 alunos de nacionalidade estrangeira, um aumento de 20,6% face ao ano letivo anterior – e correspondente a cerca de 4% dos mais de 2 milhões de alunos matriculados no mesmo ano, segundo dados da Direção-Geral de Estatísticas de Educação e Ciência.

Sendo uma percentagem residual, é-o menos em determinadas localidades de Lisboa, como Arroios e freguesias adjacentes. No ano passado, dos cerca de 33.300 residentes em Arroios, 23% eram estrangeiros, a maioria vindos do Nepal e do Bangladesh em busca de melhores condições de vida. Ao lado, na Penha de França, outra das freguesias que a APISAL serve, correspondem a 15% da população local. E tal como as restantes, também as mudanças demográficas têm orientado o trabalho da instituição escolar – até porque neste momento, indica Sílvia, a escola está a entrar numa “nova fase, que é a de receber muitas crianças do norte da Europa, de França, da Islândia, com um poder económico que não se compara, e [quem critica a imigração] não engloba essas famílias com as outras, o foco é só nos países terceiros, nos não-europeus”.

“Hoje em dia já digo às famílias que não é um problema a criança não falar português, algumas têm essa preocupação, mas a linguagem corporal fala por si nos jogos, nas atividades. Todas as crianças de qualquer país sabem jogar jogos”, exemplifica Sara. Outro exemplo: “A questão da alimentação, dantes tínhamos muito a visão de que as crianças têm de saber comer com a colher, mas há crianças que, culturalmente, comem com as mãos, então adaptamos a nossa visão.”

Esta “mudança de paradigma” foi muito potenciada por protocolos com organizações como a Fundação Aga Khan, que procurou a APISAL ao abrigo de um projeto do Gabinete de Apoio aos Bairros de Intervenção Prioritária (GABIP) no eixo Almirante Reis-Martim Moniz e que, entre outras vertentes, envolveu um programa de formação para todos os funcionários, explica Sara. “Tivemos esta educação para a interculturalidade e, de facto, tivemos a oportunidade de falar numa série de dicas culturais, a questão da religião, a questão da alimentação, até para nos tornarmos mais sensíveis aos nomes das crianças, por exemplo.”

Foi, nas palavras de Sílvia, uma “oportunidade fantástica” que “abriu completamente” os horizontes de todas. “O projeto era focado nas famílias de migrantes e isso deu-nos um leque de oportunidades, envolveu instituições de outras áreas, por exemplo, criámos folhetos a explicar o sistema de saúde português, um trabalho com a USF da Baixa que foi muito bonito, porque todos os profissionais deram o seu tempo fora do horário laboral. Também criámos um panfleto, que está disponível no nosso site, a explicar o sistema educativo português – em português, inglês, bengali, nepali e mandarim. Demorou muito tempo, porque não foi só escrevê-lo, foi depois todo o processo de partilha com as pessoas migrantes, no sentido de perceber se elas entendiam. Tivemos de ter atenção a algumas cores, alguns caracteres, por exemplo retirar as cruzes, porque têm uma conotação negativa para algumas culturas.”

Integrada na Rede de Escolas Interculturais (REI), a APISAL é uma de 66 escolas de várias zonas do país, como Odemira ou Ponte de Sor, que integram o projeto de partilha de informações e ações sobre como explorar a multiculturalidade – “fundamental para, numa ótica cooperativa e de aprendizagem partilhada, melhorarmos as nossas práticas diárias”, explica Carolina Costa. “Porque para o que é o nosso problema ou desafio hoje, outras escolas podem já ter encontrado a solução”, acrescenta Sílvia. “E assim não pensamos só em Lisboa e na freguesia de Arroios, porque a realidade é transversal.”

Na senda da integração, também são cometidos erros. Há cinco anos, a APISAL decidiu fazer uma celebração do ano novo chinês, que não correu tão bem quanto o desejado. “Quase se podia dizer que foi um flop, eles não queriam essa vivência aqui dentro, queriam que as crianças aqui tivessem a vivência da cultura portuguesa, porque a chinesa têm em casa”, indica Sílvia Lopes. “Fizemos isso sem conversar com as famílias e isso fez-nos refletir. Não é porque dizemos que acolhemos, que fazemos, que somos uma escola que integra, que o somos de facto. Precisamos chamar as famílias para o processo e perceber exatamente quais são as expectativas das famílias em relação à escola.”

Esse é agora o trabalho diário de todos na APISAL, dentro e fora das salas de aula. “Há uns anos percebemos que era importante ter aqui uma oferta de um prato principal, outro de dieta e outro vegetariano, mas recentemente começámos a perceber que há muitas famílias que procuram alimentação vegana mais do que a vegetariana, então estamos novamente a adaptar a ementa, tal como adaptamos por questões de alergias, que são cada vez mais comuns”, aponta Sara. “OK que podem ser só três crianças, mas a minoria é tão importante quanto a massa. Aprendendo e adaptando."

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