Quem beneficia com a chegada do “general inverno” ao campo de batalha na Ucrânia?

26 nov 2022, 22:00
Ruinas de um prédio em Borodianka (Metin Aktas/Anadolu Agency via Getty Images)

Com a Ucrânia a fazer avanços significativos nos últimos meses e com a Rússia a atacar infraestruturas críticas, a chegada do gelo e do frio vem mudar a forma de conduzir a guerra

Chamam-lhe o “General Inverno” pela forma implacável como destruiu alguns dos exércitos mais temidos da história. De Napoleão, à poderosa máquina de guerra Nazi, todos sentiram na pele os terrores do frio do leste da Europa, que agora está prestes abater-se sobre os exércitos da Rússia e da Ucrânia. Milhões de refugiados, hipotermia, sabotagem e muita, muita artilharia são alguns dos cenários que devemos esperar para o inverno no campo de batalha.

Já caíram as primeiras neves na Ucrânia e com isso surgem novos problemas para os militares que combatem no país. Se atualmente as operações militares parecem estar paradas, isso deve-se ao facto de a Ucrânia estar a acabar de atravessar o período que é conhecido como Rasputitsa, em que a chuva transforma o terreno em lamaçal e torna parte das estradas e dos percursos intransitáveis.

Agora, o chão coberto de neve é um obstáculo traiçoeiro para os militares que operam no terreno. Minas que precisavam ser cuidadosamente enterradas e dissimuladas, podem agora ser colocadas de forma impercetível debaixo da neve, obrigando os soldados a cuidados mais acrescidos. Além disso, a mudança da cor da paisagem, que fica completamente pintada de branco, faz com que os padrões camuflados com tons de floresta se tornem bem visíveis para o adversário, tornando-se alvos mais visíveis para os drones inimigos. 

"As circunstâncias criadas pelo clima fazem com que se torne impossível uma guerra com avanços significativos no terreno. Por isso, a guerra com o "General Inverno" facilita muito o grupo que está entrincheirado, que consegue identificar o inimigo e o abater com mais facilidade", explica o professor catedrático José Filipe Pinto. 

Depois de vários meses de manobras defensivas, o exército ucraniano iniciou uma contraofensiva, reconquistando milhares de quilómetros quadrados. Em alguns dos casos sem precisar de lutar rua a rua, como aconteceu em Kherson, onde o exército russo se viu obrigado a retirar para posições defensivas mais favoráveis do outro lado da margem do rio Dniepre, depois de a Ucrânia ter destruído as pontes que permitiam o reabastecimento da região. E, neste momento, com a chegada do frio, são os militares russos que estão entrincheirados, o que lhes pode vir a dar uma forte vantagem.

Mas os especialistas acreditam que ambos os lados estão cientes das dificuldades do combate no inverno, com os soldados nas suas trincheiras e com as equipas de artilharia a tentar descobrir e bombardear posições inimigas. Numa região onde as temperaturas podem atingir os 30 graus negativos, a própria necessidade de se manter aquecido pode revelar-se um gesto fatal, com os rastos de fumo das fogueiras a denunciar as posições ao inimigo.

 

Soldados ucranianos a utilizar o camuflado de inverno (Mykola Tys/Getty Images)

"Atualmente o Inverno é um aliado da Rússia e permitiu aos seus soldados entrincheirarem-se.  Mas a sensação térmica vai baixar muito naquela zona, com a neve a passar a gelo. O rigor do inverno prejudica a Ucrânia, que vinha a conquistar vários sucessos no campo de batalha" acrescenta.

Apesar de tudo, a Ucrânia diz estar preparada para a guerra no inverno. Os aliados ocidentais enviaram centenas de milhares de uniformes, botas e outros equipamentos próprios para o combate no frio. Em setembro, vários países da NATO enviaram centenas de milhares de casacos, calças, boas e luvas próprias para o combate no ártico. 

O próprio líder da aliança Atlântica, Jens Stoltenberg deixou a promessa de que vai fazer tudo para que a Ucrânia possa "conduzir operações significativas durante o inverno e continuar a fornecer tudo, desde combustível, roupas de inverno, tendas a sistemas avançados de armamento". 

O mesmo não é certo por parte do lado russo, de onde surgem múltiplos relatos de que os mais de 300 mil civis mobilizados estão a ser obrigados a comprar equipamentos com dinheiro do seu próprio bolso. O porta-voz do Pentágono, Patrick Ryder, aponta ainda que os severos problemas logísticos que a Rússia tem experienciado devem agravar-se com a chegada do frio.

Seth Jones, vice-presidente do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais, acredita que o período de inverno deve ficar marcado pela elevada atividade de sabotagem atrás das linhas inimigas, com forças especiais ucranianas e agentes infiltrados a tentar causar o caos. “Os ucranianos vão continuar a avançar com ataques de sabotagem e subversão nas linhas russas com assassinatos direcionados e sabotagem contra áreas controladas pela Rússia dentro da Ucrânia”, disse ao The New York Times.

Mas guerra na Ucrânia é híbrida e não se resume só aos avanços e recuos dos exércitos. Se por um lado, o exército ucraniano demonstra estar preparado do ponto de vista logístico para fazer frente ao rigor do inverno, o mesmo não se pode dizer da população ucraniana. Com um clima tão hostil, a ausência de luz elétrica, água e gás para o aquecimento pode revelar-se uma combinação mortífera. 

Estação elétrica em Chernóbil, na Ucrânia (Sergei Supinsky / Getty Images)

E essa parece mesmo ser a estratégia de Vladimir Putin, que desde o início do mês de setembro tem destruído sistematicamente as infraestruturas críticas ucranianas, com particular foco na capacidade de produção e armazenamento de energia. A situação é de tal forma grave que, após o ataque da última quarta-feira, mais de metade da infraestrutura elétrica do país está inoperacional. Além disso, este equipamento remonta à era soviética e é difícil de restaurar e substituir. 

"Não é na derrota do exército ucraniano que Putin está a apostar. O presidente russo está a apostar na incapacidade de resistência da população ucraniana perante condições completamente adversas", esclarece o José Filipe Pinto.

A situação pode acabar por precipitar o país para uma catástrofe humanitária ainda mais severa, obrigando milhões de ucranianos a migrar para a União Europeia, em busca de calor. Hans Henri. P Kluge, diretor regional da Organização Mundial da Saúde na Ucrânia, admite que o número de refugiados pode chegar aos três milhões. O objetivo é pressionar os aliados dos ucranianos, para que, após receberem milhões de refugiados, pressionem Zelensky a sentar-se na mesa de negociações e acorde um cessar-fogo com Putin. É a utilização dos refugiados enquanto arma política.

"Ao tornar a Ucrânia inabitável no inverno, eles estão a enviar potencialmente milhões de ucranianos para a Europa. Isso colocaria pressão sob os governos europeus. A esperança é que a Europa, por sua vez, pressione Kiev", explica o antigo comandante do exército norte-americano na Europa, o tenente-general Ben Hodges, numa entrevista citada na imprensa. 

Ceder à estratégia russa pode acabar por ser mortal. Para a Rússia, um cessar-fogo seria uma pausa operacional recebida com agrado, numa altura em que o exército de Moscovo se vê obrigado a "tomar decisões difíceis" e a retirar de regiões que anexou ilegalmente com pompa e circunstância. Segundo o Royal United Services Institute (RUSI), um think tank de Defesa britânico, tal pausa serviria apenas para recuperar e fortalecer as posições conquistadas.

Carro de combate ucraniano junto a um prédio na localidade de Avdiivka, a norte de Donetsk (Aleksey Filippov / AFP)

E, a julgar pelas declarações de Jens Stoltenberg, parece ser com essa noção que os parceiros da Ucrânia operam. O líder da NATO disse que ainda que "muitas guerras acabam com negociações", o que acaba por acontecer nesse processo "depende do que acontece no campo de batalha". Por isso, acrescenta, não haverá "paz duradoura" na Ucrânia caso a Rússia vença o conflito.

"Para a Ucrânia, as condições de inverno vão dificultar a logística das operações convencionais, enquanto a falta de vegetação e cobertura vão tornar os avanços dos blindados mais arriscados. Para a Rússia, com soldados desmoralizados e posições defensivas mal preparadas, é provável que o inverno veja uma nova queda no moral", anteveem os analistas do RUSI.

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