Há membros do Governo ucraniano que foram acusados de traição durante esta guerra contra a Rússia. Da "simples" prisão à tortura ou morte, é quase tudo possível e quase tudo mau. E a guerra torna tudo mais intenso e imponderado
1. Prisão
O destino mais recorrente para alguém que é considerado um traidor da própria pátria são os centros de detenção ou prisões. É nestes estabelecimentos que são sujeitos a interrogatórios e aguardam para responder em julgamento aos crimes pelos quais são acusados.
“A partir do momento em que caem sob a alçada das autoridades são privados de liberdade, até para evitar futuros contactos”, escolhendo-se sobretudo prisões de alta segurança, explica o coronel Carlos Mendes Dias, presidente do Centro Português de Geopolítica.
Até porque, em casos de traição, há o outro lado. “No lado para o qual espiam estão à espera de comunicações. Se elas não surgirem, há protocolos de segurança para limpar pistas”, completa o coronel. Exemplos: mudam-se os nomes de código, apagam-se mensagens.
Segundo Jorge Bacelar Gouveia, constitucionalista e presidente do Observatório de Segurança, Criminalidade Organizada e Terrorismo (OSCOT), a traição “é um crime contra o Estado punido pelo Código Penal de cada país". "É dos crimes mais graves que há. Tem de haver um processo judicial e uma sentença.” E a guerra pode trazer-lhe mesmo novos contornos. “O crime pode ser agravado e punido em tribunal marcial, mais rápido e simplificado. Mas tal tem de estar previsto na legislação do estado de guerra da Ucrânia.”
2. Tortura
Num contexto de guerra, uma coisa é a teoria, outra é a prática no que respeita à tortura. As convenções e o direito internacionais ditam a proteção das pessoas detidas. A Convenção de Genebra, por exemplo, integra regras relativas aos prisioneiros de guerra – os membros das forças armadas e civis que se vejam obrigados a pegar em armas para se proteger.
“A Ucrânia integra o Conselho da Europa, que na Convenção de 1950 [Convenção Europeia de Direitos Humanos] proíbe a tortura. Este é um direito que não se pode derrogar em regime de guerra. Como a nossa Constituição da República Portuguesa não permite a sua suspensão em estado de exceção ou de guerra”, argumenta Jorge Bacelar Gouveia.
Mas a realidade poderá ser outra. “Todos sabemos que essas questões, às vezes, são fragilizadas. As pessoas são sujeitas a interrogatórios mais duros. Essas pessoas detidas sabem-no. E é também por isso que são bem pagas”, reconhece o coronel Carlos Mendes Dias. E acrescenta: “Quem detém procura cruzar a informação entre os vários detidos para arranjar provas, pressionando com base no que o outro diz e vice-versa. Há mecanismos de pressão muito próprios”.
“Na Ucrânia e Rússia, que estão em guerra, é muito difícil que não haja maus-tratos de ambos os lados. Não podemos ser ingénuos”, resume a historiadora Irene Flunser Pimentel, autora do livro “Espiões em Portugal Durante a II Guerra Mundial”, que se tem debruçado sobre esta matéria da espionagem.
3. Troca
“Durante a Guerra Fria houve muitas trocas. Até havia uma ponte na República Democrática Alemã, perto de Berlim, onde eram feitas essas trocas.” Irene Flunser Pimentel fala da emblemática Ponte Glienicke. O cenário de troca de prisioneiros, incluindo traidores da pátria, pode parecer de filme mas é algo que os especialistas reconhecem que pode acontecer assim que o conflito na Ucrânia estabilize ou termine.
“Ao fim de muitos anos podem servir como moeda de troca”, reitera o coronel Carlos Mendes Dias, explicando que “normalmente não são colocados em liberdade, particularmente nos países de leste” - a não ser neste cenário, por existir risco de fuga ou de ser retomado o contacto com o lado inimigo.
4. Morte
Este é o caminho que ninguém quer percorrer: o da pena de morte. Mas, num contexto de crimes contra o Estado, colocando-o em risco, pode tornar-se bem real. Irene Flunser Pimentel recorda que, para ser aplicada a pena capital, esta tem de estar prevista nos territórios em causa. A historiadora dá o exemplo dos Estados Unidos, onde a pena de morte é uma realidade. “Mesmo numa situação de paz podem ser condenados à morte.”
Veja-se então o contexto da Ucrânia e da Rússia. Em 2000, a Ucrânia retirou a pena de morte da lista de punições oficiais do país, a Rússia tem-na atualmente suspensa - em 1996, o então presidente Boris Yeltsin estabeleceu uma moratória sobre essa lei.
Mas, uma vez mais, o conflito armado pode deixar a teoria em suspenso. “Em situação de guerra, a pena de morte está no canto da rua”, avisa a historiadora.
5. Demissão
Em julho, Volodymyr Zelensky demitiu O chefe dos serviços secretos ucranianos (SBU) e seu amigo próximo, Ivan Bakanov. Mas não foi o único: também a procuradora-geral Iryna Venediktova, que tinha espoletado várias ações para que os crimes de guerra sejam investigados, foi forçada a deixar o cargo.
Com as decisões vieram acusações de traição – não diretamente a estes dois responsáveis, mas a membros dos seus gabinetes, responsáveis por crimes contra a “segurança nacional” da Ucrânia. Nem Bakano nem Venediktova foram detidos, apenas demitidos, mas sobre eles ficou a mancha de não terem feito o suficiente para evitar inimigos ao serviço.
“Em tempo de guerra qualquer atitude pode ser considerada traição, mesmo que não o seja, apenas por facilitar o lado do inimigo. Eles são considerados traidores mas há um grau de traição diferente. O termo traição está a ser muito utilizado. Com a guerra, de repente, os termos já não têm o valor que tinham em tempos de paz”, explica Irene Flunser Pimentel.
Já Jorge Bacelar Gouveia reconhece que o uso da expressão “traição” neste contexto não é inocente. “Quem investiga e acusa é o Ministério Público. Há o uso do argumento da traição para destituir. Mas o chefe de Estado, como nomeia, também pode demitir livremente. Nem precisa de se explicar. Mas deve usar este argumento com fins políticos”, considera o constitucionalista.
6. Fuga
Há um último caminho, que pode evitar todos os restantes: a fuga. É precisamente esse que está a percorrer o ex-ministro da Defesa ucraniano Mikhailo Yezhel, recentemente acusado de alta traição pelo papel que desempenhou nos “Acordos de Kharkiv” de 2010, permitindo que a Marinha russa pudesse estender a sua permanência na Crimeia.
Yezhel obteve em 2018 o estatuto de refugiado na Bielorrússia, país aliado de Moscovo e do regime de Vladimir Putin. Desde 2016 que Yezhel é procurado pelas autoridades ucranianas pela venda de dois caças-bombardeiros à Rússia durante o seu mandato.
Os “Acordos de Kharkiv” foram assinados pelo presidente ucraniano da altura, Viktor Yanukovych, que em 2019 foi condenado a 13 anos de prisão por alta traição e cumplicidade na agressão militar russa. Yanukovych estará em Minsk, depois de ter estado exilado na Rússia.