Há quem evoque o genocídio pela fome de Estaline, que matou milhões de ucranianos na década de 1930, para o comparar com o genocídio pelo frio que Putin estará a tentar infligir na invasão da Ucrânia
Passava pouco mais de um mês do início da invasão russa da Ucrânia quando o crime de genocídio, apontado aos russos, começou a ser abertamente referido no espaço público. Apesar das reservas iniciais do presidente francês Emmanuel Macron, o presidente norte-americano não teve dúvidas ao concordar com o homólogo ucraniano e dizer que Vladimir Putin queria destruir "até a ideia de ser ucraniano": "As provas estão a acumular-se", dizia Joe Biden em abril aos jornalistas.
Com o avançar do conflito, e sem sinais de uma trégua ou cessar-fogo, russos e ucranianos têm trocado acusações de crimes de guerra e crimes contra a Humanidade. Desde outubro, a estratégia de Moscovo focou-se em atacar sobretudo infraestruturas de produção e distribuição de energia, obrigando a que muitos ucranianos tenham de viver sem condições mínimas de conforto, privando-os de água, gás e eletricidade. Será este também um crime de guerra ou mesmo um crime de genocídio, programado para eliminar intencionalmente a população da Ucrânia? As opiniões divergem.
Na antena da CNN Portugal, o historiador António José Telo, admitindo crimes de guerra tanto de Moscovo como de Kiev - ainda que saliente a diferença de escala à qual os crimes são cometidos e que a Rússia, como país invasor, leva a infeliz dianteira neste tipo de delitos - não duvida de que o crime de genocídio também se aplica nos últimos desenvolvimentos do conflito.
"Tudo o que tem sido feito, nomeadamente na tomada do Donbass, tipifica um crime de genocídio: a deportação em massa de população, a adoção forçada de crianças, a destruição da rede elétrica quando há temperaturas que matam as pessoas se não há aquecimento, é claramente um crime de genocídio", defendeu o especialista em História e Relações Internacionais.
Para António José Telo, "o crime de guerra maior que pode haver é justamente o genocídio da população. E é preciso ter visão de floresta para o entender no seu conjunto", declarou. Lembrando que não só o presidente norte-americano, mas também o próprio secretário-geral das Nações Unidas já admitiram crimes de genocídio na Ucrânia, o historiador diz que, naturalmente, "a Rússia não irá classificar-se como estando a praticar um crime de genocídio", mas defende que as forças de Putin têm praticado "sistematicamente" crimes que se encaixam nesta definição: "De cada vez que há uma zona da Ucrânia libertada, são descobertos centenas de milhares de casos que estão a ser investigados", afiança, acrescentando que não há igualdade de circunstâncias entre Moscovo e Kiev. "Um é agressor, outro é agredido", resume.
Genocídio pelo frio
O governo da Ucrânia tem insistido na tese de que a Rússia está a tentar cometer genocídio pelo frio num país com invernos rigorosos, mas é necessário revisitar a definição deste crime para perceber se ele se aplica.
A palavra "genocídio" foi utilizada pela primeira vez pelo jurista polaco Raphäel Lemkin em 1944, que utilizou o conceito para se referir ao Holocausto, mas também a circunstâncias anteriores em que nações, grupos étnicos ou religiosos foram aniquilados.
O jurista Paulo Saragoça da Matta explicou à CNN Portugal que o crime de genocídio se define pela "eliminação de um conjunto populacional por razões étnicas, religiosas, culturais e com o propósito dessa eliminação". Ou seja, se houver homicídios indiscriminados de civis de determinada etnia ou religião, ou atos cruéis, degradantes ou de tortura que conduzam à morte, o crime em causa pode não ser o de genocídio porque, para que seja, tem de haver "intenção nessa eliminação", frisava o especialista. "Não é um critério quantitativo, podemos ter um milhão de mortos e não ser genocídio. Não se trata da quantidade, trata-se da eliminação intencional, programada" de um conjunto de pessoas, explicou Saragoça da Matta.
Apesar de os critérios serem "relativamente fluídos", o que exige uma avaliação rigorosa das provas para avançar com uma condenação por genocídio, Francisco Pereira Coutinho, especialista em Direito Internacional, não tem grandes dúvidas sobre se a destruição da rede elétrica ucraniana pode efetivamente ser enquadrada neste tipo de crimes: a resposta é não. "Para mim, a grande questão é perceber se pode ser qualificado como crime de guerra", defende. "As instalações elétricas também são usadas para fins militares e é preciso perceber se o ataque se dirige apenas a infligir danos a civis", explica.
Pereira Coutinho admite: será possível argumentar que esta destruição das infraestruturas de energia representa um crime de guerra "se tiver incidido sobre uma parta da instalação e infraestrutura elétrica que não tem qualquer uso militar. Tem de haver dano direto a civis, por exemplo, se um hospital ficou sem energia", esclarece. Um ataque que provocasse o corte de energia numa zona do país onde não há conflito também poderia classificar-se como um ataque às populações, permitindo igualmente a tipificação de crime de guerra - e é apenas disso que falamos neste caso, defende o especialista em Direito Internacional.
Pereira Coutinho lembra ainda que o genocídio implica a tentativa de destruição de um determinado povo e, por isso, "é discutível que seja objetivo da Rússia: segundo o discurso de Putin, a Ucrânia nem existe, são todos russos. Vai tentar destruir-se a ele próprio?", questiona.
Kholodomor depois do Holodomor
O Estatuto de Roma, que estabeleceu o Tribunal Penal Internacional (TPI) e foi adotado em 1998, prevê que este tem competência para julgar quatro crimes: crime de genocídio, crimes contra a Humanidade, crimes de guerra e crimes de agressão. Mas, até aos dias de hoje, poucos crimes foram classificados pelos órgãos judiciais como genocídio, destacando-se o assassínio do grupo étnico tutsi no Ruanda, em 1994, que contabilizou cerca de 800 mil mortes, bem como o massacre na cidade bósnia de Srebrenica, que terminou com a morte de mais de 8.000 homens e rapazes muçulmanos em 1995.
No caso da invasão russa da Ucrânia, não é aplicável o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, que prevê o crime de genocídio "de forma bastante precisa", explica Saragoça da Matta, porque nem Rússia nem Ucrânia aderiram ao tratado. "Temos de recorrer à Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio, de 1948, que é um bocadinho mais lata, menos específica", acrescenta. Se há genocídio pelo frio na Ucrânia? O penalista é perentório: "Não tenho dúvida nenhuma".
Saragoça da Matta explica a interpretação: "É óbvio que, quando atinjo infraestruturas de um país, estou a prejudicar o esforço de guerra desse país, o esforço de defesa desse país. Mas não desaparece do meu conhecimento e da minha vontade, e esta expressão tem muita importância, não desaparece do meu dolo que, necessariamente - e por isso se chama dolo necessário - vou causar a morte a centenas de milhares de civis", esclarece o jurista. "Se eu quero matar A, mas sei que ao matar A mato B, C e D, tenho dolo necessário de todos os homicídios", sublinha.
Saragoça da Matta recorda também o Holodomor, "a manobra russa de levar ao extermínio dos ucranianos através da fome, quando tudo que eram cereais era incendiado ou apreendido e levado para a Rússia", para a comparar ao que é atualmente descrito como Kholodomor, a chamada morte pelo frio. "Não é a primeira vez que algo deste género acontece na Ucrânia", frisa, remetendo precisamente para a "Grande Fome", a crise generalizada de fome na Ucrânia durante o regime comunista soviético de Estaline no início da década de 1930 - há quem a rotule como genocídio e trace mesmo um paralelo com o Holocausto.
Para Paulo Saragoça da Matta, não há dúvida de que existem evidências para levar a julgamento crimes de genocídio, de guerra e de crimes contra a Humanidade na Ucrânia, cometidos pelos russos. "Se haverá condenação é outra coisa, mas há indícios claramente suficientes", reforça. Voltando ao genocídio: "Desde que haja uma intenção de causar a morte ou violações à integridade física relativamente a um grupo étnico nacional, ou racial, seja qual for, desde que haja intencionalidade, qualquer ato que direta ou indiretamente leve à morte, violação da integridade física e destruição de um grupo, neste caso nacional, eu diria que, indiciariamente, já podemos falar de um comportamento genocida", conclui o jurista.
E até o Papa Francisco, no final da audiência na Praça de São Pedro, na quarta-feira passada, evocou o "terrível genocídio" de Estaline para falar do "martírio" que estão novamente a atravessar os ucranianos, pelo que o paralelo entre os dois episódios está cada vez mais presente e não deixa de ser apontado.
Um quarto da população ucraniana sem energia
Nos últimos meses, a Comissão Europeia tem trabalho com os seus estados-membros para fornecer à Ucrânia equipamentos que lhe permitam reparar e colocar em funcionamento as infraestruturas que têm sido alvo de ataque russos. O Parlamento Europeu, por exemplo, lançou uma campanha para recolher, nas cidades da União Europeia, geradores e transformadores de energia para ajudar os ucranianos a ultrapassar este inverno: na semana passada, as autoridades ucranianas revelaram que mais de 10 milhões de pessoas, cerca de um quarto da população da Ucrânia, estavam sem energia.
Os cortes - sejam de emergência ou por danos nos equipamentos - no abastecimento de eletricidade, gás e até água têm-se intensificado nos últimos dias, numa altura em que as temperaturas começam a descer abaixo dos zero graus e a neve começou a cair em várias regiões da Ucrânia, onde o inverno é longo e rigoroso. As empresas de distribuição de energia admitem que os locais estão, ainda assim, a consumir mais energia do que aquela que é possível produzir, incentivando os ucranianos a passarem o inverno fora do país, se o puderem fazer, até porque os cortes de energia deverão prolongar-se até ao próximo mês de março.
Na passada quarta-feira, mais uma vaga de ataques russos direcionados às infraestruturas de energia ucranianas deixou cerca de 70% da cidade de Kiev sem eletricidade e provocou mesmo um apagão na vizinha Moldova, que foi obrigada a restabelecer a ligação de cerca de 50% da rede elétrica nacional. Como Kiev, também Lviv, Kremenchuk, Poltava ou Mykolaiv foram regiões atacadas: de Lviv, chegaram relatos de cortes totais na energia, aos quais se juntaram depois cortes no abastecimento de água.
A Energoatom, que gere a rede de energia nuclear, informou que todos os reatores das centrais nucleares do país tiveram de ser desligados da rede externa por causa dos ataques de Moscovo, ainda que grande parte da energia consumida na Ucrânia seja produzida precisamente aqui. E, na quinta-feira, quando a central nuclear de Zaporizhzhia foi ligada novamente à rede de energia ucraniana, o líder da Energoatom, Petro Kotin, deixou um aviso: existe um "risco real de catástrofe nuclear e radioativa".