Senhor Putin, você é capaz de perdoar? “Sim, mas não tudo.” E o que é que não consegue perdoar?

25 ago 2023, 07:00
Vladimir Putin e Yevgeny Prigozhin (AP)

E Putin respondeu. Mas há uma pergunta que não lhe foi feita. E que falta faz essa pergunta agora que Prigozhin se tornou um fantasma

Corria o ano de 2018 e o jornalista russo Andrei Kondrashov estava a preparar um documentário intimista com o presidente russo. Durante uma das longas entrevistas, encarou o líder russo nos olhos e perguntou-lhe diretamente se este era capaz de perdoar. Vladimir Putin respondeu que “sim, mas não tudo”. O jornalista aproveitou e voltou a pressionar o presidente. “O que é que para si é impossível de perdoar?”, questionou Kondrashov. “Traição”, respondeu sem hesitar o antigo agente do KGB. No mesmo ano, o antigo espião russo Sergei Skripal, que atuou como agente duplo para os serviços secretos britânicos, foi envenenado com o agente químico Novichok.

Cinco anos depois, de 23 para 24 de junho - quando os mercenários de Yevgeny Prigozhin marchavam em direção a Moscovo -, Vladimir Putin dirige-se à nação. Durante cinco minutos recorda os que “roubaram” a vitória à Rússia na Primeira Guerra Mundial "ao revoltarem-se contra o czar" e depois diz assim: “O que estamos a enfrentar é uma traição”. Perante a nação, Putin prometia uma punição “dura” e “inevitável”. Quase exatamente dois meses depois, Yevgeny Prigozhin, bem como vários altos cargos do grupo que ameaçou o regime de Putin, são dados como mortos pelas autoridades russas, após a queda do avião privado em que seguia.

“A grande questão é: quem é que beneficia da morte de Prigozhin? Há três suspeitos: Vladimir Putin, Kyrylo Budanov - não nos podemos esquecer de que a Ucrânia está em guerra com a Rússia - e os serviços secretos britânicos”, afirma o major-general Agostinho Costa. E o antigo piloto José Correia Guedes deixa pouca margem para a tese de acidente: “Este avião [que tinha Prigozhin na lista de passageiros] tem um registo de segurança absolutamente impecável. Não há registo de uma única vítima mortal em acidentes causados por este tipo de avião. É muito pouco provável que tenha havido uma falha catastrófica do avião”.

Dois responsáveis do exército norte-americano afirmaram à Reuters, em anonimato, que o cenário mais provável era a queda do avião ter sido provocada pelo disparo de um míssil antiaéreo. Os dados públicos de rastreamento de aeronaves também revelam um cenário que aproxima este incidente da tese norte-americana. O Embraer atravessava os céus da Rússia a uma altitude de 28 mil pés (aproximadamente nove mil metro de altitude), até ao momento em que se deu uma subida abrupta de dois mil pés (aproximadamente 600 metros), o que, segundo José Correia Guedes, sugere “uma ação vertical de baixo para cima” que projetou a aeronave. No entanto, descarta a possibilidade de se tratar de um explosivo a bordo da aeronave. “Isto é raríssimo, os aviões não caem do céu assim descontrolados. Tudo leva a crer que houve aqui uma ação exterior. No vídeo, tudo leva a crer que uma das asas foi atingida.”

As autoridades russas dizem ter lançado uma investigação e que ainda decorrem operações de busca. Todos os aviões trazem a bordo a chamada caixa negra, um compartimento da aeronave colocado na sua cauda que regista todo o áudio do cockpit e todos os parâmetros de voo - como a velocidade, a altitude, entre outros. Estas caixas são construídas de forma a serem altamente resistentes, tanto contra as altas temperaturas como contra os impactos, para ajudar as autoridades a compreender o que aconteceu nos momentos anteriores a um acidente. Mas quem lidera a operação é autoridade russa e há sérias dúvidas quanto à transparência do que for anunciado.

A pergunta que falta

Mas Prigozhin não era o único nome do Wagner que seguia a bordo. Longe disso. Os outros seis passageiros tinham ligações ao grupo, alguns deles eram mesmo altas figuras de topo do grupo paramilitar - incluindo o fundador, Dmitry “Vagner” Utkin. Este veterano das forças especiais russas chegou ao cargo de tenente-coronel do GRU (serviços de informação militar) e combateu nas duas guerras da Chechénia. Antes de formar o grupo Wagner, juntamente com Yevgeney Prigozhin, Utkin trabalhou com um grupo paramilitar chamado Moran Security Group. Este grupo, com um nome propositadamente corporativo, realizou diversas operações militares na Síria em 2013.

O Dossier Center, associação do dissidente russo Mikhail Khodorkovsky que rastreia as atividades criminosas de indivíduos ligados ao Kremlin, destaca as ligações de Utkin à ideologia nazi. O próprio nome do grupo de mercenários deriva da admiração de Utkin pelo compositor favorito de Adolf Hitler, Richard Wagner. Utkin não só não esconde a sua admiração pela simbologia nazi como fazia questão de a mostrar: tatuou as runas das tropas de elite nazis, as Waffen-SS, acima da clavícula. Em 2016 foi fotografado ao lado do presidente russo durante uma receção no Salão Georgievsky do Grande Palácio do Kremlin em homenagem ao dia dos Heróis da Pátria.

Entre as alegadas vítimas da queda do avião consta também o braço-direito dos investimentos de Prigozhin. Valery Chekalov era um especialista em logística, descrito pelo grupo Dossier Center como alguém “extremamente próximo” de Prigozhin. Juntos angariavam milhões em contratos públicos através da empresa Concord. Desde o início dos anos 2000 que este grupo conseguiu obter contratos milionários com o governo russo para fornecer comida ao exército e às escolas do país.

Segundo o Novaya Gazeta, um jornal independente russo, Chekalov ajudou Prigozhin a gerir as operações do grupo Wagner na Síria, onde o regime de Bashar al-Assad lutava pela sobrevivência. Através de uma empresa chamada Neva JSC, Chekalov assinou um contrato que pressupunha a libertação de campos de petróleo e de gás ocupados pelos rebeldes a troco da exploração dos mesmos. O Myrotvorets, um site ucraniano que publica uma lista de “inimigos da Ucrânia e respetiva informação”, descreve Valery Chekalov como o número dois do grupo Wagner e responsável pelo “trabalho do serviço de segurança” do grupo.

Outro nome sonante da chefia militar do grupo Wagner é o de Sergey Propustin, natural de São Petersburgo. Veterano da segunda guerra da Chechénia, juntou-se ao grupo Wagner em 2015. Era uma figura que participava em quase todas as viagens de Prigozhin.

A bordo viajavam também Yevgeny Makaryan, um antigo polícia que virou mercenário em 2016 e foi buscar fortuna na Síria; Alexander Totmin, de 30 anos, e Nikolay Matusevich - também eram mercenários do Wagner. Os dois tinham historial de operações em África. Ambos lutaram no Sudão.

A verdade é que todos os nomes que, segundo as autoridades russas, seguiam a bordo daquele avião participaram na maior ameaça contra o regime de Vladimir Putin em duas décadas. E de uma só vez, a liderança dos mercenários que fizeram frente ao antigo agente do KGB deixou de existir. Um ponto final em décadas de uma relação mutuamente proveitosa, onde o regime de Putin utilizou o grupo Wagner para fazer política externa sem sujar as mãos e Prigozhin utilizou o governo para juntar quantidades enormes de dinheiro. Prigozhin passou de protegido a traidor, o único crime que na Rússia de Putin não tem preço nem perdão.

“O que estamos a enfrentar é precisamente uma traição. Ambições excessivas e interesses instalados levaram à traição - traição ao país. Os que escolheram o caminho da chantagem e do terrorismo vão sofrer a inevitável punição perante a lei e o nosso povo”, sentenciou Vladimir Putin na noite em que Prigozhin marchava para Moscovo.

Dois meses depois desses eventos, um avião privado que viajava em direção a Moscovo com sete passageiros e três tripulantes a bordo caiu de forma descontrolada na região de Tver.  Os dados de voo mostram que o avião atingiu uma altitude de cerca de 28.000 pés [cerca de 8.500 metros] antes de deixar subitamente de transmitir informações de localização. As imagens rapidamente publicadas nas redes sociais mostravam que dificilmente haveria sobreviventes. Segundo o manifesto de voo, os passageiros eram Yevgeny Prigozhin, Dmitry Utkin (fundador do Grupo Wagner), Propustin Sergey, Makaryan Evgeniy, Totmin Aleksandr, Chekalov Valeriy e Matuseev Nikolay. 

Esta quinta-feira, Putin reagiu assim: Prigozhin “era um homem de negócios talentoso” que “cometeu erros graves ao longo da vida”. E acrescentou que mandou “condolências às famílias das vítimas”.

Senhor Putin, você é capaz de perdoar? "Sim, mas não tudo." E o que é que você faz a quem o trai?

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